Os novos desafios da educação no Brasil após o ensino remoto

Recuperação das aprendizagens será o principal foco das escolas em 2022, num cenário em que cerca de 2,4 milhões de crianças não aprenderam a ler e escrever

Camilla Hoshino Publicado em 17.02.2022
Na foto, uma menina negra, com tranças no cabelo, está de braços cruzados em cima de dois livros fechados. Há lápis coloridos espalhados pela mesa.
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Resumo

Após dois anos de ensino remoto, o Brasil enfrenta um retrocesso na educação com índices mais elevados de analfabetismo e evasão escolar. Os principais desafios de 2022 serão a recuperação das aprendizagens e a busca ativa, especialmente entre crianças mais pobres.

Ísis, 9, aguarda ansiosamente pelo resultado da primeira prova realizada no retorno às aulas presenciais. A professora já informou que pelo menos 10 alunos dos 35 irão deixar a turma, passando para uma das cinco salas menos avançadas do 4º ano do ensino fundamental 1. Embora seja incomum na rede pública, o sistema de nivelamento tem ajudado a Escola Estadual Prof. Cândido de Oliveira, em Parelheiros, São Paulo, a organizar o trabalho pedagógico entre os alunos. 

“Durante o tempo fora da escola, minha mãe tentava explicar do jeito que conseguia, mas não adianta, porque eu entendo melhor com a professora falando”, confessa a menina. 

Foram dois anos assistindo aulas pela televisão, buscando atividades impressas na escola, carregando vídeos gravados como lição de casa nas plataformas on-line. Com a ajuda do marido e da família, a mãe, Roberta Bomfim, deixou de trabalhar e passou a dedicar tempo integral à educação da filha, uma opção praticamente impossível para mães solo, chefes de família ou mulheres sem redes de apoio. “Eu sentia que se minha filha reprovasse seria minha culpa, por isso assumi a responsabilidade. Mas sei que muitas mães e pais da sala dela não são alfabetizados, então, como poderiam ajudar?”

A ausência não pesou apenas para a família de Ísis. É justamente durante essa fase de alfabetização, entre os 5 e 9 anos, que as crianças costumam exigir uma intervenção mais ativa dos educadores, caso contrário, podem desistir da escola.

Foi o que aconteceu com Breno, 11, de São Paulo. Por não saberem ler e escrever muito bem, os pais não conseguiram dar suporte de ensino aos quatro filhos, dois deles em idade escolar, mas com necessidades diferentes de aprendizagem durante a pandemia. Desestimulado, Breno só retornou às aulas depois de saber que iria para o 6º ano, mesmo sem estar alfabetizado. “Ele sabe bem pouco e teve muita dificuldade para aprender esses anos, só agora que está mais animado em ir para a escola”, diz a mãe, Michele Aparecida de Freitas.  

O estudo “Retorno para a escola, jornada e pandemia”, publicado em janeiro pela FGV Social, mostra que as crianças mais pobres dessa faixa-etária estão entre as mais afetadas pela perda do ensino na pandemia. Até o último trimestre de 2019, a taxa de evasão escolar entre crianças de 5 a 9 anos era de 1,41%, subindo para 5,51% em 2020. Em 2021, com a reabertura parcial das escolas, o nível de evasão passou para 4,25%. 

Recuperação das aprendizagens

“A pandemia abriu uma cratera no ensino”

Jovens que desistiram de estudar para trabalhar, famílias que perderam o contato com a escola, e crianças de 10 anos sem ler e escrever fazem parte do cenário relatado pela professora da rede municipal de São Paulo, Simone Goes. De volta às salas de aula, ela busca correr atrás do prejuízo a partir de uma sondagem inicial das aprendizagens, mas esbarra em problemas estruturais: 30 alunos nas mãos de uma professora é uma conta que não fecha. 

O Brasil foi um dos países que mais prolongaram o ensino a distância, uma decisão que atingiu não apenas o ensino e as aprendizagens, mas a saúde mental, a proteção contra situações de violência e a nutrição de meninos e meninas, em especial as mais vulneráveis. Em 2021, 40,8% das crianças entre 6 e 7 anos (aproximadamente 2,4 milhões) não haviam sido alfabetizadas, segundo dados divulgados pelo Todos pela Educação, com base na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, um salto de 66% em comparação com 2019, e o maior número desde 2012. 

O Unicef (braço da ONU para a infância) alerta que 3 em cada 4 crianças do 2° ano no Brasil estão fora dos padrões de leitura. É o caso de Zion, 8, de Curitiba, Paraná. Apesar de ter passado de ano após uma decisão tomada a partir de um debate entre a comunidade escolar, o menino ainda tem dificuldades com o alfabeto e com as contas mais simples. 

“Ele acabou ficando atrasado e, acredito que o reforço terá que ser mais rígido para recuperar o que ficou para trás”, afirma o pai, Diogo Henrique. Assim como ele, 7 a cada 10 pais pedem por reforço em língua portuguesa e matemática, de acordo com uma pesquisa recente divulgada pelo Datafolha. O estudo ainda aponta que 76% das crianças em fase de alfabetização precisarão de mais atenção nas escolas. 

Impactos da pandemia no aprendizado das crianças

Segundo o estudo “O impacto da pandemia da covid-19 no aprendizado e bem-estar”, realizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o impacto da pandemia tornou o aprendizado pré-escolar mais lento: as perdas estimadas são de até quatro meses para linguagem e matemática, sendo crianças em situação de vulnerabilidade social as mais prejudicadas.

Em 2019, 60% das crianças eram capazes de identificar números de dois dígitos e fazer contas formais e informais; em 2020, apenas 50% das crianças acertaram os itens. Na aprendizagem de linguagem, aproximadamente 60% das crianças conseguiram identificar um conjunto de 18 letras; a porcentagem caiu para 45%, em 2020.

Plano pedagógico

Com o retorno às aulas presenciais, fica evidente que, durante o ensino remoto, alguns conseguiram aprender e outros não. Dados de um estudo publicado em outubro de 2021 por pesquisadores da Universidade de Zurich, na Suíça, e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mostram que, no estado de São Paulo, por exemplo, os estudantes aprenderam nas aulas on-line apenas 28% do que teriam aprendido em aulas presenciais

Em muitos casos, como os relatados por Simone Goes, as famílias emprestavam celulares às crianças para fazer exercícios ou elas sequer conseguiriam acessar as aulas, pois estavam desconectadas dos professores e com cadastros desatualizados. “Os estudantes vão voltar às escolas com níveis diferentes de aprendizagem e será fundamental ter um olhar específico para cada criança e cada adolescente”, alerta a oficial de Educação do Unicef no Brasil, Julia Ribeiro. 

O desafio é gigante, muito distante de uma falha em linha de produção que pode ser compensada com aceleração posterior. Como destaca Simone, não basta apenas atentar às metas de priorização curricular, o sucesso escolar também dependerá do acolhimento às crianças. Afinal, elas perderam a rotina, muitas se tornaram órfãs e ainda vivem os lutos familiares, fora os desafios financeiros persistentes que as atingem de forma direta, um panorama comum na escola em que trabalha, na cidade de Tiradentes, zona leste de São Paulo. 

“Mesmo tendo a oportunidade de analisar mais de perto os estudantes, existem buracos em etapas-chave da alfabetização que devem atrasar todas as etapas da educação e não serão resolvidas em um ano”, afirma. 

A pesquisa “Educação não presencial na perspectiva dos estudantes e suas famílias”, realizada pelo Datafolha, a pedido do Itaú Social, Fundação Lemann e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), apontou que 37% dos estudantes poderiam desistir dos estudos. Destes, 13% afirmaram que a falta de acolhimento era o motivo para não retornar à escola

No plano pedagógico, o primeiro período de retomada das aulas presenciais será de avaliações a mapeamento das habilidades mais importantes correspondentes a determinado ciclo educacional. A partir disso, as escolas poderão pensar na construção de grades de estudos mais flexíveis, que possam dialogar melhor com as aptidões bem ou mal desenvolvidas nos últimos dois anos. 

Avaliações diagnósticas

O Ministério da Educação, em parceria com o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) da Universidade Federal de Juiz de Fora, disponibilizou a plataforma Avaliações Diagnósticas e Formativas. As avaliações podem ser baixadas e aplicadas em salas de aula para análise do desempenho dos estudantes. Ferramentas como os Mapas de Foco da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apoiam a flexibilização curricular.

Busca ativa

Um levantamento realizado pelo Unicef, em parceria com o Cenpec Educação, em novembro de 2020, apontou que 5 milhões de crianças ficaram sem aulas em 2020, número semelhante ao início dos anos 2000, no Brasil. As crianças mais afetadas pela exclusão tinham entre 6 e 10 anos, e eram negras, com perfis muito semelhantes ao de Zion e Ísis, que vivem uma fase essencial dentro do processo de alfabetização. 

Para enfrentar esse cenário, uma das principais estratégias para reduzir os níveis de evasão escolar é a busca ativa, que consiste em encontrar crianças e adolescentes fora da escola, ou em risco de abandono, e tomar as medidas necessárias para que voltem à escola e permaneçam nela. 

“É preciso um esforço intersetorial, incluindo Educação, Saúde, Assistência Social, entre outras áreas para encontrar quem deixou a escola ou não conseguiu aprender na pandemia”, afirma Julia Ribeiro. Sobretudo, a oficial de Educação reforça a necessidade de vacinação e manutenção dos protocolos de prevenção contra a covid-19, ação fundamental para evitar ainda mais retrocessos na educação das crianças.   

Desde 2002, por meio da Busca Ativa Escolar, iniciativa em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o Unicef já ajudou 3 mil municípios de 20 Estados a rematricularem mais de 80 mil crianças e adolescentes.

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