Cultura das infâncias: afinal, o que significa ser criança?

Brincar está no DNA das crianças e, entre os pares, elas aprendem as lições mais importantes de suas vidas

Camilla Hoshino Publicado em 03.05.2022
A foto mostra um adulto puxando um carrinho com uma criança em cima. Duas crianças empurram o brinquedo pela parte de trás.
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Resumo

Além de ser uma fase-chave para o desenvolvimento humano, a infância pertence a um universo muito particular, onde o brincar é um fim em si mesmo. Entre seus pares, sem desnível de poder, crianças aprendem as lições mais importantes de suas vidas.

Os adultos geralmente querem oferecer às crianças modelos de conduta e insistem em educá-las para ser gente grande. É muito comum que, na batalha contra o ócio, preencham integralmente o tempo dos pequenos com atividades extracurriculares, valorizando muito o “tornar-se” e esquecendo-se do que está acontecendo no momento presente. Mas as crianças possuem uma temporalidade própria de sua natureza, uma expressão da consciência que envolve encanto em seus aprendizados e manifestações. Esse universo, no qual adultos possuem um papel fundamental, é chamado de cultura das infâncias. 

A cultura das infâncias diz respeito ao patrimônio material e imaterial das infâncias.

A pedagoga e consultora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, Ana Cláudia Leite, explica que existem três aspectos dessa cultura: as práticas e produções feitas pelas próprias crianças; aquelas produzidas por adultos para as crianças; e as que são consequência da relação adulto e criança. Isso nada mais é do que o conjunto de brinquedos, brincadeiras, parlendas, cantigas, cirandas e experiências artísticas que atravessam a história. “Essas práticas ganham diferentes nuances de acordo com as regiões e se transformam ao longo do tempo, pois com cada criança nasce o poder do novo, da invenção e da criatividade”, afirma.   

Brincar livre, o motor da cultura das infâncias

Por mais que sociedades e culturas se modifiquem, e que existam muitos jeitos de ser criança, imersas em diferentes contextos, há um elemento comum que sustenta uma universalidade nas infâncias: o brincar livre. Afinal, se tem algo que as crianças não fazem é brincar por obrigação. “Quando brincam, as crianças expressam com muita potência quem elas são e percebem no mundo múltiplas possibilidades, sendo o corpo o principal veículo de construção de conhecimento”, diz Ana Cláudia. 

Talvez seja por esse motivo que a música, como movimento, atravessa de forma tão certeira esse período da vida. Cantar é deixar que uma magia profunda aconteça, é perpetuar a geometria sonora que constrói uma narrativa particular: crianças não brincam para aprender, crianças brincam para ser feliz, garantiu a educadora e musicóloga brasileira Lydia Hortélio

Como defende a pesquisadora e educadora musical, Lucilene Silva, as canções infantis que passam de uma geração a outra carregam desafios imprescindíveis ao desenvolvimento da criança: os ritmos, gestos e movimentos da música brasileira; a beleza da poesia popular; e a diversidade cultural do país. “Proporcionar às crianças o contato com este repertório significa garantir a possibilidade das mais diversificadas experiências”, defende. 

 A música da infância, como disse Lydia Hortélio, é nossa língua materna musical.

Lydia Hortélio, que passou uma vida documentando as infâncias brasileiras em seus acalantos e brincadeiras, conhece bem o bê-a-bá de tantos encantos proferidos pelas crianças. Seus registros revelam a mais pura simplicidade – embora engenhosa – do brincar: conchas que viram chocalhos; madeiras se transformam em barcos; folhas são servidas como alimento em fogões de barro. Brincando se produz cultura. 

Pesquisadores da infância discutiram a cultura das infâncias durante a Ocupação Lydia Hortélio, organizada pelo Itaú Cultural, em parceria com o Instituto Alana, em setembro de 2019. 

Aprender com iguais

A experiência do brincar é o “currículo informal” da educação, que carrega disputas, lideranças, mas também diálogos, acordos e cooperação. No contexto das brincadeiras, as crianças se comunicam de igual para igual, com mais sinceridade e sem a pretensão de controlar ou transmitir alguma lição. E parte do processo de construção da independência envolve ganhar coragem. Para Ana Cláudia, é essencial proporcionar interação espontânea entre crianças de idades diferentes. “Os mais velhos se sentem valorizados pelas suas aprendizagens já construídas e os pequenos têm a chance de serem cuidados, não pelos adultos, mas pelas crianças”, diz. 

Estudando a literatura sobre os modos de interação entre as crianças em sociedades de caçadores-coletores, antes do advento da agricultura, o psicólogo e professor no Boston College, Peter Gray absorve algumas lições interessantes sobre a cultura das infâncias, como o fato de que crianças são especialistas em educar a si mesmas, sem interferência dos adultos. Para ele, mesmo que haja interação e influência, a principal diferença entre adultos e crianças está relacionada ao desnível de poder, o que gera desequilíbrio em suas interações. 

Não à toa, o psicólogo do desenvolvimento, Jean Piaget, já observava o senso muito mais sofisticado e útil do estabelecimento e subversão das regras entre o brincar entre crianças do que entre crianças e adultos. Piaget apresenta essas reflexões em 1932, em sua obra “O juízo moral na criança”, com base em seus estágios de desenvolvimento cognitivo. 

No entanto, os adultos são fundamentais na vida das crianças, seja cuidando ou mediando determinadas experiências. Mas se voltarmos o olhar para nossas próprias infâncias, recordando quem foram nossas referências, é possível dar luz a novas compreensões sobre o nosso papel diante da criação, socialização e educação das crianças: crianças podem aprender as lições mais importantes da vida com outras crianças e não com adultos, observa Peter Gray. 

Para a pedagoga Ana Cláudia Leite, os adultos têm um papel central em criar condições e  ambientes que permitam que as crianças preencham seu tempo a partir do próprio olhar e interesse, desenvolvendo o propósito que nasce dela, sendo sujeito produtor de cultura. “O tempo da criança acontece no presente. Não devemos impor a lógica adultocêntrica, racional, de controle e planejamento ou olhar para as consequências das ações. Crianças constroem e destroem castelos, fazem desenhos maravilhosos e rasgam”, exemplifica.  

Para a criança, brincar é um fim em si mesmo.

Confira 5 dicas de filmes para refletir sobre a cultura das infâncias:

Território do brincar

Parte de um projeto de pesquisa de 21 meses, o longa retrata a vasta geografia de gestos de crianças das mais diversas realidades brasileiras, para encontrar caminhos por dentro de todos nós.

Gestos do chão

O filme discute a relação da terra com o corpo e a imaginação da criança. Especialistas abordam como a paisagem, a matéria e o gesto do brincar fundamentam na criança noções de pertencimento e identidade.

Disque quilombola 

Por meio de uma genuína brincadeira infantil, crianças de uma comunidade quilombola e em um morro na cidade de Vitória, no Espírito Santo, falam de suas raízes e desvelam o quanto a infância tem mais semelhanças do que diferenças.

Brincante

Uma viagem musical pela obra de Antonio Nóbrega, que dedicou a vida à leitura da cultura popular, passando a fazer parte do imaginário cultural brasileiro. 

Tarja branca

Com a participação de Lydia Hortélio, o filme é um manifesto sobre a importância de continuar sustentando o espírito lúdico, que surge na infância, mas que é impelido pelo sistema a ser abandonado na vida adulta. 

Mitã

Um documentário que fala sobre a poética da infância, inspirada por Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Lydia Hortélio, trazendo importantes ideias sobre educação, natureza, espiritualidade e a Cultura da Criança.

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