‘Abuso sexual não acontece só com força física’, diz pedagoga

Conversamos com pedagogas especialistas no assunto para dar luz ao tema da violência sexual infantil, e empoderar não só as famílias, mas também as crianças.

Renata Penzani Publicado em 17.01.2017

Resumo

De acordo com especialistas no tema, associar o abuso sexual infantil sempre à força física é um mito. A violência pode acontecer de muitas formas, principalmente quando o abusador se aproveita da relação de confiança que tem com a criança.

A máxima “meu corpo, minhas regras”, comumente associada às causas feministas, pode e deve ser aplicado ao universo da criança. É só pensar em quantas vezes em um só dia elas são submetidas a algum tipo de proximidade corporal com pessoas com quem têm pouca ou nenhuma intimidade. Por isso, dar luz a este assunto é de importância crucial para empoderar as famílias e as próprias crianças contra a violência. O Lunetas, em parceria com a Childhood Brasil, conversamos com especialistas no assunto.

Ainda que de forma inocente e desprovida de qualquer má intenção, é comum que desconhecidos se aproximem dos pequenos, oferecendo beijos, abraços e carinhos. Porém, é preciso ficar atento ao que esses gestos podem vir a significar.

A cada uma hora, quatro crianças são abusadas sexualmente Um relatório da Childhood sobre violência sexual na infância publicado em setembro de 2016 revela que, entre 2012 e 2015, foram registrados mais de 157 mil casos de violência sexual (que engloba tanto a exploração quanto o abuso) de crianças e adolescentes. Isso significa que, a cada uma hora, há pelo menos quatro casos de uma criança ou adolescente sexualmente violentada no Brasil.

Afinal, o que é abuso sexual?

De acordo com o National Center for Child Abuse and Neglect, o abuso sexual acontece quando existem contatos ou interações entre uma criança ou adolescente com um adulto usado para estimulação sexual do abusador ou de outra pessoa.

Para a ABRAPIA (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência), “abuso sexual é uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho, baseada em uma relação de poder”.

Já para a Academia Americana de Pediatria, o abuso sexual é considerado quando uma criança é envolvida em atividades sexuais que não é capaz de compreender, para as quais não está preparada em termos de desenvolvimento e não pode dar consentimento, e/ou que violam as leis ou tabus da sociedade.

Consentimento não se aplica a crianças

São elementos chave do abuso sexual questões relacionadas à coerção e ao desenvolvimento da criança ou adolescente.

A palavra “consentimento” não se aplica a crianças, sobretudo menores de 14 anos, uma vez que elas não possuem condições de averiguar as intenções do discurso do abusador

Outra questão tem importância crucial aqui: o conhecimento sobre os limites de seu corpo. A criança precisa entender o que é afeto e o que é violência para poder se defender, principalmente para aprender a dizer ‘não’ e saber detectar atitudes abusivas de pessoas próximas.

E o mais importante de tudo: crianças e jovens vítimas de violência sexual não devem, em hipótese alguma, ser responsabilizadas elo ato

De acordo com os especialistas no assunto, um dos primeiros passos para combater o abuso está no diálogo aberto. Ou seja, se o sexo ainda é um tabu na sociedade, é preciso tirar essa sombra pelo menos dentro de casa e na escola.

Caroline Arcari, presidente do Instituto CORES, é pedagoga e educadora sexual. Para ela, é preciso quebrar o mito de que educação sexual erotiza a criança antes do tempo: trata-se, ao contrário, de permitir a ela experenciar a infância de forma plena.

“A educação sexual é a forma mais eficaz de prevenção da violência sexual”, defende a pedagoga

“A Organização Mundial de Saúde já comprovou, ao analisar mais de mil relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento de jovens, que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual. Quanto menos informação, mais precocemente se inicia a vida sexual”, afirma Arcari.

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É preciso atentar para o fato de que a violência pode partir de alguém que a criança conhece e em quem confia.

A pedagoga idealizou, em 2015, o livro “Pipo e Fifi”, que explica às crianças de forma lúdica e com texto acessível as diferenças entre carinho e abuso sexual, e alerta também para o fato de que na maioria das vezes o abuso parte de alguém que a criança conhece e em que ela confia.

“Precisamos superar o mito de que o abuso sexual acontece com o uso da força física, de forma agressiva e pontual. Aliás, na maioria das vezes, o adulto que comete o abuso o faz por meio da sedução, do convencimento, das trocas, das ameaças e dos toques abusivos disfarçados de afeto. Então, a criança permite (consente) a violência sexual, seja por medo, confusão, imaturidade e até por confiar e/ou amar o agressor (quando este é da família). Em se tratando de menores de 14 anos, a legislação entende que esse “consentimento” – que aqui não se aplica, por se tratar de um sujeito ainda despreparado para avaliar – é inválido, devido à vulnerabilidade de a criança e sua incapacidade de entender o que essa permissão acarreta”

Pipo e Fifi É uma obra internacionalmente premiada, que ensina as crianças a identificar comportamentos abusivos, além de apontar caminhos para a busca de ajuda em caso de violência sexual. Traduzido para quatro idiomas, com mais de 100 mil cópias distribuídas gratuitamente, o livro está disponível para leitura no site do projeto. Lá, há também outros materiais para download gratuito, para instrumentalizar pais e educadores.

Considerando que a questão nem sempre é clara para quem está no dia a dia com as crianças, é importante não perder de vista que pequenos gestos podem ressignificar o modo como a criança percebe o seu corpo. A pedagoga aponta algumas alternativas para empoderar os pequenos sobre o assunto.

Como proteger a criança do abuso sexual

  • A possibilidade de escolha

“É importante que as crianças sintam que podem fazer escolhas em coisas simples, dentro de limites estabelecidos pelos pais: roupas, atividades, um passeio, um programa de TV”, sugere.

  •  Não forçar a criança a abraçar ninguém

“Oferecer alternativas para a criança se relacionar com outras pessoas, sejam parentes ou não, é uma forma de não forçar o contato físico e ainda ensiná-la a ser cortês e simpática”, indica a pedagoga.

  • Ensinar limites

“Os adultos são um modelo de comportamento para as crianças. De nada adianta seguir os passos acima se os próprios adultos não pedem permissão para tocar as crianças, se ignoram a palavra “não” e “pare”, ou se forçam contato físico das crianças com outros adultos. Limite se ensina pelo diálogo, mas também pelo exemplo dos adultos”.

Conversamos também com a psicóloga Isabel Gervitz, do Toda Criança Pode Aprender, plataforma de conteúdos e referências sobre educação infantil que desenvolveu uma série para empoderar pais e educadores sobre sexualidade infantil, dividida em três partes.

  • Lunetas: O limite entre afeto demonstrado de forma física e abuso sexual pode ser muito tênue. Qual o fator determinante para separar uma coisa da outra?

Isabel Gervitz: Para a criança, o afeto está muito ligado às sensações físicas, pois ela se relaciona com o mundo de forma mais concreta do que os adultos. A maioria de seus conhecimentos vem do que ela capta através dos sentidos e a abstração é conquistada gradualmente. Justamente por isso, para ela o aspecto físico relacional é importante. Cabe muito mais ao adulto do que à criança identificar o tipo de interação física adequado.

Alguns questionamentos podem ajudar a pensar sobre isso: O contato que está ocorrendo é algo que precisa ser mantido em segredo ou é socialmente aceitável?A criança demonstra reações emocionais ou físicas exageradas frente a essa interação? Há algum tipo de angústia que acompanha o contato físico?

  • Lunetas: Sabemos que crianças são indivíduos muitas vezes com poucas escolhas, uma vez que são os adultos que definem por elas o que vão comer, vestir, quais lugares vão frequentar. No caso das relações interpessoais, como isso se dá?

Isabel Gervitz: O grau de autonomia da criança é variável de acordo com sua idade e com a as características particulares da relação com os adultos responsáveis por ela. No caso das relações interpessoais, isso é semelhante.

É importante estabelecer uma relação de confiança com a criança, permitindo que ela faça suas escolhas e tenha autonomia. Mas também é fundamental acompanhá-la, procurando conhecer as pessoas com quem ela interage e conversando com ela sobre suas atividades e sobre como se relaciona com essas pessoas (o que fazem juntas? Como brincam ou de quê? etc).

  • Lunetas: Podemos e devemos mediar as relações da criança com as outras pessoas? Como fazer isso sem ferir a individualidade da criança?

Isabel Gervitz: Não se pode conceder à criança o mesmo grau de autonomia que seria dado a um adulto, pois ela ainda não tem como arcar com as responsabilidades que isso acarreta e nem é esperado que o faça.

Também não tem discernimento para decidir até que ponto sua relação com outras pessoas é saudável, quais os limites que precisa ter etc. A infância é um período de experimentação e de exploração e, para que isso ocorra, é preciso que haja algum adulto que zele pela segurança da criança.

  • Lunetas: Considerando que o abuso na maior parte das vezes parte de pessoas próximas da criança e da família, qual o melhor caminho para empoderar a criança em relação ao contato físico sem consentimento?

Isabel Gervitz: É possível empoderar a criança, mas há limites consideráveis nesse empoderamento. De forma geral, quem tem a capacidade de prevenir ou mesmo interromper uma situação de abuso é o adulto responsável pela criança.

De qualquer maneira, é possível conversar com a criança sobre a importância dos cuidados com seu próprio corpo, indicando que ela pode recusar alguns tipos de carinho ou contato que não tenha vontade de ter e mostrando que algumas partes do corpo são muito íntimas e não devem ser tocadas por qualquer pessoa. Esse diálogo cabe quando o adulto possui uma relação de vínculo e confiança com a criança e precisa ser delicado e adequado à linguagem infantil, caso contrário não fará sentido para ela, podendo assustá-la e angustiá-la.

Outra possibilidade é explicar à criança que nem sempre os outros sabem que a estão machucando ou tendo um tipo de contato físico que ela não gosta e que nessas ocasiões é importante que ela diga algo, colocando seu limite ou pedindo ajuda.

  • Lunetas: A questão do abuso sexual faz parte de um guarda-chuva de assuntos ainda tratados como tabus em muitos âmbitos, como o sexo e a relação com o corpo. Como naturalizar o assunto, tanto na escola quanto em casa?

Isabel Gervitz: O cuidado com o próprio corpo, bem como a auto-observação sobre as reações físicas e emocionais que o contato com outras pessoas gera são extremamente importantes. Na verdade, o que é mais efetivo para que a criança seja capaz de cuidar de si mesma é um convívio diário com essa questão. Isso é oportunizado em muitos momentos do cotidiano, como em situações de higiene, nas relações com outras crianças e com adultos, ao relaxar na hora de dormir, ao realizar atividades físicas como correr, nadar, dançar, pular.

Vivenciar diversas sensações físicas e tentar percebê-las e descrevê-las pode promover uma intimidade maior da criança com seu próprio corpo. Ao se expressar corporalmente, ela irá perceber gradualmente seus limites, os contatos que gosta e os que não gosta, tornando-se muito mais apta a reparar quando algo não vai bem. Poder falar sobre as reações e sensações corporais com os adultos de referência também é uma forma de manter o canal de diálogo aberto, permitindo que ela peça ajuda quando necessário.

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A especialista Caroline Arcari ressalta que oferecer liberdade de escolha para a criança é fundamental, não a obrigando a beijar ou abraçar ninguém.

O que fazer se eu suspeitar que a criança sofreu violência sexual?

Em caso de suspeita, você pode procurar a ajuda de um profissional capacitado (psicólogo, médico, assistente social), do Conselho Tutelar da sua cidade ou da delegacia.

Lembre-se que a denúncia ou notificação deve ser feita em caso de SUSPEITA. A investigação e/ou confirmação não é realizada pelos pais ou educadores, devendo os órgãos responsáveis se ocuparem disso. Você pode procurar ajuda nas seguintes instâncias:

  • Conselho Tutelar da sua cidade
  • Disque Direitos Humanos – Disque 100
  • Ministério Público – Disque 127
  • Delegacia da Infância e Adolescência da sua cidade

Outros materiais para se informar sobre o tema

 

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