Como a Lei de Alienação Parental pode impactar as crianças?

Para especialistas, o único consenso é que a tarefa de proteger crianças e adolescentes é dever de todos

Eduarda Ramos Publicado em 30.11.2022
Na imagem, uma criança de etnia amarela está no meio de seus pais, que discutem.
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Resumo

“Alienação parental” é quando o pai ou a mãe induz a criança a rejeitar um de seus cuidadores. Em meio a brigas entre os responsáveis e processos judiciais, os direitos das crianças ficam expostos e, muitas vezes, não são respeitados.

Quando acontece um divórcio e o casal dá início a um processo de guarda dos filhos, como ficam as crianças? Muitas vezes, brigas entre os pais, ofensas e até chantagens emocionais podem interferir na formação da criança ou do adolescente, os induzindo a escolher um lado e rejeitar o outro. Essa prática configura o que chamamos de alienação parental.

O conceito de alienação parental, previsto pela Lei da Alienação Parental (LAP) 12.318/2010, é caracterizado pela “interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos cuidadores (pais, avós ou responsáveis), guarda ou vigilância para que o filho repudie um dos genitores ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este” (Artigo 2º).

Um vídeo, entre muitos que tomaram as redes recentemente mostrando crianças desesperadas por serem entregues ao genitor (inclusive com processos que correm em segredo de justiça), traz um alerta sobre essa “rivalidade”: nele, uma menina relata para uma psicóloga forense um episódio de abuso cometido pelo pai, aos gritos, porém o relato da criança foi dado como inconclusivo. Com o genitor acusando a mãe de alienação, a criança foi afastada temporariamente dela. Ao não ouvir a criança de maneira ativa e legitimar abusos contra ela, o caso levantou uma série de discussões sobre a LAP, com críticas de mães, cuidadores e profissionais de diversas áreas. Nas redes, o movimento contra a lei vem acompanhado da hashtag #RevogaLAPJá.

A origem da lei

Criada em 2010, a Lei de Alienação Parental (LAP) tem origem em teorias de Richard Gardner, psiquiatra estadunidense com diversas obras repudiadas por possuírem defesa explícita da pedofilia. Ele é responsável pelo conceito de síndrome da alienação parental, tipo de distúrbio caracterizado pela doutrinação da criança pelo pai ou pela mãe, em que o filho passa a rejeitar um dos genitores ao ser exposto a palavras e atos negativos constantes direcionados a ele. Porém, “o termo não tem descrição como patologia no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) nem foi incluído na última atualização da Classificação Internacional de Doenças (CID), por não ser reconhecido cientificamente como distúrbio”, pontua Márcia Zani, médica pediatra e ativista pela revogação da lei.

A pediatra Márcia Zani explica que, ao alegar alienação parental, um dos responsáveis pode colocar o acusado de alienação como um implantador de “falsas memórias” na criança – como aconteceu no caso do vídeo que tomou as redes, viabilizando que possíveis abusos e violências possam não ser reconhecidos pela justiça e “fazendo com que o cuidador acusado de alienador, que geralmente tem forte vinculação com a criança ou adolescente, possa ser afastado apesar de mostrar afeto e atenção”, diz.

“Na maior parte das vezes as avaliações e o acompanhamento dos casos não são feitos de maneira ideal. Isso acaba expondo as crianças aos perigos de serem devolvidas e continuarem sendo vitimizadas e revitimizadas através do silenciamento de seus apelos” – Márcia Zani

Desafios à frente

Para Marília Golfieri, advogada e pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões, “a Lei de Alienação Parental reflete o despreparo da sociedade e do Judiciário na proteção das populações mais vulneráveis, como crianças e mulheres, sobretudo quando há um viés de raça e classe social. De acordo com ela, as movimentações de casos pautados em alienação parental também podem evidenciar desigualdades de gênero quando o assunto é “cuidar” e mostrar como pais abusadores encontram brechas na lei, “em decisões precipitadas e no machismo estrutural que assola a sociedade e, invariavelmente, o Judiciário”, sobretudo quando apenas 38,8% do exercício da magistratura é ocupado por mulheres, segundo o relatório “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário” (2021), realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Em 4 de novembro de 2022, peritos da ONU apelaram ao novo governo eleito pela eliminação da Lei de Alienação Parental, alegando a possibilidade de acentuar discriminações de gênero. A nota relata que “tribunais de família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças apresentadas pelas mães contra os seus pais ou padrastos, desacreditando e punindo as mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos seus filhos” e que “abordagens discriminatórias resultam essencialmente em erros judiciais e na exposição contínua da mãe e da criança a abusos, a situações de ameaça de vida e a outras violações das suas liberdades fundamentais”.

Os danos não existem apenas por causa da Lei de Alienação Parental, mas sim por toda a estrutura que cerca o cuidado de crianças e adolescentes no país: “a LAP dá contornos mais específicos para um recorte da proteção física e psicológica da infância previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Constituição Federal”, explica Golfieri, pontuando que a falta de políticas públicas dedicadas às crianças, de programas assistenciais de maternagem segura e de paternidade ativa e responsável (como estabelece o Marco Legal da Primeira Infância) e a falta de estrutura do Poder Judiciário nas Varas da Infância e nas Varas de Família, são alguns dos fatores que dificultam ainda mais o exercício jurídico em casos onde é alegada alienação parental.

Fernando Valentin, sociólogo fundador e coordenador executivo do Observatório da Guarda Compartilhada, reforça o ponto de Golfieri relatando que “a proteção integral de crianças e adolescentes submetidos ao divórcio de seus pais tem de passar por um olhar de saúde pública sobre o problema”. Segundo ele, divórcio, guarda e alienação parental são muito mais questões de saúde pública do que de Direito.

“Precisamos lidar com esse problema na ótica da criança e do adolescente, e não na ótica de pai ou mãe” – Fernando Valentin

“Se tivéssemos um Judiciário que respeitasse a prioridade absoluta da infância em suas escolhas internas, com uma polícia civil fortalecida na investigação adequada e célere, a revogação da LAP não seria necessária para evidenciar as disparidades de gênero e as violências sofridas por mulheres e crianças cotidianamente, inclusive nas próprias instituições, com processos infindáveis, laudos inconclusivos e decisões afastadas da realidade das partes”, finaliza Golfieri.

“O Judiciário é só uma parte na tarefa complexa de proteger crianças e adolescentes, que requer mobilização de todos nós. Somos todos corresponsáveis nessa proteção” – Marília Golfieri

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