Aprovação do Marco dos Jogos Eletrônicos amplia o debate sobre BETs, fantasy sports e jogos de azar e os riscos de acesso a esses conteúdos pelos mais novos
Crianças e adolescentes acessam apostas esportivas, jogos de azar e caça-níqueis na internet, mesmo proibidos por lei. Especialistas falam dos riscos à saúde e comentam em que medida a aprovação do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos contribuiu para regulamentar o tema.
Um universo cheio de tigrinhos, aviõezinhos, moedas de ouro e craques do futebol. O que parece fascinante é perigoso e não tem poupado crianças e adolescentes, público que cresce à medida que os algoritmos das redes sociais insistem em entregar jogos de azar, apostas on-line e BETs, enquanto influenciadores prometem dinheiro fácil, apesar da proibição legal.
Além de jogar, o público mais novo está sendo recrutado por cassinos on-line para fazer publicidade daquilo que sequer deveria acessar. Influenciadores entre seis e 17 anos divulgam casas de apostas para crianças e adolescentes no Instagram, mostrou investigação do Instituto Alana, que formalizou denúncia ao Ministério Público do Estado de São Paulo, em junho.
Para entender os impactos das apostas entre crianças e adolescentes, é importante saber que se tratam de coisas diferentes. Jogos como o Fortune Tiger, o jogo do Tigrinho, são considerados de azar e proibidos no Brasil. Já as BETs são casas esportivas na internet, regulamentadas desde dezembro de 2023, após a sanção da Lei 14.790. Essas empresas movimentam cerca de R$120 bilhões por ano, dado da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais.
Apesar da publicidade de ambos ser ilegal para menores de 18 anos, isso não tem limitado o acesso, como aconteceu com Lucas*, 13. Influenciado por jogadores e locutores famosos, o estudante de Salvador decidiu se arriscar como técnico de futebol e usou escondido o cartão de crédito da avó para bancar suas primeiras apostas. No total, chegou a gastar R$30 mil. Perdeu tudo.
Foi durante uma sessão da irmandade Jogadores Anônimos na capital baiana, onde adultos que têm compulsão por jogo ajudam uns aos outros a superar o vício, que Bernardo*, o pai do garoto, compartilhou a necessidade de pedir empréstimo para pagar a dívida feita pelo filho.
Quem contou essa história foi Jairo*, relações públicas do local que está há 14 anos em recuperação. Ele percebe como encontrar menores de 18 anos fazendo apostas virtuais está cada vez mais frequente. “Eles não precisam sair de casa, jogam do celular, muitas vezes sem supervisão e acham que vão ter controle, sem saber que esses jogos são para as pessoas perderem”. Segundo pesquisa do Datafolha, quase 30% dos jovens entre 16 e 24 anos afirmam já ter feito apostas esportivas on-line.
Para o voluntário dos Jogadores Anônimos, é urgente restringir a publicidade e ampliar a fiscalização quando se trata dessa faixa etária. “Ver um jogador de futebol ou influencer incentivando esses jogos deveria ser tão desconcertante quanto ver hoje em dia esportistas fumando ou artistas anunciando bebidas alcoólicas.”
Crianças e adolescentes que se expõem a esses jogos podem até ter ganhos eventuais, como João* e Pedro*, 15. Os dois colegas, de São Paulo, fizeram apostas conjuntas depois de baixar um aplicativo de BET esportiva e cadastrar CPFs aleatórios, encontrados facilmente na internet. Apostando dinheiro só uma vez, João ganhou R$20. Mas ele sabe que a situação pode sair do controle para quem insiste em continuar. “Lá na escola tem uns garotos que jogam, pelo menos, uma vez por semana. Conheço quem já ganhou e quem já perdeu muito.”
A exposição a apostas on-line é prejudicial em diversos níveis, afirma a psicóloga Ivelise Fortim, professora de psicologia e de tecnologia em jogos digitais da PUC-SP. “Jogos de apostas são proibidos para crianças porque elas têm maior impulsividade e dificuldade de controle, e não têm a maturidade necessária para tomar decisões informadas sobre o risco financeiro envolvido nessa atividade. Portanto, a probabilidade do desenvolvimento de dependência desse tipo de jogo é maior nas crianças do que em adultos.” Entre as consequências mais graves entre o público em idade mais vulnerável, há casos de depressão e suicídio.
BETs e jogos de fantasia não são para crianças e adolescentes, reforça Manu Ribeiro, analista de relações governamentais do Instituto Alana. “As transações que acontecem nesses jogos, com resultados imprevisíveis, podem gerar problemas de saúde pública ligados ao vício”, explica. Além disso, a pesquisadora em Direitos Humanos e Digitais defende que o Brasil garanta também a verificação etária sem estabelecer censura e a proteção da publicidade excessiva. “Perdi as contas de quantas vezes, mesmo com perfil fechado, recebi convites para os jogos do Tigrinho e do Aviãozinho, que são jogos de azar, proibidos no Brasil.”
A psicóloga Ivelise Fortim defende ainda mais rigor e ética por parte de influenciadores que miram o público jovem. “É muito fácil encontrar influencer dizendo que não é sorte, mas habilidade. Eles garantem que não vai mais ser preciso trabalhar para ganhar dinheiro ou trazem estatísticas absurdas como ‘apostei 100 e ganhei um milhão’. O que vimos, na verdade, foram muitas reclamações de fraude nas plataformas”.
BETs e jogos eletrônicos são regidos por legislações diferentes. As BETs estão na modalidade lotérica denominada “apostas de cota fixa”, sob a Lei 14.790. Já os jogos eletrônicos pertencem ao mercado audiovisual, regulamentados há pouco mais de um mês pelo Marco Legal estabelecido com a Lei 14.852. A versão aprovada acabou sofrendo mudanças no Senado, entre as quais, a exclusão dos fantasy sports, que têm apelo de jogos estratégicos, embora funcionem de forma semelhante aos jogos de azar.
“Inicialmente, o projeto não abordava a proteção de crianças e adolescentes e sugeria abordagem sobre jogos nas escolas, sem regulamentação do executivo”, explica Manu Ribeiro. As audiências públicas, das quais o Alana participou, e a inclusão do tema na Comissão de Educação e Cultura do Senado, priorizaram o uso dos jogos para melhor interesse do público infantojuvenil. Do mesmo modo, garantia outros aspectos, como o enfrentamento a discursos de ódio nos ambientes digitais desses jogos, o investimento em acessibilidade e a transparência sobre denúncias.
“O Marco Legal é importante, mas o texto aprovado não dá conta de tudo. Esse é um trabalho contínuo no qual todos precisamos nos debruçar”, diz Manu. Segundo ela, a expectativa agora é pela criação de uma Política Nacional de Jogos, que possa estabelecer parâmetros de desenvolvimento e sempre pensar em produtos que coloquem o melhor interesse da criança e do adolescente em primeiro lugar.
Na avaliação de Lynn Alves, professora da Universidade Federal da Bahia, apesar da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Marco Legal ainda precisa aprofundar o tema da proteção de crianças e adolescentes, pois “jogos são ambientes perfeitos para a captura de dados, especialmente os multiplay”. Isso porque, como ela lembra, “eles podem sair do ambiente do jogo e ficar em chats no Discord, por exemplo, conversando com estranhos”.
“Ignorar ou ridicularizar crianças e adolescentes que estão imersos nas casas de apostas, nos jogos de azar e nos fantasy sports, é criar uma primeira barreira de diálogo e menosprezar um problema que, na verdade, é de todos nós, não só do jovem e de seus responsáveis”. A afirmação é de Gabriela Pereira, diretora de relações institucionais do projeto Redes Cordiais, que atua para construir espaços digitais saudáveis.
Para Gabriela, no ambiente digital, os mais novos estão expostos a perigos que nem sempre eles ou os adultos conseguem enxergar ou dimensionar. É comum nesses casos, aliás, escutar perguntas carregadas de julgamento: “Onde estavam a mãe e o pai desse menino que não o viram apostando?” ou ainda “Como uma avó não percebe que o neto usou o seu cartão de crédito?”.
“Não podemos cair na cilada (mais uma!) de querer individualizar um problema coletivo”, diz a pesquisadora Elena*, mãe de João, de quem falamos no começo dessa matéria. Em sua opinião, falta vontade política para tratar a questão. “Muitos adolescentes ficam sabendo desses jogos por meio de influenciadores que eles acompanham no Instagram, TikTok ou YouTube, por exemplo. Essas e outras redes sociais deveriam proibir ou restringir esse tipo de divulgação, no mínimo”. Em 2023, perfis com milhares de seguidores fizeram publicidade desses jogos no Brasil, alguns afirmando, inclusive, que indicavam BETs, mas que nunca jogaram.
Saber como acontece o primeiro contato de crianças e adolescentes com esses jogos é um ponto de partida estratégico, ensina Gabriela Pereira. “É a partir de links de influenciadores que eles seguem? É a partir da publicidade on-line? São estímulos dos colegas de escola? É uma forma de repetir um comportamento observado na própria casa, de responsáveis que acessam essas plataformas? Isto é, identificar esses caminhos ajuda a traçar a saída.”
Mas, assim como o problema é de todo mundo, a solução também passa por todos. O trabalho das Redes Cordiais vê os influenciadores como potenciais aliados para a distribuição de conteúdos de educação midiática. “Imagina um jovem receber uma mensagem de um influenciador que segue e admira sobre como podemos identificar uma informação enganosa e formas de nos proteger on-line? Apresentar os riscos, falar sobre vícios, emprestar seus perfis para contar histórias reais, são alguns exemplos de boas práticas”, diz a especialista.
Uma vez que crianças e adolescentes usam redes como o Tik Tok e o YouTube como buscadores, Gabriela também considera importante que informações de qualidade sejam compartilhadas nesses espaços. “Se o influenciador é a figura de confiança daquela criança ou adolescente, é com ele que devemos trabalhar. Assim, chegaremos a esse público que tem uma relação completamente diferente das outras gerações quando o assunto é consumo de informação.”
Nesse contexto, orienta, a educação midiática nas escolas deve ser uma atividade transversal a todas as matérias. Além disso, deve colocar o jovem como protagonista e estimular que ele se torne um pesquisador, por exemplo, buscando informações em diferentes fontes e criando rodas de debate.
Além de regulamentar que os fantasy sports não são jogos saudáveis, os debates no contexto do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos foi decisivo para ampliar o entendimento de que “não são apenas softwares ou artefatos tecnológicos, mas um fenômeno cultural”. A definição é da professora Lynn Alves, que coordena a rede de pesquisa Comunidades Virtuais, e também produz jogos para aprendizagem escolar e em empresas.
“Jogo não é jogatina”, ensina a professora, que esteve nas audiências públicas do Senado Federal. Embora pondere que o mau uso pode ser prejudicial, reconhecido pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) como “gaming disorder”, Lynn aponta que nem sempre o jogo está ligado apenas ao vício, à violência ou ao sedentarismo.
Contra essa ideia, ajudou a fortalecer o entendimento de que eles sempre podem ensinar alguma coisa. “Os jogos digitais desenvolvidos para entretenimento ou com fins educacionais são ambientes de aprendizagem e espaços lúdicos, onde crianças, jovens e adultos podem interagir, se divertir e aprender“, diz. “Gosto de citar a história de uma estudante de engenharia que, mesmo sendo caloura, se antecipava nas respostas sobre construção porque tinha aprendido no Minecraft.”
Por isso, a professora Lynn Alves fala em “aprendizagem baseada em jogos”, e não em gamificação como estratégia educacional. Segundo ela, o conceito virou “modinha” e é mal interpretado. Portanto, ela diferencia assim: a gamificação usa estratégias que se baseiam na mecânica do jogo, mas não necessariamente estão em um ambiente de jogo. O professor pode criar uma simulação na sala de aula, estabelecer um desafio, com objetivo, missões, regras, mas sem estar dentro do jogo. Já a aprendizagem baseada em jogos não se limita à perspectiva clássica de pontuação e recompensa. “É mais colaboração do que competição. Então é isso que eu acho bem mais interessante para a construção coletiva de saberes.”
Lynn é contra a proibição de celulares, e sempre prefere o diálogo e a mediação parental. Nesse sentido, ela recomenda que os adultos conversem com as crianças, investiguem o que elas estão jogando e, de preferência, joguem também. “Ali vão surgindo perguntas sobre conteúdo e observações se é ou não violento, o que a criança está entendendo e aprendendo”, diz.
Falar de BET no Brasil é falar de futebol. Dos 20 times da série A do campeonato brasileiro deste ano, 14 são patrocinados por essas empresas. Ou seja: 70% dos principais times estampam logomarcas de apostas on-line nos uniformes dos jogadores.
Nesse contexto, o professor de educação física Danilo Valença, que dá aulas no ensino fundamental da escola Gira Girou, em Salvador, faz uma provocação: até que ponto as crianças estão substituindo a diversão analógica pela digital? Quantas das que querem acessar apostas esportivas estão praticando esporte? “Aí vem muito do exemplo, que se sobrepõe à palavra. Assim, uma coisa é o pai e a mãe quererem que o menino saia do celular e vá jogar bola. Mas a verdade é que muitos adultos estão sedentários e também ligados às telas”.
Na avaliação do professor, que também gerencia escolinhas de futebol e de surfe, as BETs acabam refletindo o que o futebol tem de ruim. “O futebol pode promover ambientes violentos, seja com agressões físicas ou verbais, como xingamentos, agressões, casos de racismo, machismo e outras formas de preconceito”, pondera.
Por isso, segundo ele, ampliar o debate sobre as BETs com foco em crianças e adolescentes pode contribuir para a formação de uma nova cultura esportiva, mais brincante e ética. “Na infância, tudo parte do corpo. Então, a criança que aprender isso vai se conhecer melhor, ter cuidado consigo, com o outro e com o entorno. Ela vai ver que todos os saberes – ciência, matemática, geografia – estão interligados. Arrisco dizer que vai, inclusive, ter uma visão mais crítica das coisas e questionar o que não é bom para ela”, diz. Nesse sentido, a competição saudável pode ensinar sobre convivência, resiliência e autoconfiança, além de lidar com regras e aprender a perder, como algo que faz parte do jogo e da vida.
* Os nomes são fictícios para preservar a identidade das pessoas nesta reportagem.
O programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, denunciou a empresa Meta após identificar cerca de 50 conteúdos no Instagram com anúncios ilegais de casas de apostas não apenas voltados para crianças e adolescentes, mas protagonizados por influenciadores mirins em diversos estados brasileiros.