Educação: ‘o medo é um calaboca na espontaneidade de uma criança’

O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral responde ao vídeo da palestrante Simone Gaspar Quaresma, em que encoraja os pais a baterem nas crianças com vara

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 01.04.2019
Imagem de uma criança sentada no chão encostada com os braços cruzados sobre a perna e a cabeça abaixada. Ela está apenas de meia, e uma mochila no chão.
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Resumo

Nosso colunista, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, escreveu uma carta em resposta ao vídeo da palestrante Simone Gaspar Quaresma, que viralizou na internet na última semana. No vídeo, ela encoraja pais a baterem nos filhos com vara para discipliná-los.

Carta de uma vara usada para bater à criança que apanhou

“Oi.

Desculpe.

Eu vou te pedir desculpas o tempo inteiro. É porque eu não sei fazer diferente, quando sou tomada por tanta vergonha assim.

Oi.

Oi, Criança. Eu sei que você está chorando. Mas eu posso entrar aqui, no meio do seu choro, para te dizer umas coisas? Eu posso? Por favor, eu preciso! Eu preciso te dizer, estou tão necessitada de te falar! Você pode me escutar? Pode ser chorando mesmo. Pode ser com raiva de mim, não tem problema. Eu aguento, preciso aguentar a minha dor de te ver assim. Por favor, me deixe falar com você.

Eu sou aquela vara que bateu em você. Eu deixei marcas em você. Eu estava no ar ainda, quase chegando no seu corpo, quando eu escutei a sua pele gritando para mim: “fique longe de mim, eu sou sensível!”, mas eu não sou quem evito as marcas que eu posso deixar em você. Eu sou um pau mandado. Eu sou um instrumento, eu sou usado por gente que acha que isso é forma de educar. Eu sofro, porque não nasci para te maltratar.

A minha Mãe, a Mãe Terra, me fez árvore. Eu comecei na vida uma semente, como você. Eu demorei para descobrir quem eu era. Eu também mamei, a minha mãe me dava seiva, e assim eu crescia. Os passarinhos vinham me visitar, ainda quando eu era criancinha também, frágil, um raminho no meio da mata. Não sei se você sabe o que é adolescência, é quando a gente começa a mudar o corpo. Eu adolesci também, como vai acontecer com você daqui a alguns anos. Meu corpo começou a ficar forte, um tronco potente e folhas cresceram em copa. Fiquei forte, sentia-me invencível. Um dia veio um homem aqui e arrancou-me um pedaço.

Um tempo depois, eu vim parar aqui como vara de bater em criança na mão desse adulto que te bateu. Imagine a minha dor: eu era parte do mundo da Mãe Terra, sendo sombra e alento para tantos animais e humanos. Não fui feita para causar dano.

O destino de uma árvore não é ameaçar, não é ser parte do grito insano nem da pretensa prática educativa de nenhum adulto em desvario.

Vixe, falei complicado. “Não é ser parte do grito insano nem da pretensa prática educativa de nenhum adulto em desvario”. É que eu vou ficando indignada, e aí eu começo a falar mais alto e mais difícil. O que eu queria dizer é que eu não fui feita para machucar. A minha Mãe Terra (que é sua Mãe também, mas uma Mãe maior, não a sua mãe humana) quer que eu seja apoio, mão dada. Os galhos de uma árvore são os braços estendidos para toda a natureza poder viver um abraço.

Quem tem a coragem de transformar um abraço de um galho em um grito e um tapa não deve estar mesmo bem da cabeça e do coração.

Além de tudo, bater em criança é crime. Tem uma outra Vara, com vê maiúsculo, que é a Vara da Infância e Juventude, que é o lugar de denunciar isso. Veja aí, não tem Vara nenhuma pra bater, só pra proteger.

Sabe, Criança, há muito tempo neste mundo os adultos pensavam que fazer da árvore uma vara era um jeito de educar. Como é que pode? Achar que bater, fazer a criança sentir dor pode ajudá-la a entender como lidar com o mundo, com as regras da vida e do ser humano? Pois é. Sabe, Criança, o mundo dos adultos inventou essa. Inventou que criança é um ser difícil, que tem que ser domado, porque manipula. Ainda tem gente que acha que a criança é um ser maquiavélico, que está pronto para fazer da vida do adulto um inferno. Sabe o que acontece?

O mundo passou séculos e séculos batendo em crianças, então todos achavam que isso era normal. Os adultos que pensam isso também apanharam, provavelmente, de outras varas.

Também viveram uma infância em que foram mal interpretados. Esses adultos foram crianças silenciadas, que tiveram que se render à força de seus cuidadores, por puro medo. Esses adultos viveram muitos medos, e o medo é um calaboca na espontaneidade de uma criança. O medo paralisa, faz a criança ficar que nem uma árvore, só que sem a tranquilidade de uma árvore. O medo faz a criança virar uma árvore amarga.

A amargura funciona assim: a criança vai crescendo, e o medo que ela não consegue gritar vira raiva.

A criança vira uma árvore amarga, paradinha, crescendo com a raiva correndo como seiva dentro dela. Um dia, ela vira um adulto cheio desse sangue odioso acumulado, de uma tal forma que ela talvez nem ligue aquela raiva toda ao que viveu lá na infância. Mas a real é que ela virou um adulto raivoso. Aí, quando tem criança pra educar, ela se vê como o adulto que bate, que foi o que ela aprendeu quando era apenas filha ou filho.

E olha, Criança, vou te dizer uma coisa. Há muito adulto querendo virar esse jogo. Muita gente mesmo. Eu vejo a vida melhor no futuro, você já escutou essa música? Escute, é linda. Tem muito adulto querendo pular esse muro de hipocrisia, de achar que criança tem que apanhar e ser humilhada para aprender o seu real tamanho e deixar de ser manipuladora com os grandes. Eu não imaginava mais estar nas mãos de um adulto batendo numa criança que só precisa de muita conversa e amor para aprender a crescer em paz, feliz e potente para fazer desse mundo um outro mundo.

Eu não imaginava habitar um tempo em que eu ainda tivesse que pedir desculpas para uma criança por ter batido nela.

Veja, não dá pra você entender tudo agora, mas estamos vivendo um tempo que parece andar ao contrário. Como se os ponteiros do relógio andassem para a esquerda. Há pessoas achando que a ditadura foi boa, há pessoas achando que mulheres têm que ser submissas aos homens, há pessoas defendendo que crianças vistam rosa ou azul, caso sejam meninas ou meninos. É um mundo tão confuso, que nem dá pra um adulto entender, imagine eu tentar explicar para você. E no meio dessa volta ao pior do passado, já tem gente querendo que eu volte a ser usada para bater em crianças!

Por isso tudo, eu quero te pedir desculpas. Eu estou chorando aqui, do seu lado. Eu estou envergada de vergonha. Eu estou me sentindo uma árvore morta, sem a vida que a minha Mãe Terra me deu. Eu estou me sentindo do lado do avesso da minha missão. Eu quero só te pedir desculpas: por mim, pelas pessoas que te bateram e nem sabem o que estão fazendo. Eu quero te pedir desculpas por um mundo que está achando que voltar ao pior do passado é o caminho. Eu e você, nossas lágrimas e nossas almas humilhadas e amedrontadas sabemos que não é. Eu tenho compaixão destes adultos que estão querendo reinventar essa miséria em forma de ato.

Eu quero te pedir uma coisa. Vamos juntos ali na praça. Vá brincar, correr, desenhar, pode rabiscar de preto, criar monstros, fazer o que você precisar para colocar pra fora essa dureza que você está sentindo na alma. Faça tudo o que você precisar fazer para crescer um adulto que transforme a sua dor numa grande causa humanitária. Junte-se, daqui a pouco, às pessoas que estão fazendo diferença no mundo das crianças, e trazendo o amor como o grande fio condutor das relações com a infância.

Quando você estiver na praça, me leve ali, me deixe do lado da sua árvore preferida. Se quiser, pode me enterrar, porque a minha Mãe faz de tudo uma nova vida. Eu quero que você me deixe ali, para renascer para uma vida nova. E, assim, você pode sentir no seu coração que a nossa Mãe Terra nos fez para brilharmos, cada um no seu lugar. Árvore é pra brilhar, não pra bater em criança.

Criança é pra brilhar, não para apanhar. A natureza humana pode, então, começar a renascer desse tempo sombrio.

Vá lá, me enterre como se estivesse enterrando a sua raiva e o seu medo. Nas suas mãos, estará a terra que é adubo dos futuros. Vá, linda criança. Adube este mundo com o amor que tanto está nos faltando. Dê as mãos cheias de terra ao adulto que te bateu, peça para ele sentir a textura daquilo que faz a vida brotar. Quem sabe, assim, ele possa entender que ele é feito daquilo também. Quem sabe ele consiga sentir que o amor que ainda habita nele é feito de terra, vara, lágrimas e medo. Quem sabe ele te abrace, chore, peça desculpas, sinta tristeza do que possa ter feito com você. Eu sei que, ali, suas mãos cheias de terra abraçarão este adulto e serão parte da cura do seu medo e da sua raiva.

E todos – adultos, crianças, árvores, varas, terra, lágrimas – entenderemos que o amor é mesmo o único solvente universal das trevas que reinventamos como o presente mais sombrio.

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