O livro de Jeferson Tenório, selecionado pelo PNLD, foi alvo de censura em escolas. Por que histórias que expõem a sociedade como ela é incomodam?
Adolescentes e educadores relatam os impactos da leitura de “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório. A obra, selecionada pelo Programa Nacional do Livro Didático, do MEC, foi alvo de censura na rede pública do Paraná, do Mato Grosso do Sul e de Goiás.
Há três anos, um clube de leitura impactou Giovana Lira, 20, de tal forma que ela desenvolveu um método próprio para convidar outras pessoas a conhecerem o livro. Depois de ler trechos que considerava crucial, via-as capturadas. “As experiências de leitura coletiva ampliam e fortalecem muito mais nosso capital cultural. Então, ninguém vai tirar isso de mim”, diz. A obra era “O avesso da pele”, escrito por Jeferson Tenório.
Pedro, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família e refazer os caminhos paternos. Com uma narrativa sensível e por vezes brutal, Jeferson Tenório traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido. Esse denso relato sobre as relações entre pais e filhos venceu o Prêmio Jabuti, em 2021.
Depois de selecionado para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático, o PNLD, e destinado aos alunos do ensino médio, o romance foi alvo de censura nas últimas semanas em escolas das redes públicas de Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul. Embora escolhido com liberdade pelas próprias escolas, o recolhimento foi sob a justificativa de palavras de “baixo calão” e temas que envolvem sexualidade.
“Essa escolha não acontece de forma leviana. Além de especialistas envolvidos no processo, o trabalho com o livro e sua leitura sempre serão mediados por um docente, responsável por contextualizar a obra a partir de materiais de apoio”, explica Thalita Saldanha Coelho, professora doutora em Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
“A mãe que defende não ter determinados tipos de literatura na escola está pensando no bem do filho dela”, diz Janine Durand, educadora e mediadora de clubes de leitura. “Essa intervenção no projeto pedagógico tem um fundo de cuidado, mas é justamente esse lugar do cuidado que vira censura.”
Por isso, para ela, o perigo está em, aos poucos, impossibilitar o pensamento divergente. “Eu compreendo que essas atitudes vêm de superficialmente julgar que um deslocamento [da realidade que se vive] vai gerar sofrimento. É o ‘não querer ver’. Mas a desarmonia social, todas as interdições, as crenças, os contornos, fazem com que a nossa sociedade esteja doente”, explica. E não se pode poupar crianças e adolescentes da conversa. Afinal, eles viverão com ou apesar das mazelas sociais.
“Como possibilitar que, por meio da literatura, as pessoas nomeiem os seus sofrimentos, as suas angústias, as suas questões?”, questiona Janine Durand.
Para alguns, os temas do livro de Tenório (as relações raciais, o racismo estrutural e a violência policial) podem ser “aquilo que não se quer ver”. Mas, para muitos brasileiros, é um retrato cotidiano. Por isso, Alexandre de Lima, 22, questiona: “Por que tentar censurar um livro tão importante para a gente? Será que é só porque retrata o nosso dia a dia? É uma coisa de se assustar, a ponto de querer tirar das escolas?”.
O estudante de pedagogia conta que um dos grandes impactos da leitura de “O avesso da pele” foi ver vidas como a dele e de sua família retratadas. “Minha mãe não é alfabetizada ainda. Comentei do livro e ela amou a história. Isso porque ela viu que essas histórias existem e que a vida dela como mulher preta e periférica pode existir também dentro dos livros.”
Casos de polêmica envolvendo livros, inclusive infantis, não são isolados, nem recentes. Literatura para adultos, independente do tema, também foi barrada nos presídios, exceto a bíblia e os títulos de autoajuda. Censurado em escolas no Brasil e nos Estados Unidos, o temor relacionado ao “Diário de Anne Frank”, por exemplo, passa pelo desconhecimento dos livros, em que momento podem ser lidos e de que maneira isso reverbera em casa. Já “O menino que espiava pra dentro”, de Ana Maria Machado, foi acusado de incitar o suicídio.
Quando um livro é censurado, se perde mais que acesso ao seu conteúdo. Perde-se a oportunidade de refletir, de enxergar e ter contato com outras realidades, de ampliar o repertório de mundo e desenvolver o senso crítico. Daí a importância de abordar temas diversos e contemporâneos por meio da literatura, para além dos clássicos.
Para Coelho, na tentativa de controlar e manipular o pensamento, perde-se também a possibilidade de contato com obras críticas e com autores premiados, como Jeferson Tenório. Contudo, “a resposta é um crescimento absurdo de procura pelo livro, alavancando vendas e, mais importante, conquistando novos leitores.”
Giovana leu o “O avesso da pele” junto de Alexandre e Ana Júlia. O trio participava com outros 15 jovens, em média, do Programa Jovem de Formação do ateliescola Acaia, escola experimental que atende em sua maioria crianças e adolescentes de comunidades na zona oeste de São Paulo. Entre as iniciativas do programa está o clube de leitura, realizado em parceria com a Escrevedeira Centro Cultural Literário e, mais recentemente, também com o coletivo Encrespad@s.
Depois de cinco anos conduzindo esses encontros, Luciana Gerbovic, sócia da Escrevedeira, mediadora de leitura e escritora, observa como os jovens “saem fortalecidos, maiores, mais desejosos. Então se descobrem autores também. Nasce o desejo de ser autor da própria narrativa. Eles poderiam escrever em primeira pessoa ‘O avesso da pele’. Pois se viram ali, se reconheceram em várias situações e os olhos brilham, porque tem alguém contando a sua história. Então, por que não vão ler aquilo que já estão vivendo?”.
O livro “O avesso da pele” foi uma das leituras das turmas de ensino médio de uma professora de literatura de uma escola particular de São Paulo, que pediu para não ser identificada por medo de represália. Eles já estavam concluindo a leitura quando a polêmica na rede pública de outros estados começou. “A nossa intenção é aproximar os alunos de realidades que são distantes da deles. Todos gostaram e acham que é relevante para sair da bolha, entender que a realidade não é só a que vivem”, explicou. “Quanto às palavras e cenas que causaram a polêmica, uma das estudantes interpretou que o linguajar tem um propósito, que é justamente discutir o racismo estrutural.”
“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são os afetos que nos mantêm vivos.” – trecho de “O avesso da pele”
Mas, as questões que envolvem polêmicas em torno da literatura, especialmente em ambientes controlados como as escolas, são complexas. Por isso, não há resposta única, nem solução simples.
Para um grupo de pais, a leitura rendeu reclamações e pressão para retirada da obra. A professora conta que o mesmo ocorreu no ano passado, quando os estudantes leram “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo. Isso porque retrata alguns temas em comum com “O avesso da pele”, como violência policial, a realidade das favelas e de pessoas que vivem à margem da sociedade. Neste ano, a autora não será lida.
Num país de não leitores, uma alternativa para ampliar o alcance da literatura é ler e conversar sobre os livros. “Quando começamos a compor espaços em que as pessoas vivem esse tipo de experiência, algo se transforma”, diz Durand. “Com diálogo, quando o outro te empresta o olhar dele, isso modifica o seu olhar. Acredito que só assim vamos conseguir avançar.”
Por isso, a experiência em torno dos livros deve extrapolar os muros das escolas e de clubes de leitura. Fazem parte desta mudança famílias que dedicam tempo a ler e conversar com suas crianças, e se interessam pelo que se passa na escola, não para controlar, mas como uma forma genuína de vínculo. “Aqui em casa eu não proíbo leitura própria para a fase em que minha filha está”, conta Renata de Salvi, mãe de Sarah, 14. “Conversamos muito abertamente sobre suas leituras, dúvidas, sensações. Assim, ela tem liberdade para escolher seus livros, desde pequena.”
Como funciona o PNLD?
Com mais de 85 anos e adesão de mais de 95% das redes públicas de ensino do Brasil, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é uma política do Ministério da Educação. Em respeito à autonomia das escolas, a permanência no programa é voluntária. Depois de avaliadas por professores, mestres e doutores, que tenham se inscrito no banco de avaliadores do MEC, a aquisição das obras literárias e didáticas se dá por meio de um chamamento público. Os livros aprovados passam, então, a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade, tendo como diretriz o pluralismo de concepções pedagógicas. Assim, fomenta a leitura de maneira sempre atualizada, já que há novas seleções a cada ano.