Ataques em escolas: a segurança das crianças começa na internet

Ameaças de atentados e propagação de ódio em redes sociais exigem atenção de pais e responsáveis sobre os conteúdos acessados por crianças e jovens na internet

Eduarda Ramos Publicado em 14.04.2023
Imagem em preto e branco de um menino branco, de cabelos no ombro, que olha para a tela de um computador. A foto ilustra matéria sobre ataques em escolas.
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Resumo

Com ataques em escolas e ameaças constantes de atentados, é necessário saber filtrar quais informações são falsas e garantir a segurança plena de crianças e adolescentes na internet, para que a exposição à violência presente no ambiente digital não leve a novos casos.

Conteúdos violentos em vídeos recomendados do TikTok, que incentivam e elogiam ataques em escolas, ou mensagens de procedência desconhecida com ameaças de novos massacres circulando no WhatsApp povoam o ambiente virtual de material que fere a integridade e segurança de todos, e tem gerado medo entre pais e toda comunidade escolar.

Se antes havia um entendimento de que era preciso conhecer o lado obscuro em camadas ocultas da internet, ou “deep web”, como se convencionou chamar a navegação na internet não indexada por mecanismos de busca, hoje não é mais preciso ir tão longe para ter acesso a conteúdos violentos e que incitam discursos de ódio: “qualquer rede social demanda que adultos acompanhem de perto o que crianças e jovens estão fazendo na internet”, diz Kelli Angelini, advogada especializada em direito digital e educação digital. Letícia Oliveira, pesquisadora que monitora grupos de extrema direita na internet há 11 anos, detalha: “Essas coisas acontecem na superfície, em redes sociais, chats de jogos, fóruns…”.

O que as plataformas têm feito diante dos ataques em escolas?

Embora o TikTok estabeleça em suas diretrizes da comunidade que proíbe “atividades que perpetuem o abuso, dano, perigo ou exploração de menores”, usuários reportam que vídeos curtos, chamados “edits”, que elogiam, incentivam e apoiam ataques em escolas e/ou criminosos, aparecem na seção de vídeos recomendados. Já no Twitter, que proíbe a produção e circulação de conteúdo com imagens reais de violência, um levantamento realizado pela plataforma de jornalismo de dados e redes sociais Núcleo Jornalismo aponta que, de 160 perfis monitorados que publicam conteúdo de ódio na plataforma, apenas três sofreram alguma forma de moderação na rede.

Por isso, “dar um dispositivo na mão de uma criança, sem controle parental ou restrições, deixando-a livre para pesquisar e para acessar tudo o que está on-line, é o mesmo que abandoná-la, à mercê de tudo de bom e de ruim que o mundo tem”, comenta Angelini. Oliveira esclarece onde deve estar a atenção de pais e responsáveis: conhecer principalmente conteúdos relacionados à “red pill” e “true crime”, alerta, que possuem comunidades fortemente expostas a atos violentos no meio digital.

  • O que é “red pill?”

O movimento “red pill” (“pílula vermelha”, em português) nasceu nos Estados Unidos inspirado no filme “Matrix”, em que o personagem Neo deve escolher entre uma pílula vermelha, que permite sair da matrix e ter acesso à verdade, e uma pílula azul, que o mantém preso a uma realidade simulada. Muitos membros dessa comunidade se definem como “homens que despertaram do sistema”, atribuindo às mulheres a culpa por coisas ruins que acontecem com eles, reforçando atos de misoginia e desigualdade de gênero em suas comunidades. Inclusive, não é incomum ver menções a meninas e mulheres como “merdalheres”.

  • O que é “true crime”?

O gênero “true crime” (“crime verdadeiro”, em português) engloba conteúdos – literários, audiovisuais – que tratam de crimes reais. Em comunidades voltadas aos entusiastas do gênero, também há quem se reúna e se organize para consumir, incentivar e cometer atos de violência como os que têm acontecido em escolas. Twitter, TikTok, Discord, Telegram, Reddit e fóruns conhecidos como “chans” são alguns exemplos de canais onde esse tipo de conteúdo é disseminado.

“É importante que os pais saibam identificar que tipo de conteúdo seus filhos estão assistindo e que podem ser arriscados. Conteúdos racistas, LGBTQIfóbicos e misóginos estão em toda a internet, virou mainstream”, afirma Oliveira

Na segunda-feira (10), o Ministério da Justiça e Segurança Pública convocou representantes de plataformas digitais para discutir ações contra ameaças de ataques. Participaram Discord, Twitter, TikTok, Meta (Facebook, Instagram), Kwai, WhatsApp e YouTube. O ministro Flávio Dino cobrou monitoramento ativo das plataformas em relação a ameaças. Quem descumprir a notificação poderá sofrer sanções, como ser alvo de investigação da Polícia Federal. O Ministério Público Federal acionou o Twitter na terça-feira (11), solicitando medidas de moderação voltadas a conteúdos que exaltam ataques e massacres em escolas brasileiras em até 10 dias.

Como identificar focos de perigo?

Segundo o relatório “O ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental”, realizado pela equipe de transição do governo atual, alguns dos meios e métodos de cooptação de crianças e jovens a ideologias de ódio são:

  • Uso de humor em memes nazistas, fascistas e/ou com discursos de ódio “irônicos”, com o intuito de relativizar e normalizar as violências, dessensibilizando o usuário e promovendo ataques a minorias
  • Uso de estética e linguagem violentas, com dialeto derivado de “chans” (fóruns onde agitadores e entusiastas dos ataques se reúnem), composto por termos misóginos e racistas
  • Trollagens em posts com o intuito de gerar discussões, geralmente com conteúdo falso
  • Uso de jogos on-line, como Roblox, Fortnite, Minecraft, em que comunidades com discursos de ódio encontradas em canais do YouTube moldam o funcionamento do algoritmo, fazendo com que o usuário chegue onde os discursos são cada vez mais extremos
  • Uso de imagens de ataques em escolas, principalmente as expostas na mídia, e compartilhamento de manifestos de atiradores como propaganda, para inspirar ataques de outros jovens
  • Estímulo à competição entre quem ataca para ver quem consegue mais atenção na mídia

O relatório também destaca a importância de não tratar como “terrorismo” todos os casos de cooptação de jovens por grupos ultraconservadores, pois nem todos os grupos e discursos necessariamente incentivam atos terroristas; que o processo de cooptação se dá por meio de interações virtuais, em que o usuário é exposto frequente e intensamente a conteúdos extremistas; e que a ideia de supremacia branca e masculina é um elemento constitutivo desses grupos, movimentos e regimes.

Oliveira, que também colaborou no relatório, sinaliza que discursos de ódio contra minorias, como racismo, misoginia e LGBTQIfobia devem ser monitorados, com ênfase na misoginia, “porque é uma das maiores portas de cooptação pela extrema direita”, conta. “A frustração que esses jovens sentem em relação a relacionamentos pessoais podem fazer com que eles desabafem na internet e sejam acolhidos por alguém que mobilize e instrumentalize sentimentos como raiva, frustração e medo”, explica.

Os alvos de cooptação pelo discurso de extrema direita são majoritariamente adolescentes brancos e heterossexuais, e a misoginia exerce um papel crucial no processo. Não à toa, mulheres são alvos frequentes de atiradores em massa.

Como evitar o contato com ideologias de ódio?

Para Juliana Cunha, psicóloga, psicanalista e diretora de projetos especiais da Safernet, organização não governamental que defende e promove direitos humanos na internet, é essencial que crianças e adolescentes tenham com os pais um “canal de conversa, confiança e abertura, em que não tenham medo de falar, de serem castigados, julgados. Assim, eles têm mais chance de procurar os pais em situações preocupantes”, comenta. Embora não seja incomum a adoção de programas “espiões” de mediação parental, se forem utilizados aplicativos do gênero, a especialista recomenda que eles sejam de conhecimento dos filhos e que existam acordos entre as partes envolvidas.

“Se os pais monitoram ou até mesmo acessam o dispositivo sem o conhecimento do filho, isso gera uma quebra de confiança, que pode levar esse filho a omitir ou esconder algo exatamente por saber que ele será monitorado.”

Além dos discursos de ódio evidenciados por Oliveira, Cunha orienta que os pais prestem atenção às mudanças de comportamento dos jovens, principalmente reações mais agressivas e repentinas, além de isolamento social, fascinação e obsessão por armas, consumo de conteúdos violentos muito visuais e pesquisas na internet sobre ataques, tragédias e conteúdos “gore”, que possuem violência explícita e extrema. A especialista reforça que “mesmo no culto e na glorificação aos ataques, é preciso entender o contexto e ver que esses atiradores e autores precisam de ajuda, apoio e acompanhamento em saúde mental”, diz.

Combinadas à exposição intensa a conteúdos de ódio, existem outras variáveis que levam um jovem a se tornar um agressor: “não é porque alguém consome conteúdo de true crime ou vídeos no TikTok violentos que essa pessoa pode vir a cometer atos semelhantes”, comenta Cunha. A especialista explica que “muitas vezes, quem frequenta esses grupos busca se sentir pertencente, aceito e valorizado, em oposição a como se sentem geralmente: isolados, excluídos, invisibilizados”, finaliza.

“Não é apenas participar de grupos que leva alguém a se engajar em atos de violência, mas ter alguma vulnerabilidade emocional precedente.”

O que deve ser feito e no que acreditar?

Ainda segundo o relatório, além de acompanhar o conteúdo digital consumido por crianças, adolescentes e jovens, prevenir e impedir os ataques em escolas passa por ações extra e intraescolares que envolvam toda a comunidade escolar e pais e responsáveis, como:

  • Manter um canal de comunicação direto com as escolas e órgãos de inteligência ligados às forças de segurança para monitorar sites, plataformas e fóruns anônimos, em vez de inserir artefatos de segurança, como catracas e seguranças armados, que, além de não enfrentarem diretamente o impacto do extremismo de direita, tendem a aumentar as ameaças e ocasionar riscos de novos atentados.
  • Criação de grupos terapêuticos e espaços de acolhimento em escolas; orientação aos profissionais da educação e à comunidade; presença permanente de psicólogos e orientadores educacionais no âmbito escolar, para detectar alterações comportamentais em crianças e jovens.

A qualidade do clima escolar deve ser promovida por meio da gestão democrática da escola, redes e sistemas de ensino, fator decisivo para a prevenção da violência e da cooptação de adolescentes e jovens pelo extremismo de direita.

Segundo a Agência Brasil, a volta das atividades na Escola Estadual Thomazia Montoro, que sofreu um ataque no dia 27 de março, incluiu o apoio de equipes multiprofissionais de saúde, a partir de segunda (10). Ao longo da semana, estudantes participam de rodas de conversa, oficinas de consciência corporal e jogos colaborativos. A escola passou também a contar com reforço da Ronda Escolar e apoio constante do Gabinete Integrado de Segurança e do Programa Escola Mais Segura, ações que resultam da iniciativa integrada das secretarias estaduais da Educação, de Saúde, de Justiça e Cidadania e Segurança Pública, com apoio do município e da organização não governamental Instituto Superação.

Diante de ameaças de ataques em escolas amplamente compartilhadas nas redes sociais, Angelini recomenda “desconfiar, ter pensamento crítico e saber que nem tudo que chega nos grupos de WhatsApp é verdadeiro. Depois, checar se a informação foi validada por sites confiáveis antes de compartilhar, para ver se aquilo é verdadeiro e se vem de fonte segura”, complementa.

Para a psicóloga Vanessa Gebrim, “consumir conteúdos sensacionalistas desses casos pode acabar fazendo com que as pessoas fiquem mais angustiadas e desesperadas”, diz. Segundo ela, neste momento é melhor substituir o pânico por uma aproximação da escola dos filhos, para “entender que estratégias os outros pais buscam e esclarecer dúvidas em relação à segurança do ambiente”, comenta. Gebrim destaca, contudo, que o principal desafio é revisar a ideia de “segurança”. “O que a gente precisa é muito maior do que uma questão de muros e policiamento; segurança tem a ver com a construção de redes comunitárias, pertencimento e acolhimento diante das situações”, aponta.

“É essencial lutar contra narrativas de ódio que têm sido muito presentes em nossa sociedade”

Como denunciar?

Em parceria com a Safernet, o Governo Federal lançou a plataforma “Escola Segura”, um canal exclusivo para receber informações sobre ameaças e ataques em escolas. Todas as denúncias são anônimas e as informações são mantidas em sigilo. Também é possível denunciar pelo Disque 100 via WhatsApp, enviando mensagem para o número (61) 99611-0100. Caso você receba alguma notícia falsa nas redes sociais, Angelini recomenda denunciar a postagem ou mensagem para a plataforma implicada. “É importantíssimo denunciar informações falsas para que não tragam mais prejuízos para mais pessoas”, finaliza.

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