Precisamos falar sobre sexualidade com as crianças

Falar sobre sexualidade é muito mais do que "falar de sexo" e, por isso, a conversa pode começar já na primeira infância

Michele Bravos Publicado em 09.09.2022
Uma menina e uma mulher adulta se olham. Ambas são brancas e vestem roupas coloridas. Elas estão num quarto de criança com corações coloridos na parede. A matéria é sobre como falar sobre sexualidade com as crianças.
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Resumo

A sexualidade está presente do início ao fim da vida. Assim, família e escola devem abordar o assunto de acordo com cada idade, de forma planejada - desde respeito às diferenças, prevenção à violência sexual até sexo.

A sexualidade humana não diz respeito apenas ao sistema reprodutor. Sexo é apenas um dos assuntos nesse grande tema que é a sexualidade na infância. Conversar sobre sexualidade com as crianças também tem a ver com falar sobre autoestima, prevenção a abusos sexuais, gravidez na adolescência, respeito à diversidade ou ainda sobre consentimento.

Entendendo isso, é importante que exista espaço para essas conversas desde cedo, começando dentro de casa. Mas é preciso que as pessoas que cuidam saibam o que é, afinal, sexualidade. A especialista no assunto, Caroline Arcari, mestra em educação sexual e escritora de livros sobre o tema, explica que sexualidade é a palavra que expressa a busca pelo bem-estar na relação conosco e com as outras pessoas. É uma dimensão central do ser humano que abrange compreensão e relacionamento com o corpo humano, vínculo emocional, amor, sexo, gênero, identidade de gênero, orientação sexual e intimidade sexual.

“Sexualidade é um meio de expressão dos afetos, uma maneira de cada um se descobrir e também se relacionar com o mundo”

Por isso, segundo ela, é legítimo falar que bebês têm sexualidade e que ela nos acompanha até o fim da vida, ainda que isso possa soar um pouco estranho para algumas pessoas, num primeiro momento. Caroline oferece o seguinte exemplo para facilitar a compreensão: “bebês adoram colo, se acalmam quando estão sendo amamentados, reagem aos sons das vozes das pessoas conhecidas, colocam objetos na boca e até o próprio pezinho para entender que aquela parte do corpo é dela. Isso é sexualidade”, explica.

Em cada fase da vida, haverá uma busca diferente pelo bem-estar e pela manifestação de afetos nas relações interpessoais. Se para o bebê a sexualidade se manifesta no conforto que encontra junto à mãe ou a quem cuida, e nas pequenas descobertas que lhe revelam que ele possui um corpo, já nos anos finais da primeira infância (por volta dos cinco ou seis anos) e adiante, a sexualidade “será percebida nas brincadeiras, no ato de querer se vestir com roupas dos adultos, exercendo papéis no faz-de-conta, tentando entender as diferenças anatômicas, fazendo aquelas perguntas constrangedoras”, expõe Caroline. 

Como abordar o assunto em casa

É comum ouvir que, quando o assunto gira em torno de sexo, melhor é falar apenas quando a criança perguntar e só responder o que ela quiser saber. “Mas, e se ela não perguntar?”, provoca Caroline. 

É importante ressaltar que a relação sexual é apenas um dos componentes da sexualidade. Dessa forma, familiares podem preparar o espaço para o diálogo sobre sexo propriamente dito, de maneira planejada e intencional, naturalizando o assunto. E, sim, isso pode e deve partir de quem cuida, como sugere a especialista.

Estudos apontam que crianças expostas a informações de qualidade sobre sexualidade, corpo e relações humanas apresentam seis vezes mais ferramentas de proteção contra violência em situações com potencial abusivo do que aquelas que não tiveram acesso a informações, além de demonstrarem sentimentos positivos sobre seus corpos e autoimagem”, afirma Caroline.

O tema sexualidade não precisa ser abordado somente pela linguagem verbal, mas por atitudes ou comportamentos dos pais ou cuidadores, desde o início da vida. “A educação sexual não se dá somente por meio das explicações, mas quando se ensina e nomeia corretamente as partes do corpo, quando não se reprime o bebê que está descobrindo e tocando partes íntimas do seu corpo, quando se explica a finalidade do toque durante um banho ou troca de fraldas, por exemplo. Tudo isso possibilita que a criança cresça com uma autoimagem positiva”, explica a especialista. É  também nesse contexto que se introduz a noção de consentimento para as crianças: quem pode tocar nela, em quais lugares e qual o motivo desse toque. 

Outra forma interessante de trazer o assunto sexualidade para o dia a dia é promover brincadeiras sem distinção de gênero. “As crianças podem brincar com qualquer brinquedo sem limitações do que seria de menino ou de menina. Quando falamos de sexualidade infantil, estamos nos referindo a uma fase de exploração do mundo, do espaço, das possibilidades“, afirma Caroline.

Falar de sexualidade sem sexualizar a criança

Estimular conversas saudáveis sobre sexualidade em nada tem a ver com ser negligente ou permissivo sobre a sexualização da criança. Por isso, Caroline alerta para a importância de os adultos não verem as crianças pelas lentes da orientação sexual. “Não dizemos que a criança tem orientação sexual, mas isso não significa que ela não tenha desejos, imaginação, curiosidades e até atração por alguém no final da infância, em uma configuração que se assemelha ao que chamamos, para adolescentes e adultos, de desejo homo, hetero ou bissexual”, explica. 

Mesmo em um tempo em que há mais possibilidades de se dialogar abertamente sobre gênero e orientação sexual, é necessário que familiares tomem certos cuidados. De acordo com a especialista, a consciência sobre a orientação sexual vem ao longo dos anos, a partir dos pensamentos e também das experiências afetivas, íntimas e eróticas consigo e com o outro. “A orientação sexual é um movimento dinâmico que passamos a compreender e dar nome a partir da adolescência. Por isso, não recomendo a utilização de termos como criança cis, hetero, queer, LGBTQIAP+, trans. Esses termos surgem de uma luta política fundamental de visibilidade dessas identidades. E identidade é algo que estamos apenas começando a construir na infância”, ressalta.  

Isso não quer dizer que não há crianças que fujam dos estereótipos de gênero (por exemplo, um menino com atitudes lidas como “afeminadas” ou uma menina que não segue as regras do que é tido como feminino). Para a especialista, “podemos nos referir a elas como crianças não-normativas ou com variabilidade de gênero. Dessa forma, não se nega a existência dos desejos, das necessidades e dos sofrimentos das crianças que não obedecem às expectativas. Em uma sociedade que ainda se organiza pelo rosa e azul, infelizmente, o sofrimento dessas crianças é enorme. Elas precisam de acolhimento, tempo, atendimento multidisciplinar e proteção“. 

Famílias não estão sozinhas no papo

Junto com a família, a escola exerce um papel fundamental de propor diálogos sobre sexualidade. É aí que entra a “educação sexual. A oficial de Programa para Segurança de Insumos em Saúde Sexual e Reprodutiva, Nair Souza, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil, defende que a educação sexual siga os princípios da educação integral em sexualidade, orientada pelo documento “Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências”. 

Nair explica que um dos diferenciais da educação integral em sexualidade é que “ela tem como base o currículo escolar, por isso o tema pode ser abordado na sequência ideal para cada idade, considerando o desenvolvimento ao longo dos anos”. Os conteúdos envolvem anatomia e fisiologia sexual e reprodutiva; puberdade e menstruação; reprodução, anticoncepcionais modernos, gravidez e parto; e infecções sexualmente transmissíveis”.

Com base nessas possibilidades de abordagens e o contexto sensível da chegada da puberdade para meninas que, em 2018, o UNFPA trabalhou, em parceria com a Itaipu Binacional, no projeto “Prevenção e redução da gravidez não intencional na adolescência”, nos municípios do Oeste do Paraná, com o objetivo de levar às meninas informações de qualidade e apropriadas. 

Seguindo a lógica de demonstrar a possibilidade de se ter uma trajetória de vida baseada em escolhas seguras, o projeto buscou apoiar as meninas a tomarem decisões voluntárias, informadas e responsáveis sobre sua saúde, seu futuro e evitar gestações não planejadas. “Isso porque, a chegada da puberdade, muitas vezes, marca o início de mensagens conflitantes acerca de sexualidade, virgindade, fertilidade e o fato de ser mulher. Além disso, a menstruação é vista, em alguns contextos, como um tabu. Junto com isso vem o assunto gravidez”, exemplifica Nair.

As famílias podem ver a escola como uma aliada no diálogo sobre sexualidade, pois, se realizado de forma adequada – baseado em evidências – pode promover o empoderamento e a autonomia das crianças. “A educação integral aprimora as habilidades de análise e comunicação, bem como outras habilidades para a vida relativas à saúde e ao bem-estar em relação à sexualidade, direitos humanos, vida familiar e relacionamentos interpessoais saudáveis e respeitosos, valores pessoais e compartilhados, normas culturais e sociais, igualdade de gênero, não discriminação, comportamento sexual, violência baseada no gênero, consentimento e integridade corporal, abuso sexual e práticas nocivas, como o casamento infantil.”

Nair ressalta ainda a importância de envolver outros agentes no diálogo, além da família e da escola. “Quando a educação integral em sexualidade acontece na escola em conjunto com serviços extracurriculares, comunitários ou nas próprias unidades de saúde, isso de fato é um dos avanços mais promissores na garantia de saúde sexual e reprodutiva de crianças e adolescentes.”

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