De onde vem o medo de falar sobre gênero na escola?

Em meio a pressões conservadoras, professores e estudantes temem falar sobre questões que ajudariam a prevenir uma série de violências

Michele Bravos Publicado em 29.03.2023
Uma menina está num consultório de psicologia conversando com um profissional que faz anotações num papel. Ela usa blusa branca e calça marrom
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Resumo

Ao não se debater gênero na escola, quem sai perdendo são professores e alunos. Por que falar sobre o tema e assuntos correlatos, como a prevenção contra a violência sexual e de gênero, tem gerado tanto medo?

Toda criança brasileira tem direito à educação, “com liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, diz o artigo 206, da Constituição Federal. Mesmo assim, a sala de aula tem virado um centro de combate a pautas classificadas como “imorais” ou “doutrinárias”, como tem sido a tentativa de conversar sobre gênero na escola.

Como exemplo do avanço da extrema direita no Brasil, a cidade de Arapongas (PR) tem duas leis municipais que impedem os professores de lecionarem com liberdade. Uma é a número 4.609/2017, que proíbe a “doutrinação”, a outra é a 4.622/2017, que interdita explicitamente a “ideologia e igualdade de gênero”.

É sob um clima de discordância entre professores, conservadores de um lado e progressistas de outro, que o professor de Sociologia e líder sindical Márcio Diniz tenta seguir. “Os colégios costumavam promover eventos abertos à comunidade escolar sobre questões relacionadas a gênero, como combate ao machismo, à violência contra mulher, à LGBTQIA+fobia, mas esses encontros pararam de acontecer. Os professores já não se sentem seguros e, quando fazem algum evento assim, é de forma mais discreta.”

Como aponta o relatório “Tenho medo, esse era o objetivo deles’ – Esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil“, elaborado pela Human Rights Watch (HRW), organização que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos, ainda que o STF tente conter o avanço desse movimento conservador, derrubando e considerando inconstitucionais leis nessa vertente, ainda restam uma lei estadual (no Ceará) e 20 leis municipais em vigor, como é o caso de Arapongas.

“Desde o início da lei, professores progressistas – incluindo eu mesmo – ficamos com medo da represália, quando alunos foram incentivados a gravar e postar nossas aulas, se as considerassem doutrinadoras”, conta Diniz. O professor relata que alunos e representantes de movimentos estudantis, acostumados “a trazer à tona a discussão de gênero, problematizando o que viam ao redor e publicando nas redes sociais”, também passaram a evitar o assunto.

Para o pesquisador da HRW Christian Cabrera, o medo de falar sobre gênero e sexualidade dentro das escolas pode afetar crianças e jovens. “No Brasil, um país com altos índices de violência de gênero, informações podem ajudar a prevenir parte dessa violência”, afirma. O tema, necessário para evoluirmos como sociedade, precisa ser debatido em ambientes seguros e acolhedores para que as escolas desenvolvam a empatia e o respeito às diversidades.

Na cidade de Porto Alegre (RS), por exemplo, a professora da rede pública de ensino Maria Gabriela Souza reafirma a importância do acesso às informações. “Nosso bairro tem altos índices de violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres. No início, escutava: ‘como alunas tão novas estão falando sobre um assunto de gente grande?’. Foram as próprias alunas que explicaram que as maiores vítimas da violência sexual são crianças de até 13 anos de idade, devolvendo outra pergunta para a comunidade:

“‘Se não falarmos desse assunto, quem vai combater o abuso sexual contra nós?’.”

Para Gabriela, o diálogo sobre gênero na escola desconstrói tabus e preconceitos, permitindo extrapolar os muros do ambiente escolar, gerando reflexões e ações para o bem de todas as pessoas. “Quando debatemos, rompemos com o silenciamento que leva à desinformação, à opressão e à violência”.

Sala de aula não é lugar de medo

Para entender de onde vem o medo recorrente nas salas de aula é preciso voltar um pouco no tempo. Vamos começar pelo Movimento Escola Sem Partido (ESP), na ativa entre 2004 e 2019. Por meio de projetos de lei (federal, estadual e municipal), eles combatiam a chamada “doutrinação”, pontuando a necessidade do Estado de impedir questões de gênero nas escolas.

Ainda que seja incorreto dizer “ideologia de gênero”, o termo, que já havia sido utilizado pelo Vaticano em 1990, foi resgatado em 2009 pelo então deputado Jair Bolsonaro. Ele classificou como “ideologia de gênero” uma das orientações do Plano Nacional de Direitos Humanos sobre o respeito a todas as formas de orientação sexual e identidade de gênero, incluindo o respeito às diferentes configurações familiares. Em 2014, quando o Plano Nacional de Educação (PNE) estava sendo implementado, o termo “ideologia de gênero” ganhou projeção nacional e parcelas conservadoras da sociedade impediram, por exemplo, que metas anti-preconceito fossem incluídas a favor da população LGBTQIA+.

Devido à convergência que existia entre o Escola Sem Partido e o combate à “ideologia de gênero”, as pautas se mesclaram. A partir de 2015, houve uma crescente de projetos de lei do ESP, ganhando ainda mais força em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência. Em 2019, ao perder força política, o Escola Sem Partido encerrou suas atividades. No entanto, a comunidade escolar ainda colhe os resquícios desse período, uma vez que as ideias propagadas e defendidas continuam presentes.

Sala de aula não é lugar de desinformação

Ao associar o ensino sobre gênero a algo perigoso para crianças e jovens, inclusive apresentado-o como um estímulo à atividade sexual precoce, alguns políticos avançam na popularidade, afirma Cabrera. “​​Infelizmente, alguns políticos usam essa estratégia para motivar apoiadores conservadores no Brasil, principalmente quando a pauta envolve escolas.”

Em contrapartida, 73% dos brasileiros acham que a educação sexual (ou educação integral em sexualidade) deveria fazer parte dos currículos escolares, como mostra uma recente pesquisa do Datafolha.

O professor Diniz lembra que abordar essa temática em sala de aula sempre ocorreu dentro dos limites estabelecidos pelas orientações curriculares: compreender o papel social de gênero e preconceitos em virtude do gênero ou sexualidade. “Como professor de sociologia, eu costumava trazer o assunto em vídeos e leituras de pensadoras da área, como as feministas dos anos 1960 e 1970 [responsáveis pela elaboração do conceito de gênero e sexualidade], provocando uma troca entre os estudantes, sempre instigando conexões com as vivências do dia a dia“.

Para a professora Maria Gabriela, o ensino sobre essa diversidade na escola cria espaços mais acolhedores, principalmente para as meninas. Em uma ocasião, tais reflexões conduziram as meninas a pensarem sobre pobreza menstrual: elas perceberam a ausência de algumas colegas durante o período menstrual, por falta de absorventes, o que as levaram a buscar doações, por exemplo.

Segundo a professora, uma abordagem alinhada com a realidade dos alunos pode ser útil ao romper tanto a ideia de imoralidade, de que isso estimularia a vida sexual precoce, quanto a ideia de superficialidade, em que pontualmente se falará sobre prevenção à gravidez. As reflexões também contribuem para uma educação democrática ao promover o conhecimento de direitos, de igualdade de gênero, autoconhecimento e estratégias de cuidados de si e do outro.

Sala de aula não é lugar de censura

O professor Diniz percebe que a conexão entre religião e política, cada vez mais evidente no país, inflama o combate – e não o debate – na escola. “No nosso grupo do WhatsApp, os professores mais religiosos sempre mandam vídeos com argumentos ‘contra gênero'”.

Na cidade de Arapongas, o Plano Municipal de Educação foi alterado em 2015, com a retirada do termo “gênero” de todo o documento. “Mais de mil professores tentaram impedir a remoção, mas outros professores, de grupos religiosos mais conservadores, pressionaram os vereadores que acabaram por acatar”, conta Diniz.

Numa tentativa de capacitar docentes para enfrentar possíveis censuras dentro da escola, um grupo de 80 entidades de educação e direitos humanos lançou o “Manual de defesa contra a censura nas escolas. Nele constam orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e ensinar.

Ir contra a disseminação dessas informações demonstra, para o pesquisador Cabrera, um profundo desrespeito às leis brasileiras e internacionais que protegem a educação sexual. A movimentação em torno de impedir o diálogo sobre gênero na escola tem forte articulação com outros projetos de educação, como o ensino domiciliar e as escolas cívico-militares, o que mantém o movimento ativo.

Sala de aula é lugar de debate

As professoras da rede pública Maria Gabriela (RS) e Lucidalva Gonçalves (SP) são responsáveis por projetos que abordam gênero em suas respectivas escolas, driblando os ataques políticos, as insatisfações de alguns familiares e até de outros colegas.

Na escola de Maria Gabriela, no Rio Grande do Sul, ela é uma referência para os alunos abertos à discussão, orientando três projetos nos últimos anos: o projeto “Desconstruindo gênero” levou os alunos a repensarem estereótipos e frases preconceituosas, como “menina não sabe jogar futebol, a partir da literatura“, foi premiado no Salão Jovem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; no “Chama violeta”, alunas explicavam o que são as partes íntimas e o que é abuso sexual, alertando para essa violência, a partir da contação de histórias; e, por fim, o projeto “Garotas de vermelho”, de combate à pobreza menstrual, com doação de kit de saúde menstrual e elaboração de uma história dedicada ao público infantil.

Em São Paulo, o projeto Consciência Feminina na Escola (CFE) começou falando sobre pobreza menstrual. Na sequência, atendendo a uma proposta das próprias alunas, se debruçou sobre questões raciais e de orientação sexual. Dentre as atividades realizadas, teve pesquisa sobre quais livros da sala de leitura da escola eram escritos por mulheres negras, e palestras sobre sexualidade. Para a professora, apesar das dificuldades, é preciso ir além da superfície e aprender a abordar também questões sobre identidade de gênero, orientação sexual, responsabilidade emocional e afetiva. “Ainda vejo uma extrema falta de habilidade dos educadores em falar de assuntos do universo LGBTQIA+, que também envolve gênero”.

Para que iniciativas como essas possam continuar existindo e outras tantas possam surgir com liberdade, o pesquisador Cabrera destaca duas recomendações a partir do relatório da HRW:

  • Políticos devem abster-se de fazer declarações públicas que equiparem educação sobre gênero e sexualidade à “erotização prematura”, “ideologia de sexualidade”, “ideologia de gênero” e “doutrinação”.
  • Eles também devem parar de intimidar, ameaçar, assediar ou mobilizar as redes sociais contra professores individualmente por abordarem o tema.

Estes são os primeiros passos para mudar o cenário de medo no qual professores e alunos se encontram. “Essas declarações públicas podem ter um impacto muito grande na impressão da sociedade sobre o que é educação em sexualidade. Por isso, não se deve atacar esse tipo de informação, mas fortalecer a temática no currículo da educação básica e na formação inicial e continuada de professores”, destaca Cabrera.

“Medo e sala de aula não combinam, porque a sala de aula é lugar da expansão do conhecimento, de conversa emancipatória. É onde os alunos podem expandir sua visão crítica, em relação ao mundo, às pessoas, a tudo que os cerca”, reforça Diniz.

“Sala de aula é lugar de questionamento constante e reinterpretação de si mesmo e da sociedade”

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