A violência doméstica contra crianças pede vigilância permanente

Conversamos com especialistas para apontar caminhos de denúncia, proteção e acolhimento às crianças vítimas de violência doméstica

Alice de Souza Publicado em 20.05.2021
Um menino se esconde deitado no chão, embaixo da cama, segurando um bichinho de pelúcia
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Resumo

O dever de proteção às crianças é de todos. Por isso, conversamos com profissionais da saúde e especialistas nos direitos da infância para entender caminhos para denunciar, proteger e acolher crianças vítimas da violência doméstica

Henry, Bernardo, Isabella. Todos eles sofreram pelas mãos de quem deveria os proteger. São nomes que ficaram conhecidos no Brasil por serem vítimas da violência doméstica contra crianças. Não são casos isolados. Eles acontecem em todas as classes sociais. Muito mais do que imaginamos e é divulgado. Quando uma morte vem à tona, costumamos parar para pensar, nos indignar, chorar e cobrar medidas. Mas isso poderia ser diferente se a atenção estivesse dedicada logo aos primeiros sinais. A morte de crianças pelas mãos daqueles que deveriam protegê-las é o último estágio de algo que começa bem mais sutil.

Buscamos especialistas em saúde e direitos da criança para entender o que nós, como sociedade, temos a ver com a violência que acontece da porta para dentro do vizinho, parente ou amigo. Eles nos contam como podemos proteger estas crianças, mostram como estar mais atentos aos sinais que os pequenos demonstram e, principalmente, como acolhê-los. A seguir, contamos por que e como não fechar os olhos para a violência doméstica contra a criança.

Afinal, toda a sociedade é responsável por uma infância segura e saudável.

A situação da violência contra crianças no Brasil

A violência doméstica contra crianças, também chamada de intrafamiliar, pode ser definida como toda ação ou omissão praticada por pessoas que vivem ou coabitam a casa (pais, padrastos e madrastas, avós, tios etc.), transformando a criança ou o adolescente em refém permanente do agressor. Ela pode acontecer de várias formas. As mais frequentes são: física, psicológica, sexual e negligência. 

Por dia, o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, recebe quase 250 registros de tortura, violência física ou psicológica contra crianças e adolescentes no país. Seis em cada dez ocorridos dentro de casa e provocados por pessoas do relacionamento íntimo dos pequenos. Anualmente, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), morrem em média 200 crianças com menos de quatro anos por agressão. Entre 2010 e 2019, a quantidade de casos cresceu 268%, preocupando especialistas em defesa dos direitos da criança. 

Dados do Sinan, analisados pela SBP, mostram que sete em cada 10 casos que chegam aos serviços de saúde são abusos físicos. Os hematomas, quando frequentes, favorecem a identificação. Porém, como destaca a secretária geral da Comissão em Defesa dos Direitos das Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pernambuco (OAB-PE), Cláudia Albuquerque:

“A violência vai muito além das marcas físicas”

Negligência: a falta de cuidado

A negligência, por exemplo, que ocorre quando não se cuida, não se dá afeto, não se dá uma medicação, pode se transformar em violência física ou psicológica. “Esta não deixa marcas, é a perpetuação do sofrimento. Quando a criança tem um hematoma, diz que dói. Quando é tratada mal, não”, explica a pediatra, psicanalista, membro do Departamento Científico de Segurança da SBP e presidente do mesmo departamento no Paraná, Luci Pfeiffer. Segundo ela, a negligência gera na criança uma sensação de não pertencimento. 

“O sentimento de falta de lugar com os responsáveis é destruidora, traz angústia e ansiedade e impede a criança de se relacionar. Isso tudo pode levar à autoagressão e até ao suicídio”

Os mitos envolvidos na violência

Os casos de agressão costumam ser invisíveis, pois há uma subnotificação. Parte dela vem do mito de que laços sanguíneos são suficientes para garantir proteção e cuidado a uma criança. Mas a pediatra ressalta que pais e mães, ou cuidadores em geral, podem sim ser agressivos.

Outra ilusão que impede as denúncias é a associação de violência com pobreza. É por isso que casos como o de Henry Borel, assassinado dentro da casa da mãe e do padrasto, ou de Isabella Nardoni, morta pelo pai e pela madrasta, costumam parecer episódios isolados. 

Classes sociais e visibilidade

“A ‘parede’, na pobreza, é mais fina e espera-se que dela venha violência. Mas a violência faz parte da formação da personalidade do ser humano, do seu valor e do valor do outro, não de classe social. Quanto maior a classe social, mais invisível a violência sofrida”, ressalta Luci.

“Nos casos como os de Henry e Bernardo, a criança teve acesso a uma rede de proteção, mas a violência não foi percebida”, afirma Edinalva Severo, integrante do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária. Para ela, a sociedade tende a denunciar os casos ocorridos nas classes mais baixas porque, além das questões mencionadas acima, crê que há mais chances de punição. Para pessoas de classes altas, que podem contratar advogado, inclusive para incriminar o denunciante, o medo se sobrepõe.

“Há muitas desculpas para a violência nas classes privilegiadas, de falta de emprego a transtornos de comportamento. Mas o que importa, no fim, é o dano causado à criança”, lembra Luci. 

A violência doméstica pode virar um ciclo

A violência doméstica pode ser dividida em níveis. O leve é aquele de pessoas que aprenderam que bater educa ou que xingamento não machuca. Há casos graves, em que a criança começa a desenvolver sequelas psicológicas e comprometimento do desenvolvimento. E há ainda os gravíssimos, que terminam em morte ou consequências irreversíveis à saúde física e mental.

Quanto menor for a criança no início da violência e quanto mais tempo a violência perdurar, maiores as chances desse dano se tornar definitivo e virar um ciclo intergeracional. As consequências da violência doméstica são várias. A primeira delas é a ruptura de noção do errado. A criança cresce em um ambiente violento e tende a achar que o normal é aquilo. 

“A criança normaliza a violência e pode entendê-la como forma de amar, o que retarda o pedido de ajuda. Somente em casos extremos as crianças, já cansadas, dizem algo”, alerta Luci.

O segundo efeito é a destruição do valor de si mesma, ou seja, diante da agressão, a criança passa a achar que não é suficiente. Isso terá um efeito duplo. O castigo imediato do maltrato e a culpa que a criança pode levar para a vida toda pela violência sofrida. Em consequência, poderá reproduzir essa conduta, sem filtro, nos próprios filhos no futuro. 

O dever de proteção é de todos

Há inúmeras leis no Brasil que garantem a proteção integral da criança e do adolescente, colocando o país como um dos mais avançados do mundo nas legislações sobre o tema. De acordo com o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, é dever da família, da sociedade e do Estado proteger a criança, o adolescente e o jovem, com absoluta prioridade, “de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” 

O Brasil também é signatário da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas, e foi o primeiro país no mundo a promulgar um marco legal em defesa dos pequenos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.

O ECA e a proteção das crianças

Em vários artigos, o ECA corrobora o dever social de proteger as crianças. “O artigo 70 diz que é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente. Ou seja, diferente do dito popular, a gente deve meter a colher. Temos a obrigação de ficar atentos”, explica Cláudia Albuquerque, da OAB-PE.

Em 2014, depois do assassinato de Bernardo Boldrini, um menino de 11 anos que morreu após uma superdosagem de sedativos dada pela madrasta, o Brasil instituiu a Lei do Menino Bernardo (13.010). Com ela, o ECA foi alterado para estabelecer que “crianças e adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante”. A lei também define medidas a serem tomadas por agentes públicos, executores de medidas socioeducativas e conselhos tutelares.

Como identificar a violência doméstica?

Ainda que não haja uma verbalização, os pequenos dão sinais das agressões sofridas. “O corpo da criança fala”, explica Edinalva. Há vários elementos evidentes ao longo do ciclo da violência, o que reforça a necessidade de um olhar atento para percebê-los. 

Mudanças de comportamento, dificuldade de concentração, queda de rendimento escolar, choros, alterações do sono, pesadelos, atitudes inadequadas para a idade (como fazer xixi na cama), idas constantes ao médico com ferimentos são alguns deles. “Ninguém nasce agressivo, então, se de repente a criança começa a bater em outras, pode ser uma reprodução do que ela vive em casa”, descreve Luci. 

Há ainda um detalhe importante: quanto mais próximo é o vínculo entre o agressor e a vítima, maior o dano. Nesse sentido, escolas e centros de saúde têm um papel de vigilância fundamental, pois são os locais mais frequentados pelas crianças depois da própria residência.

A violência durante a pandemia

Por isso, especialistas acreditam que o isolamento social provocado pela pandemia, que levou ao fechamento desses serviços, pode ter contribuído para diminuir as denúncias e aumentar os casos de violência doméstica contra crianças. Dados de um relatório da SBP, de maio de 2020, mostram que os números de denúncias aos Conselhos Tutelares e Delegacias foram reduzidos a um quarto ou um quinto em comparação aos meses anteriores à quarentena. 

Abordar uma criança diante da suspeita de violência exige muito cuidado, para que ela não se sinta culpabilizada. “Dentro da violência doméstica existem relações de afeto e vínculo, não só violência. Expressar indignação na frente da criança para com o agressor, por exemplo, pode gerar remorso nela”, lembra Edinalva.

Não é preciso haver uma confirmação, ou seja, a expressão do fato pela criança. Uma suspeita é suficiente para denunciar às autoridades. Porém, caso seja necessário ouvir o relato, há cuidados indispensáveis. “Muitas pessoas perguntam fatos mais para satisfazer a curiosidade própria do que para resolver. Em um primeiro momento, o ideal é acolher e deixar a criança falar o que quer. Não fazer comentários, para não contaminar a fala”, alerta Edinalva. Perguntas como “por que te bateram?” nunca devem ser feitas, pois culpabilizam a vítima. 

O que acontece depois da denúncia

Os canais de denúncia de uma violência intrafamiliar são vários (veja abaixo). Ao decidir denunciar, é importante pensar em como proteger a criança e também o denunciante, mas nunca considerar a omissão como uma opção. A depender do local, a denúncia pode ser inclusive anônima.

Depois que uma suspeita chega ao conhecimento das autoridades, é aberta uma investigação que irá ouvir possíveis testemunhas, familiares, vizinhos, e realizar perícias. Existem profissionais habilitados para fazer uma escuta atenta e cuidadosa das vítimas. Na maioria dos casos, o agressor é identificado. A partir daí, há uma rede que atua para garantir que a criança seja protegida e os danos mitigados.

A legislação determina que a criança seja afastada de imediato do convívio do agressor, repassando a guarda para uma pessoa próxima com quem ela tenha uma relação de confiança e afeto. “É preciso cuidado nesse afastamento, como avaliar o histórico, por exemplo, dos avós. Às vezes, uma família inteira está doente, não é laço sanguíneo que garante proteção”, alerta Luci Pfeiffer. 

A garantia legal dos direitos das crianças

Por isso, a denúncia não basta. É fundamental acompanhar a investigação, o tratamento e o acolhimento oferecidos a essa vítima, ou seja, a sociedade precisa atuar também como fiscal do funcionamento da rede de proteção. “Apesar de termos uma legislação reconhecida no mundo, muitas vezes ela não tem efetividade na prática, pois existem gargalos entre os agentes da rede”, explica Cláudia. 

Desde 2017, o Brasil tem a lei 13.431, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Por meio dela, são pensadas ações intersetoriais, para cumprimento do fluxo da proteção e da investigação, e diminuir o sofrimento das vítimas. Do ponto de vista do agressor, além do cumprimento da pena devida ao fato, também estão previstas ações de tratamento. “Avaliamos o agressor, se ele realmente é perverso. Pessoas que aprenderam a educar batendo podem responder muito bem a um tratamento psicológico”, explica Luci. 

Como acolher as vítimas?

Há várias consequências (sociais, emocionais e cognitivas) da violência doméstica contra crianças. Por isso, o primeiro passo é oferecer à criança assistência médica, psicológica, psiquiátrica, psicanalítica e social. 

Nos serviços de saúde, o acolhimento deve evitar perguntas demasiadas, contando à criança tudo o que será feito e, principalmente, não prometendo aquilo que não se pode cumprir. A regra é ouvir mais do que falar e receber a criança sempre com atenção e simpatia.

A criança precisa se sentir respeitada e o adulto nunca deve emitir juízo de valor sobre o ocorrido. Por isso, demonstrar surpresa diante do relato ou falar frases como “isso não foi nada”, “vai passar” ou “não precisa chorar” leva a uma revitimização.

Uma vez rompido o ciclo da violência, o acolhimento deve resgatar o projeto de vida e a proposta de futuro da criança. 

“A criança se recupera, ela tem uma força de vida, ela percebe o respeito à volta. A gente precisa dar a elas a oportunidade de retomar laços. Ela precisa de um mundo adulto protetor”, conclui Luci.

Como denunciar?

  • Conselhos Tutelares – São uma espécie de Procon dos direitos da criança. Recebem denúncias de casos de violência física ou sexual, inclusive por familiares, casos de ameaça ou humilhação por agentes públicos e até atendimentos médicos negados.
  • Disque 100 – Para vítimas ou testemunhas de violações de direitos de crianças e adolescentes, como violência física ou sexual.
  • Disque 180 – Em casos de violência contra mulheres e meninas, seja violência psicológica, física, sexual causada por pais, irmãos, filhos ou qualquer pessoa. A denúncia pode ser anônima.
  • Polícias – Quando estiver presenciando algum ato de violência, acione a Polícia Militar por meio do número 190. Também é possível recorrer às delegacias especializadas no atendimento à nulher e às de proteção à criança e ao adolescente da sua cidade. 
  • Safernet Brasil – A rede recebe denúncias de cyberbullying e crimes realizados em ambiente on-line. Para denunciar, acesse o site.  
  • Ministério Público – Fiscaliza órgãos e agentes públicos, pode ser acionado por vítimas de irregularidades policiais, falta de atendimento no Conselho Tutelar ou outros órgãos.
  • Creas – Responsável por atender crianças, adolescentes e famílias em situação de risco, seja por violência, trabalho infantil, cumprimento de medidas socioeducativas ou violações de direito. 

 (Fonte: Unicef Brasil)

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