"O racismo de criança para criança é um reflexo do que a sociedade faz", diz a ativista Luciana Bento
"O empoderamento é uma capa protetora que ajuda a criança negra a lidar com o racismo", defende Luciana Bento, mãe, ativista e autora do blog "Mãe Preta". Leia a entrevista na íntegra.
“Como mulheres negras e mães, nosso maior medo é o impacto do racismo na vida de nossos filhos, e esse é um tema que não é discutido na maioria dos grupos de maternidade”. A fala é de Luciana Bento, autora do blog “A mãe preta” mãe das pequenas Aísha, de quatro anos e da Naíma, de dois anos.
Além do blog, Luciana é umas das organizadoras dos encontros “Iyá Maternância”, que surgiu da necessidade de conversar sobre as questões específicas das mães negras, com o objetivo de reforçar laços e formar redes de apoio.
Para Luciana, “o interessante é o poder multiplicador dessa proposta, porque cada mulher que participa das nossas reuniões convida outras, e o grupo vai crescendo ainda mais”. Luciana defende que a discussão sobre uma educação antirracista deveria ser pauta constante dos espaços que discutem a criação de filhos.
“As pessoas precisam começar a pensar: ‘como surge uma pessoa racista? Como ela aprende a ser racista? Será que eu estou ensinando ou deixando meu filho internalizar práticas racistas?’. Essas reflexões precisam ser feitas por todos os pais, principalmente por pais de crianças que não são alvo de racismo. Porque nessa situação, não há como se omitir: ou você se posiciona contra o racismo ou você está o referendando silenciosamente.”
Lunetas – Como você e sua família lidam com o racismo diariamente? Como você conversa sobre isso com seu filho e com as crianças de sua família?
Luciana Bento – A gente sabe que o racismo é um assunto muito presente. Aqui em casa, a nossa forma de abordar a questão com as meninas – que ainda são pequenas – é fortalecendo a autoestima delas. Nós ensinamos diariamente o amor próprio, porque esse é o primeiro passo para que elas não se sintam diminuídas diante de uma situação de preconceito racial.
“Outro ponto que sempre trabalhamos é a igualdade de direitos. Elas não podem ser preteridas em nenhuma situação por serem negras”
É difícil conversar sobre isso com as meninas. Acho que a principal dificuldade é saber o quanto falar sobre racismo com as crianças. Porque elas são crianças, não deveriam ter esse tipo de preocupação. Mas também não deveriam passar por situações de discriminação. Então, quando uma situação concreta acontece, quando alguém fala que o cabelo delas é feio ou duro, por exemplo, a gente consegue ter uma conversa mais específica sobe racismo, sobre a diferença entre as pessoas e a necessidade de respeitar as diferenças. Mas quando é algo mais abstrato, ainda é muito difícil.
Além disso, ter que falar sobre racismo com as crianças reacende nossas próprias dores e experiências negativas na infância. E é muito triste saber que precisamos ainda lidar com as mesmas situações, que o racismo continua afetando a vida de crianças negras e que pouca coisa mudou.
Realizado pela Unicef em parceria com a UNESCO, em 2012, o estudo “Acesso, permanência, aprendizagem e conclusão da Educação Básica na idade certa”, aponta que a discriminação é um dos principais obstáculos para o acesso à escola e a conclusão dos estudos. O Inep de 2007 aponta que, enquanto 70% das crianças brancas consegue concluir o Ensino Fundamental, somente 30% das negras chegam ao final dessa etapa.
Desde o nascimento dos filhos, as mães são bombardeadas por cobranças, culpa e comparações. Como isso se dá na vida das mães negras?
LB – Para as mães negras, essa pressão é ainda maior. As mulheres negas são tidas como fortes. Esperam que a gente não tenha dificuldades na gestação, não sinta as dores do parto ou não tenha medos e inseguranças no exercício da maternidade.
“Precisamos preparar nossos filhos para reagir a situações complicadas de racismo, assuntos que raramente são abordados entre famílias não negras”
Além disso, a maioria das mulheres negras não tem a opção de não trabalhar para ficar se dedicando exclusivamente à criação dos filhos. Muitas trabalham para se sustentar e mal têm tempo para uma convivência saudável com os próprios filhos. Isso é muito difícil, é muito pesado para as mulheres negras. A gente fica também assolada pela culpa, pela frustração, pelo medo, pelas cobranças.
As experiências durante a infância têm um peso significativo porque é neste período que estamos elaborando nosso mundo simbólico. Você pode comentar sobre os impactos do racismo na vida das crianças?
LB – É na infância que estamos formando a nossa visão de nós mesmos e descobrindo o nosso lugar no mundo. Quando uma criança é alvo de racismo e nada é feito para coibir essa situação, a criança é levada a acreditar que ela é realmente inferior, feia, ou qualquer outra coisa negativa que tenha sido associada a ela. E normalmente quando uma situação dessas acontece com uma criança negra, os adultos tendem a “fingir que nada aconteceu”, como se ignorar a situação fosse resolver tudo. Mas não. A criança entende que aqueles adultos concordam com a situação e acabam internalizando o preconceito.
Além do racismo explícito, as situações de racismo implícitas são ainda mais impactantes. Uma criança negra que não recebe carinho da sua professora enquanto todos os coleguinhas brancos são beijados e abraçados. Uma criança negra que não vê seus traços, seu cabelo sendo elogiado e, por outro lado, vê que o cabelo de princesa precisa ser liso, que o olho azul é o mais bonito. Isso é extremamente cruel porque fomenta o auto-ódio.
“Como uma criança vai gostar de si se as pessoas em sua volta não valorizam as suas características?”
São gerações de pessoas negras que cresceram não gostando de ser negras por tudo que elas ouviram ou perceberam sobre o que é ser negro durante a infância.
Lunetas: Os pais negros, para além do papel de cuidar, têm também a tarefa de desconstrução diária de todo um referencial negativo sobre o negro. Como sua família lida com isso?
LB – Esse é um desafio que a gente encara constantemente. Todos os dias, mostramos referências positivas de negritude. Uma das primeiras iniciativas que tivemos foi com relação aos brinquedos. A maioria das bonecas das minhas meninas são bonecas negras. Elas precisam se ver em seus brinquedos, precisam perceber que bonecas negras não são exceções, não são minorias. Elas estão crescendo cuidando dos cabelos crespos das bonecas, brincado de mamãe e filhinha com bonecas que se parecem com elas, e principalmente, percebendo as bonecas negras e, consequentemente, as crianças negras como merecedoras de cuidado, de carinho.
“A maioria das bonecas das minhas meninas são bonecas negras. Elas precisam se ver em seus brinquedos”
Outro trabalho diário é de mostrar negros em diferentes espaços na sociedade. A gente faz questão de mostrar um médico negro ou uma apresentadora de TV negra para que elas reconhecem a sua negritude nesses espaços.
Pessoalmente, eu deixei de trançar meu cabelos e adotei o visual black power quando as minhas filhas nasceram para que elas reconhecem seus cabelos nos meus. Esse foi um movimento importante pra mim de fortalecimento da autoestima das meninas, para que elas tivessem uma referência imediata de cabelo crespo natural. Ás vezes saímos as três com o mesmo penteado.
Outra coisa que fazemos aqui em casa é frequentar muitos espaços de valorização da cultura negra. Convivemos com muitas pessoas negras e as meninas tem vários amigos parecidos fisicamente com elas. Isso equilibra o fato de terem poucas crianças negras no condomínio ou na escola delas.
“Elas não se sentem exóticas ou diferentes porque elas sabem que existem várias outras crianças negras como elas, com cabelos crespos, lábios grossos, narizes largos”
Há problemas que envolvem crianças negras que não envolvem crianças brancas, assim como há também os problemas que atingem todas as crianças, mas são ainda mais graves para as negras. Você pode fazer uma reflexão sobre isso do ponto de vista de uma mãe?
LB – Uma mãe de um menino negro precisa se preocupar se o seu filho será “confundido” com um bandido quando sai sozinho. A gente acaba fazendo uma série de recomendações de não usar boné, não ouvir determinados tipos de música, não correr na rua e não sair sem documentos. Isso provavelmente não é ensinado pelas famílias brancas.
“Empoderar o seu filho é o primeiro passo”
A gente precisa ensinar nossos filhos a se defenderem, mas também precisamos orientá-los a silenciar em algumas situações, mesmo estando com razão, porque a gente sabe o quanto a palavra de um menino negro pode ser desconsiderada e que isso pode comprometer a própria segurança dele. Uma menina negra precisa aprender desde cedo a se proteger de propostas sexuais, porque homens adultos se sentem mais livres de assediá-las, partindo da ideia preconceituosa de que mulheres negras estão sexualmente mais disponíveis.
São alguns assuntos que nenhuma mãe gostaria de abordar com seus filhos, mas que nós, mães negras, acabamos abordando precocemente pela posição de risco que o racismo nos coloca.
Além do A mãe Preta, Luciana escreve sobre os livros infantis com protagonismo feminino negro no blog #100meninasnegras e é proprietária da Inalivros, especializada em direitos humanos e causas sociais.
individualizar os problemas e empoderar seus filhos é suficiente? Como a criança negra se relaciona com a cidade e os espaços públicos?
LB – Empoderar seus filhos é só o primeiro passo. O empoderamento é uma capa protetora que ajuda a criança negra a lidar com o racismo, mas não é a resposta para todos os problemas. Individualizar os problemas também não é solução. Não são casos isolados. O racismo atinge a todos e precisamos elaborar respostas coletivas a essas situações.
Infelizmente, as crianças negras são estigmatizadas e vistas como uma ameaça em alguns espaços públicos. Quantas vezes crianças negras que estão um pouco afastadas dos seus pais em estabelecimentos comerciais são convidadas a se retirar como se fossem uma ameaça a esses espaços? Como pais de crianças negras, ficamos apreensivos que as nossas crianças sejam vistas como ameaças.
“Em locais públicos, temos medo que nossas crianças se percam, porque nem sempre as pessoas enxergam uma criança negra como alguém vulnerável, que precisa de ajuda”
No relatório divulgado em julho de 2015, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), verifica-se que o número de homicídios entre crianças e adolescentes, entre 1990 e 2013, o número de homicídios entre jovens de até 19 anos dobrou. O número de adolescentes negros, vítimas, chega a quase quatro vezes o de brancos.
O racismo também é externado de criança para criança. Como lidar com essas crianças e o conflito entre elas?
LB – O racismo de criança para criança é um reflexo do que a sociedade faz. Quando uma criança é racista com outra criança e nenhum adulto intervém, mostrando que racismo não é algo bom, a criança que praticou o racismo se sente à vontade em fazer isso novamente e a criança que foi alvo do racismo entende que ela “mereceu” aquilo, que aquilo é o normal.
“Intervir nesses conflitos entre crianças é uma forma de ensiná-las e educá-las. Quando os adultos se omitem, eles estão colaborando para a manutenção do racismo”
Os adultos sempre precisam intervir nessas situações, porque discriminação racial não é normal, não é brincadeira de criança e não é algo que vá se resolver sozinho. Quando mais cedo aquela criança aprender a não ser preconceituosa, melhor. Porque com o passar do tempo, ela vai internalizando os preconceitos e se tornando uma pessoa racista.
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“Iyá” significa “mãe” no dialeto Iorubá.