Um manual coletivo feito por quem mais entende do assunto
Brincar é direito, respeitar é lei e escutar é urgente. Essas são algumas das regras escritas por crianças de várias idades para um mundo mais justo. O manual de como ser criança é também um guia do que os adultos precisam lembrar.
“Todo mundo deve brincar! Isso é regra de ser criança.” É assim que Olívia, 9, resume os combinados para que ninguém fique de fora da brincadeira. E é assim que abrimos o “Manual de como ser criança”: defendendo o brincar como direito fundamental para todas as infâncias. Em um mundo cheio de regras criadas pelos adultos, Lunetas então decretou: vamos ouvir, o ano inteiro, os verdadeiros especialistas no tema e construir a infância que a gente quer.
Para Maurício Akin, 10, a brincadeira “é o que nos faz ir para um outro mundo, onde a criatividade só reina”. Pedimos então licença para adentrar esse espaço e convidamos meninas e meninos, de Salvador e de São Paulo, para ditarem as regras por um dia. Enquanto elas reinventam o mundo com a liberdade de criar, nós, adultos, somos lembrados, artigo a artigo, do que esquecemos no caminho: cuidar da infância não é favor, é direito previsto em lei.
Dispõe sobre o “Manual de como ser criança” e dá outras alegrias
Crianças de Salvador e de São Paulo: fazemos saber que todo o Brasil decreta e nós sancionamos a seguinte Lei:
Artigo 1º: “Criança tem que viver uma vida boa e tem que ficar brincando, porque criança é assim.” – Miguel, 7.
Artigo 2º: “Brincadeiras inventosas são as mais legais, pegar um giz e sair desenhando na rua.” – Ágata, 7.
Parágrafo único: “Todas as crianças do mundo deveriam brincar a todo momento e os adultos deveriam ajudar as crianças.” – Maurício Akin, 10.
Artigo 3º: “Se eu pudesse ensinar apenas uma coisa aos adultos, mostraria como se brinca de pedra, papel e tesoura.” – Makeba, 5.
Artigo 4º: “Para brincar, tem regras”, estabelece Miguel. São elas:
a) Não pode empurrar;
b) Não pode bater;
c) Não pode dar rasteira;
d) Não vale chamar a “pró”.
Artigo 5º: “A brincadeira fica mais legal quando é em grupo.” – Michel, 11.
§ 1º No “Estatuto das brincadeiras”, ele escreve com letras bem grandes: “Eu brinco na rua, perto da minha casa, onde tem quadras. Lá eu sinto que desenvolvo mais a minha infância.”
§ 2º A brincadeira ajuda a desenvolver conhecimento, diz Josemar, 7. “No esconde-esconde, eu aprendi a me esconder direito.”
Parágrafo de cabeça para baixo: “Brincar é mágico, é um jeito de ser criança”, defende Olívia, 9. Para ela, brincar é uma emoção difícil de explicar, mas pode parecer:
a) Onde um corredor de obstáculos parece brincar de pega-pega;
e) Um soldado pode estar em pique-esconde;
i) Os pacificadores do planeta são crianças fazendo atos políticos;
o) Os astronautas estão sempre usando a imaginação;
u) Essa letra ainda vai ser inventada por Bigodinhas, a gata de pano de estimação.
Artigo 6º: “Se as crianças não brincassem, não conseguiriam aprender a maioria das coisas. Brincar alimenta a alma!” – Mariá, 7.
Parágrafo lúdico: “A natureza é onde a gente tem ar puro e vive o momento.” – Alice, 13.
Pé de parágrafo: “A natureza é tão bonita, ela é tipo um pai, que cria tudo o que existe: o mar, os cocos, as maçãs.” – Ágata, 7.
Parágrafo descalço: “As crianças precisam de mais natureza, de espaço e lazer para brincar.” – Yara, 11.
Artigo 7º: “A rua é um ótimo lugar para brincar de esconde-esconde, mas eu gostaria que a gente preservasse mais a natureza, para ter mais frutas e animais.” – Lorenzo, 11.
§ 1º Em Heliópolis, São Paulo, onde Lorenzo mora, tem pouca natureza. (Redação dada pela ação descuidada de muitos adultos).
Artigo 8º: Quando brinca mais lá fora, Catarina, 4, adora encontrar bichinhos. Ela começa:
Uni) “Olha, um gato!”
Duni) “E aqui também tem formiga!”
Tê) “Meu irmão tem duas aranhas!”
§ 1º “Eu escreveria uma regra para que as pessoas encontrassem mais animais.” – Josemar, 7. Ele continua:
Salamê) “Eu já encontrei gato, cachorro…”
Minguê) “…e beija-flor!”
Artigo 9º: Alice, 13, que cresceu entre a cidade e o sítio da família, aconselha:
I – “Se aventurar”;
II – “Sem nojo de pisar no chão de terra ou sujar o sapato”.
* Sujeito a pena de chateação para os pais que não permitirem a lambança.
Parágrafo verde claro: “A gente tem que cuidar da natureza.” – Miguel, 7. Para isso, não devemos:
Artigo 10º: “A natureza cuida da saúde da criança e de todos.” – Pablo Michel, 11
§ 1º E dá para saber isso mesmo vivendo em uma região que não tem árvores nem animais. Pablo é o autor das seguintes letras:
Letra maiúscula) “Me falaram que as árvores fazem o ar ficar melhor.”
Letra minúscula) “Tem muita criança que já nasce com asma e eu acho que é por causa disso.”
Parágrafo floresta em pé: “O que me deixa feliz sendo criança e que eu quero continuar fazendo é cuidar muito bem do meio ambiente.” – Mariá, 7. Neste cuidado, fica combinado que:
a) “Natureza é poder ficar em lugares abertos, mais perto das árvores, para cuidar e sentir esses lugares”;
b) “Se todas as crianças ficarem só trancadas dentro de casa, não vão aprender nada, porque a natureza é muito boa para todo mundo”.
Artigo 11º: “As crianças precisam da natureza porque isso é bom. Eu gosto do vento e da flor.” – Makeba, 4. Para brincar lá fora, suas regras são:
a) “Prestar atenção”;
dô) “Ter um adulto”;
lê) “Se divertir”;
tá) “Ir na Praça da Baleia!”
O adulto e jornalista Richard Louv criou o termo Transtorno de Déficit de Natureza para explicar os efeitos do afastamento das pessoas do mundo natural. Um belo dia, durante um passeio, ele observou que havia poucas crianças brincando na praça perto de sua casa. Então, ele ficou preocupado. Afinal, isso pode fazer a criança crescer sem todos os seus superpoderes. E ainda afetar a saúde.
No livro “A última criança na natureza”, ele reuniu pesquisas e relatos que mostram:
1) A criança na natureza é uma espécie em extinção;
b) A saúde da criança e a saúde do planeta são inseparáveis.
Para a psicóloga Ana Marcílio, é nosso dever garantir às crianças água e areia para continuarem criando mundo possíveis.
Akin decreta: “Todas as crianças do mundo só devem pegar no celular uma hora por dia e com o olhar dos pais.” Sujeito a:
lê) “Perder a natureza e tudo o que está em volta dela.” – Akin.
rê) “Perder o contato com o mundo.” – Evelyn, 14.
lá) “Alienar as pessoas.” – Marina, 13.
ra) “Perder tempo de ser criança.” – Alice.
O combinado não sai caro: “Os pais não precisam gritar ou tomar o celular, é só avisar que já deu o tempo.” – Ana Clara, 9.
Artigo 12º: Sabendo que dá para usar celular e tablet de um jeito mais legal, Mariá recomenda:
I – “A criança não pode ficar toda hora e também não jogar aqueles jogos que deixam viciada, tem que ser os educativos.”
§ Atenção: Adultos [que não conseguem largar o celular] precisam:
! – Apesar de trabalhar no celular, “conversar ao vivo quando puder e dar mais atenção às crianças” – Mariá.
!! – “Não ficar tomando café toda hora no celular e até tomando banho.” – Miguel.
Nota de recreio: Sete meses após a proibição do uso de celulares nas escolas, percebe-se um movimento de reconexão com o ambiente escolar. Entre os benefícios tangíveis, estão, por exemplo: a volta da atenção às aulas, o aumento da interação entre os alunos nos pátios e uma queda significativa nos registros de conflitos virtuais.
Artigo 13º: Como alternativa para o uso de telas, Ágata apresenta as seguintes onomatopeias:
toc) “Pegue um papel, desenhe com um lápis, pinte o que você quiser.”
toc) “Depois escreva: nunca devemos usar o celular demais porque prejudica os nossos olhos.”
Artigo 14º: “Do menor ao mais alto, do mais desengonçado ao mais perfeitinho, daquele com o sentido mais aguçado à mais incrível pessoa com deficiência, todos devem ser respeitados.” – Olívia, 9.
Parágrafo lúcido: Arthur, 12, puxa a orelha e diz que respeito é bom e todo mundo gosta, “principalmente crianças negras porque a maioria como eu é discriminada”.
Nota de rodopiar: Todas as crianças devem escolher junto as brincadeiras.
Mas, em caso de:
ui) Perna quebrada, por exemplo, que não dá pra brincar de pega-pega, Mariá recomenda “brincar de alguma coisa calma, de casinha, alguma coisa assim”. Ou seja, “para ninguém ficar de fora, só ia poder brincar se todas as outras pudessem”.
Quando a cidade é boa para a criança, ela tende a ser boa para todo mundo, afirma Ana Marcílio. A criança é alguém que está aprendendo: a falar, andar, escrever e tomar decisões. Por isso, a cidade que a acolhe, acolhe também quem tem mobilidade reduzida, quem não enxerga, quem precisa de acompanhante e de um espaço seguro para ter mais autonomia. “O exercício de olhar para a criança e levá-la a sério deve ser diário”, diz. “É preciso reviver a estranheza, por exemplo, de estar em mundo tão desigual e conseguir engajar nesse olhar questionador da infância.”
Artigo 15º: Fazer bullying ou maltratar as pessoas pela aparência não deve acontecer, determina Ágata.
Artigo 16º: “Todas as pessoas diferentes, ou seja, todas as pessoas do mundo, deveriam se amar e brincar juntas como se fossem iguais.” – Akin. Para ele, o melhor lugar para isso é o parque, “porque lá todos podem se expressar até os limites”.
Artigo 17º: “Nunca julgar uma pessoa pela aparência, porque ninguém é igual.” – Ágata, 7
Parágrafo grifado de canetinha: Toda criança deve “ter direito a comer, ter direito à moradia e ter direito à alfabetização” – Ana Clara.
Artigo 18º: Também fica proibido, segundo Ágata, jogar alimentos fora. “Tem muitas famílias sem comer nada e, se as crianças não se alimentarem direito, podem até morrer.”
Artigo 19º: “Pode querer crescer e ir morar com a avó e pode também querer chamar o pai para defender todas as crianças.” – Miguel.
Resolução final: Josemar determina que, para acabar com a injustiça no mundo, deve-se espalhar cartazes com os dizeres: “Não pode bater nem chutar os colegas.”
Arthur estabelece que todo adulto deve perguntar às crianças:
co) “Como foi seu dia”?;
lo) “Como tá indo sua evolução?”;
rê) “Como tá indo seu sonho?”.
As motivações de Arthur: “Quando a gente não é ouvido, a gente joga o que a gente queria falar fora e a nossa evolução vai indo mais devagar.”
Parágrafo pisca-pisca: “O mundo é incrível”, lembra Olivia. Uma vez, ela gravou um stop motion de um jeito inventado e ficou melhor do que o jeito ensinado pela mãe. Então, ela passa a informação no telefone sem fio: “crianças podem ter opiniões melhores que as dos adultos”.
Artigo 20º: Os adultos escutam melhor que as crianças. Mentira! “São as crianças”, defende Catarina.
Em caso de esquecimento:
Sob pena de:
I – “Perder a confiança das crianças ou não saber o lado delas.” – Marina, 13.
II – “Ter que “aprender a sonhar novamente.” – Akin.
Nota de rodopiar: “As crianças podem nos apontar soluções simples que, de tão simples, parecem mágicas ou impossíveis”, diz Ana Marcílio. “Elas nos convidam a pensar e acreditar que outras formas de vida são possíveis, basta a gente se esforçar um pouquinho.” Então, de acordo com ela, cabe ao adulto “recuperar sua habilidade de encantamento, de estranhamento e de criação. Reencontrar a esperança e se abrir para a mudança”.
Artigo 21º: “Ser criança tem aquela sensação de que tudo é uma montanha-russa repleta de coisas legais. É muito incrível e mágico” – Olivia, 9.
Parágrafo para colorir: “As crianças têm que ter liberdade e amor. Brincar muito e nunca deixar de ser feliz.” – Mariá, 7.
Artigo 22º: “O que faz uma pessoa ser legal de verdade”, diz ela, “é brincar muito e ser engraçada”.
Um) “A melhor parte de ser criança é se divertir e sonhar sem limites” – Akin, 10.
Dois) “É não ter grandes responsabilidades” – Taylor Gabriel, 12.
Feijão) “Brincar em casa!” – Catarina, 4 (Essa redação foi escrita na rua, em um passeio de bicicleta).
Parágrafo tomando banho de chuva: “Quero ter o mesmo pensamento que eu tenho hoje em dia, mesmo quando for adulta”, diz Marina, 13. Para isso, crianças de todo o mundo devem:
tin) “Sempre confiar nelas mesmas”;
dô) “Nunca desistir dos seus sonhos”;
lê) “Ser felizes”;
lê) “Continuar sendo felizes”.
Parágrafo dando estrelinha: “Eu sei que sempre terá uma criança dentro de mim, quando eu for pequeno e quando eu for maior” – Akin, 10.
Artigo 23º: Por fim, revogam-se todas as leis que brigarem com este Manual.
Assinam este Manual
As crianças de Salvador, São Paulo e de todos os lugares onde brincar é lei e a imaginação é Constituição.
Um espacinho deixado para o comentário dos adultos
A brincadeira de escrever este Manual escutando as crianças é também uma forma de incentivar a participação política desde cedo, observa Ana Marcílio, mestra em Educação e Justiça Social. De acordo com ela, quando as crianças são ouvidas, “constroem uma autoimagem positiva e sentem que pertencem a uma comunidade que as acolhe e respeita, mesmo que ainda sejam pequenas e estejam conhecendo esse mundão”.
Os adultos também começam a reconhecer essa importância. Em 2024, foi sancionada a Lei nº 14.826, conhecida como Lei do Brincar, que estabelece essa expressão humana como um direito fundamental e coloca a brincadeira no centro do desenvolvimento infantil. A norma reforça políticas integradas entre educação, saúde e proteção, garantindo que o brincar seja prioridade na vida das crianças.