Como as crianças se tornaram prioridade absoluta em nosso país?

Confira os principais capítulos na história da evolução dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil

Da redação Publicado em 13.06.2022
Na imagem, uma criança negra brinca em um brinquedo de metal. O fundo da imagem é preto e branco e a criança aparece em destaque, colorida. A imagem possui intervenções de rabiscos coloridos e um livro escrito Marco Legal.
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Resumo

Hoje, entende-se que as crianças devem ser prioridade absoluta em todas as políticas públicas. Mas nem sempre foi assim: ao longo das últimas décadas, muitos debates internacionais e nacionais precisaram acontecer para marcar a evolução do pensamento sobre a infância.

Hoje, sabe-se que a criança, por viver uma fase crucial para o desenvolvimento humano, deve receber o cuidado compartilhado entre Estado, família e sociedade, estando sempre em primeiro lugar na elaboração de políticas públicas. Mas essa ideia de valor e destaque, sintetizada no termo “prioridade absoluta”, do Art. 227 da Constituição Federal, nem sempre foi um consenso. Até décadas atrás, a criança sequer era considerada sujeito de direitos. Foi necessária uma série de movimentações políticas mundiais e nacionais, em diálogo constante com a ciência e as lutas populares, para o estabelecimento de um novo paradigma em relação à infância

Apesar do Brasil possuir uma legislação considerada avançada para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes, isso não significa que todas as políticas básicas chegam às famílias e suas comunidades. Para que elas se tornem realidade, é preciso haver um comprometimento de todos os níveis de governo e desenvolver mecanismos institucionais que possibilitem sua aplicação em territórios e realidades sociais distintas. Afinal, como pontua o advogado e diretor de Políticas e Direitos das Crianças do Instituto Alana, Pedro Hartung:

Se não garantirmos hoje os direitos das crianças com prioridade absoluta, não há futuro socialmente e economicamente sustentável para todos nós

Confira a linha do tempo com alguns dos principais marcos legais que aprofundaram a concepção sobre a infância e ampliaram a garantia dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo.

Criança, prioridade absoluta

  • 1927 Lei de Assistência e Proteção aos Menores

Mais conhecida como Código de Menores, essa lei representa uma das primeiras estruturas de proteção a essa população. Apesar de ter determinado a maioridade penal aos 18 anos, que prevalece até os dias de hoje, é fruto de uma época culturalmente autoritária, que se refletia na própria concepção sobre a infância, tendo sido consolidada em 12 de outubro de 1927.

  • 1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos

Mundialmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representou um marco histórico no reconhecimento dos direitos de todos os seres humanos, sem distinção. Também foi a primeira vez em que se reconheceu que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. “Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”, diz o item 2 de seu artigo 25. Foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos

  • 1959 Declaração Universal dos Direitos das Crianças 

O documento orienta países do mundo inteiro a respeitarem as necessidades básicas das crianças – o que inclui o direito das crianças à brincadeira, à educação, a um ambiente favorável e a cuidados de saúde -, com prioridade absoluta e reconhecendo o status de sujeitos de direitos, ideia estruturante do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) anos mais tarde. 

  • 1979 Novo Código de Menores 

Vinte anos após a Declaração dos Direitos da Criança, as Nações Unidas declaram 1979 como o Ano Internacional da Criança. Em 10 de outubro, é promulgado no Brasil o novo Código de Menores, integrando a doutrina de proteção integral. 

  • 1988 Constituição Federal

A luta democrática e a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, abriram portas para a construção de um novo olhar sobre a infância, estabelecendo a noção de cuidado e responsabilidade compartilhada e solidária do Estado, da sociedade e de suas instituições, bem como de todos os arranjos de famílias e suas comunidades, sobre crianças e adolescentes. A doutrina de proteção integral de crianças e adolescentes passa a reconhecê-los enquanto sujeitos de direitos, com prioridade absoluta. Até então, a legislação era um legado escravocrata, baseado na doutrina da situação irregular, que apresentava um viés individualista, punitivista e assistencialista. 

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

(Artigo 227, Constituição Federal) 

  • 1989 Convenção sobre os Direitos da Criança

Desde 1986, durante a campanha “Criança e Constituinte”, mais de um milhão de assinaturas foram coletadas e entregues por crianças e adolescentes ao Congresso Nacional, junto de organizações e movimentos populares, em prol da emenda “Criança, Prioridade Nacional”, fortalecendo a inclusão do artigo 227 no texto constitucional.

No dia 20 de novembro de 1989, a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança, que reconhece o papel das crianças como atores sociais, políticos, econômicos, civis e culturais, garantindo e estabelecendo critérios para a proteção de seus direitos. Sua carta foi aprovada por unanimidade e ratificada por 196 países, tornando-se o instrumento de direitos humanos mais aceito na história. No Brasil, sua vigência aconteceu por meio do decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990

  • 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Com a promulgação do ECA (Lei nº 8.069), em 1990, rompe-se com o modelo de vigilância e criminalização de jovens entre 12 e 18 anos, apresentando novos olhares para as medidas infracionais, além de priorizar a convivência familiar em vez da institucionalização; crianças e jovens são retirados de suas famílias apenas caso sua segurança e seu bem-estar estejam ameaçados. 

“Nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais.” 

(Art. 5º ECA)

  • 1992 Pacto pela Infância

Entre muitos avanços, o ECA introduziu a ampliação do acesso de crianças e adolescentes a escolas, criou os Conselhos Tutelares, as Varas da Infância e Juventude, programas de enfrentamento à exploração sexual e ao trabalho infantil, implementou melhorias significativas na área da saúde, além de estruturar o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), principal órgão do sistema de garantia de direitos dessa população.             

Em 1992, a presidência e governadores de 24 Estados e do Distrito Federal assinaram o Pacto pela Infância, batizado como “500 dias de ação pela criança no Brasil”. Nos dois anos seguintes, novas instituições públicas, entidades da sociedade civil e governantes participam de reuniões, em que reafirmam o compromisso com a infância, desenhando metas para serem atingidas até o final de seus mandatos.

  • 2004 Ratificação de Protocolo Facultativo 

Devido a novos contextos e preocupações, os tratados internacionais precisam ser complementados por Protocolos Facultativos, que aprofundam o texto original e adicionam novos procedimentos para o cumprimento do tratado, podendo ser mais exigente do que a convenção original. Em 27 de janeiro de 2004, o Brasil ratifica o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a Venda de Crianças, a Prostituição Infantil e a Pornografia Infantil e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, ambos em vigor desde 2002. 

  • 2015 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)

Em setembro de 2015, 193 países reunidos na Assembleia das Nações Unidas, adotaram, por unanimidade, o documento “Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. Formada por 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), cada um com metas próprias, incentiva um progresso pautado em formas justas e equitativas de desenvolvimento, integrando as dimensões social, econômica e ambiental. Até esta data, o Brasil havia conquistado avanços na promoção dos direitos de crianças e adolescentes ancorados nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM).

Os ODS são fundamentais para garantir os direitos das crianças, promovendo cidadania, bem-estar e qualidade de vida. Os países integrantes da ONU, como o Brasil, são obrigados por lei a cumprir esses objetivos, por meio da criação de estratégias nacionais, políticas públicas, planos e programas de desenvolvimento sustentável. Alguns focos prioritários dos ODS são a redução da pobreza e da desigualdade, promoção da justiça e diminuição dos impactos das mudanças climáticas. Todos os anos, os avanços de cada país são acompanhados por indicadores globais e registrados em relatórios

  • 2016 Marco Legal da Primeira Infância 

O Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257) é uma lei que está enraizada no conhecimento científico sobre as crianças, desde seu nascimento até os seis anos de idade, período considerado fundamental para o desenvolvimento pleno de suas capacidades motoras, cognitivas, físicas e psicossociais. Ela orienta a formulação e implementação de políticas públicas específicas voltadas para a primeira infância, levando o Brasil a ser o primeiro país da América Latina a valorizar e priorizar essa faixa etária. 

Destacam-se o reconhecimento do direito de brincar, a ampliação da licença-paternidade nas empresas do programa Empresa Cidadã e a instituição de responsabilidades iguais entre mães, pais e responsáveis. Além disso, reforça a importância do atendimento domiciliar e prevê atenção especial e proteção a mães que optam por entregar seus filhos à adoção e gestantes em privação de liberdade. 

  • 2017 Ratificação de Protocolo Facultativo

Em 29 de setembro, o Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre um Procedimento de Comunicações, em vigor desde 2014. 

  • 2019 Pacto Nacional pela Primeira Infância

O Marco Legal da Primeira Infância inspirou uma série de ações alinhadas aos seus princípios, entre elas o Pacto Nacional pela Primeira Infância, assinado pelos poderes executivo, judiciário e legislativo, e organizações da sociedade civil, em 2019. A cada ano, novas instituições públicas e agentes privados, dos níveis federal, estadual e municipal, aderem ao Pacto. Essa mobilização fortalece a articulação entre diferentes atores responsáveis por políticas públicas, para que todas as ações destinadas a crianças e adolescentes sejam colocadas em prática com maior eficiência e agilidade. 

Cenário atual 

Para que as orientações desses marcos se tornem realidade, é preciso criar leis e garantias, que podem ser acompanhadas pelo Observatório da Criança e do Adolescente. Em 2020, a Fundação Abrinq verificou 6.792 proposições legislativas na Câmara dos Deputados e no Senado, destacando 782 que tratavam direta ou indiretamente dos direitos das crianças. Em destaque, estão projetos de lei que pretendem instituir o Sistema Nacional de Educação (SNE), tornar crime o trabalho infantil e prevenir a morte materna em estados e municípios, além de avanços e desafios reunidos no Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente, um material que auxilia deputados e senadores com questões-chave para a atuação de suas legislaturas no tema. 

(Fontes de pesquisa: Instituto Alana, Unicef e Fundação Abrinq)

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