Como a reforma do ensino médio afeta os adolescentes?

Em meio às dúvidas próprias da adolescência, psicóloga recomenda que se fortaleça o diálogo com os estudantes que estão prestes a entrar nessa etapa de ensino

Raphael Preto Pereira Publicado em 25.09.2023
Um grupo de quatro jovens caminham por uma calçada, em paralelo a um muro. Eles usam uniforme escolar e três deles carregam mochilas nas costas
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Resumo

Como as indefinições sobre a reforma do ensino médio aumentam as dúvidas de quem está prestes a entrar nessa etapa de ensino enquanto enfrentam a complexa transição da infância para a adolescência.

Ao mesmo tempo em que a reforma do ensino médio promete oferecer aos estudantes mais oportunidades para que sejam protagonistas de sua formação e possam escolher o que querem aprender na escola, indefinições potencializam as dúvidas que são comuns na adolescência, e preocupam também pais e educadores.

“O processo de transição da infância para a adolescência, que acontece concomitante à entrada dos estudantes no ensino médio, é naturalmente complexo. É um período em que o sujeito está meio sem lugar. Ele não é mais criança, mas também não é adulto para fazer tudo o que um adulto faz”, afirma a psicóloga Milena Reis.

Segundo ela, os adultos devem manter uma relação aberta com a escola e fortalecer o diálogo com os estudantes neste momento. “Sem julgamentos, mas com empatia e paciência.” Além disso, Reis diz que é preciso esclarecer sobre as possibilidades de escolha das disciplinas e contribuir com o processo de autonomia do aluno.

O que os alunos pensam sobre a reforma?

Rafael Boeta, 14, que cursa o 9º ano em uma escola particular da cidade de São Paulo, quer ser programador. Por isso, gostaria de dedicar mais tempo às aulas de tecnologia, em vez de manter matérias como química, por exemplo. Sua maior insegurança está relacionada “ao fato de ter mais tempo de aula”, diz. Segundo ele, os estudantes não conversam muito sobre o tema. Mas, durante as aulas de projeto de vida, “os professores de cada curso explicam cada uma das matérias optativas”.

Já Deimar Cristian, 15, também do 9° ano em uma escola pública da rede municipal de São Paulo, pretende fazer curso técnico em uma escola federal. Sua referência é a irmã mais velha, que “gosta de como se ensinam as matérias” em seu curso de culinária. Para ele, retirar matérias que hoje são obrigatórias, como filosofia, pode “prejudicar muito o ensino”.

Mudanças rápidas e sem muito diálogo

A discussão sobre a reforma do ensino médio começou em 2016 por meio de uma medida provisória. Só no início deste ano o Ministério da Educação abriu uma consulta pública para ouvir a sociedade sobre as mudanças. Entre mais de 47 milhões de estudantes na educação básica, 102.338 opinaram sobre os rumos do novo ensino médio.

Embora critique o curto período para consulta dos educadores e a resistência das secretarias de educação, o professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, celebra dois pontos: a indicação de que o Ministério da Educação deve restringir a expansão da educação básica por meio da educação a distância e a mudança da carga horária. A formação geral básica retornou de 1.800 para 2.400 horas. As disciplinas optativas terão menos tempo que as  matérias obrigatórias (português, matemática, história e ciências)

Como fazer da escola uma opção viável?

Os dois novos percursos formativos serão organizados da seguinte forma: 1) Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza; 2) Linguagens, Matemática e Ciências Humanas e Sociais. Isso permitirá ao aluno escolher um curso técnico. O modelo técnico-profissionalizante, indicado por 80% dos participantes da consulta pública, além de contribuir com a capacitação e a formação do jovem, visa garantir a permanência do estudante na escola em tempo integral.

No relatório “Education at a Glance 2023”, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que compara indicadores dos sistemas educacionais de 49 países, o Brasil aparece como terceiro “pior país” em investimentos por estudante. Apenas 11% dos alunos do ensino médio no Brasil estão matriculados em programas profissionalizantes, enquanto a média dos países-membros da OCDE é de 37% na mesma faixa etária. Atualmente, o Piauí é o estado com o maior número de estudantes na modalidade, com mais de 30 mil matriculados. Também está prevista a criação de uma bolsa-estudo para apoiar a permanência do jovem na escola.

Ainda em setembro, um projeto de lei será enviado ao Congresso Nacional com propostas de mudanças no modelo. Segundo o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), “qualquer mudança a ser implementada exige um período de transição factível, motivo pelo qual as decisões devem ser implementadas apenas a partir do ano letivo de 2025”. Inclusive é essa a previsão para eventuais mudanças no formato do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que serão discutidas juntamente com a reformulação do PNE (Plano Nacional de Educação) com as novas metas para a educação no Brasil.

De acordo com o MEC, as principais contribuições da consulta pública envolvem a atenção aos diferentes contextos educacionais e especificidades regionais de cada área da educação. Além disso, prevê a criação de um programa de formação para professores e gestores que trabalham com o ensino médio.

Para Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, o grande avanço é “organizar o debate sobre o novo modelo desta etapa de ensino e eliminar o caráter de profissão do docente”. Isso porque as matérias optativas que reduziram a procura por professores especializados. Do jeito que está hoje, a reforma do ensino médio “diminui para no máximo três horas a formação geral básica dos estudantes”.

Cara também fala sobre a importância dos conselhos escolares para monitorar o andamento das políticas públicas na educação e mediar a participação dos jovens. “Sem protagonismo, os jovens simplesmente não vão para a sala de aula no momento das disciplinas optativas.”

As desigualdades entre ensino público e particular

Laura Nassar, coordenadora pedagógica do colégio particular Oswald de Andrade, em São Paulo, conta que, desde o ensino fundamental, “os alunos podem escolher uma área específica de artes e de educação física”. Além disso, no 9º ano, podem explorar alguns dias de vivência para compreender a rotina no ensino médio.

Lá, além da organização do novo ensino médio ter preservado o tempo dedicado aos conteúdos obrigatórios, os estudantes podem escolher duas entre sete opções de cursos de aperfeiçoamento por semestre em todas as áreas de conhecimento. Se o aluno se matricula em um curso sobre ficção científica, por exemplo, ele receberá reforço em física e uma leitura orientada em obras clássicas do gênero.

Para o educador Cássio, isso ilustra a desigualdade entre escolas públicas e privadas. “Se a escola privada ofertar matérias optativas, ela fará isso no período do contraturno, sem prejudicar a carga horária e com muita infraestrutura”, diz. Na prática, segundo ele, a proposta do novo ensino médio não oferece de fato oportunidades para todos os estudantes. “Fizemos uma pesquisa analisando os itinerários formativos oferecidos nas escolas públicas. Em Minas Gerais, por exemplo, identificamos que metade das escolas oferece apenas um itinerário para os estudantes.”

O que contam as escolas?

Segundo o professor Daniel Tavares, que trabalha na rede estadual do Ceará, só será possível conhecer os impactos do novo ensino médio depois que parte destes alunos acessar o mercado de trabalho”.

Já José Antônio dos Santos, professor de sociologia na rede estadual de São Paulo, afirma que muitos educadores acabam responsáveis por ensinar matérias que não conhecem, por conta da obrigatoriedade de cumprir horas de aula. Ele também acredita que falta conexão entre essas disciplinas e a vontade dos estudantes.

“Peguei uma matéria que envolvia a formação de territórios e cultura. No entanto, identifiquei que os alunos não tinham escolhido nem o conhecimento prévio necessário para a disciplina. Como isso pode ser permitido numa reforma que se propunha a estimular o protagonismo?”, questiona.

Para a professora Lourdes Rocha, que trabalha em uma escola pública no município de Alagoinhas, na Bahia, infelizmente esse tipo de mudança abrupta é comum na educação. “É tudo muito feito de cima pra baixo.” Além de destacar a “diferença gritante entre teoria e prática”, segundo ela, “os estudantes estão meio confusos, não sabem quais são os seus direitos”. Já os professores estão, muitas vezes, “submetidos a uma carga horária muito grande”.

Ela conta sobre uma aluna que ia muito mal nas avaliações escritas. Um dia, ela disse que uma avaliação oral seria muito melhor. “No início, não botei confiança, mas, quando fiz a avaliação, vi que ela tinha um domínio do assunto que era impressionante”, conta.

Assim, na escola onde dá aulas, Rocha busca fortalecer o protagonismo dos estudantes a partir da pedagogia de projetos, um método baseado na vivência de cada um para resolver problemas. “É preciso fazer os alunos se interessarem pelos assuntos e isso só se consegue a partir do momento em que a gente se conecta com a realidade e o território deles. Quando o aluno se identifica com o que está sendo ensinado e aprendido, ele vê sentido na escola.”

“Percebi que educação só faz sentido se a gente escutar o aluno”

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