Meninas e meninos relembram isolamento social e contam como estão vencendo os desafios desse período até hoje
Cinco anos após a Covid-19, as crianças ainda enfrentam desafios no atraso do aprendizado, socialização e bem-estar emocional. Lunetas conversou com meninos e meninas para saber como estão lidando com os efeitos do isolamento.
“Se não tivesse acontecido a pandemia, eu já saberia ler e escrever, e já estaria mais avançado”, diz, Maicon, 11 anos. O menino começava o primeiro ano do ensino fundamental em 2020, quando o mundo precisou se isolar para se proteger de um vírus até então desconhecido.
Naquele período, as aulas da rede pública de ensino de São Paulo, onde Maicon estudava, passaram a ser online, transmitidas pela TV aberta e pelo canal do YouTube da Secretaria Estadual da Educação. Sem saber como acessar pelo celular, o menino acordava cedo para assistir às aulas na TV, porém teve dificuldade em acompanhar o ensino remoto. “Tinha que prestar muita atenção, mas no sofá de casa eu me distraía”, lembra.
Larissa, 11 anos, também enfrentou dificuldades com esse novo formato de aulas. “A gente não sabia como acessar, então foi ruim porque eu não fiz o primeiro ano e tive que passar para o segundo mesmo assim”, conta. Hoje, no 5º ano do ensino fundamental, ela já consegue ler e escrever, ao contrário de Maicon, que ainda não domina essas habilidades plenamente. “Eu até estou conseguindo, mas aos pouquinhos”, diz o menino.
As histórias de Maicon e Larissa mostram que, cinco anos depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia de Covid-19, o Brasil ainda sente os impactos sociais. Esses efeitos acompanham especialmente a vida de crianças e adolescentes, que estavam em fases-chave do desenvolvimento.
Além da falta de acesso à escola, fatores como as condições financeiras e o espaço onde viviam também influenciaram o desempenho das crianças. “A gente morava numa casinha muito pequena. Minha mãe teve que comprar um colchão para eu dormir, porque antes eu dormia em cima de algumas cobertas”, conta Maria Clara, 10 anos, moradora da comunidade de Heliópolis, em São Paulo.
Perto dali, no conjunto habitacional Cingapura, Kennedy, 9 anos, sentia-se sufocado. “Minha mãe fechava a porta e a janela com medo da covid”, lembra. No pequeno apartamento de cerca de 40 metros quadrados, ele dava um jeito de brincar e driblar o clima. “Ainda bem que em casa tinha um ventilador de teto, para não ficar com calor.”
Outra questão social da pandemia foi o aumento significativo da insegurança alimentar severa em lares com crianças de até 10 anos. Conforme o relatório de um consórcio global de universidades, incluindo a Faculdade de Saúde Pública da USP, a situação teve relação direta com os índices de desemprego e ausência de políticas rigorosas de controle de preços dos alimentos.
No cenário da educação, crianças que vivem em condições precárias, como nas periferias e favelas, têm quatro vezes mais chances de serem reprovadas, conforme aponta a pesquisa do doutor em Arquitetura e Urbanismo Luiz Kohara. A teoria se confirma na experiência de Maicon: “A cada ano eu trocava de escola”, conta. Isso porque ele também precisava mudar de casa constantemente devido às dificuldades financeiras da família. O menino só não foi reprovado por conta da política de progressão continuada, adotada em todas as escolas públicas do Estado de São Paulo desde 1998.
A pandemia também reforçou índices que já não estavam bons para esse público, como observa Márcia Machado, pesquisadora na área de infância e juventude da Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura e integrante do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI). “As crianças já tinham menos de uma hora por dia de brincadeiras livres e passavam muito tempo em frente às telas”, afirma.
“O maior problema que todas as crianças enfrentaram foi o distanciamento físico, que afetou a socialização e, principalmente, a linguagem, com uma redução significativa no vocabulário.”
Além das escolas, as ruas e parques também ficaram vazios. Desse modo, a casa se transformou no único espaço possível para brincar. Se, por um lado, as limitações espaciais afetaram as brincadeiras tradicionais e coletivas, por outro, as crianças encontraram novas formas de se expressar. É o que destaca Soraia Chung Saura, que liderou a pesquisa “Brincar em Casa”, realizada com famílias de diversas realidades nos primeiros meses do isolamento.
“A pesquisa foi liderada pelo Projeto Território do Brincar, do Instituto Alana. Fiz parte da equipe e percebemos que, no primeiro momento, os pais estavam mais disponíveis. Então, eles exploraram junto com os filhos os diferentes espaços da casa, ainda que tivesse um único cômodo com uma divisão apenas simbólica”, relata a pesquisadora.
As crianças de diversas regiões do Brasil e da América Latina entrevistadas no estudo habitaram a casa de maneiras similares, com brincadeiras que se repetiram de acordo com cada cômodo. “Na cozinha era cozinhar junto com os pais, fazer bolos, na sala as atividades mais coletivizadas como construção de cabana e teatros”, conta. Ela acrescenta que “no quarto o brincar era mais solitário e individual.”
Porém, meses depois, a realidade encontrada pelos pesquisadores foi outra. As brincadeiras passaram a dividir espaço com o trabalho dos pais, as lições da escola e o esgotamento das relações. “Com as dificuldades do isolamento, as crianças passaram a ficar mais tempo nas telas, e o brincar foi se tornando menos intenso”, explica Soraia.
Desse período, Anderson, 12 anos, lembra que não fazia nada além de assistir televisão e mexer no celular. “Eu gostava de empinar pipa, mas dentro de casa não dava.”
Outro forte impacto da pandemia foi ter que lidar tão cedo com o luto. Maria Clara sentiu isso ao perder um familiar. “Mexeu com meu coração. Minha mãe me dava o celular para assistir desenhos, mas eu não conseguia me concentrar e nem comer direito. Foi muito difícil”, desabafa.
Ao mesmo tempo, Lorenzo, 10 anos, conta que o que mais o marcou foi o fato de perder o contato com todos os amigos durante quase dois anos de isolamento. “Eu estava com medo de ligar para saber se estavam bem e ter uma notícia ruim. Então eu não mexia no celular. Eu só dormia e comia pouco”, recorda.
Viver o luto é importante, principalmente se ocorre na infância, explica Márcia Machado. “O momento da perda precisa ser trabalhado para a criança compreender. Mas naquele momento, muitas delas não puderam nem se despedir.”
A pesquisadora explica que transtornos como esses, vividos nessa fase, podem ter efeitos prolongados para a vida adulta. Por isso, defende políticas públicas como a implementação de Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) no país inteiro. “Também precisamos valorizar os psicólogos que devem estar nas creches e nas escolas para dar suporte.”
Entre o início da pandemia e dezembro de 2022, o Ministério da Saúde registrou 3.562 mortes de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos por causa da covid-19. Ano passado, o boletim Observa-Infância, com dados do Sivep-Gripe/Fiocruz, apontou que a cada quatro dias ao menos três crianças menores de 14 anos ainda morrem no Brasil por causa de complicações de covid. O documento confirma que o número está associado às baixas taxas de cobertura vacinal.
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Se as dificuldades foram grandes para as crianças típicas, os desafios foram maiores para as atípicas. “Essa pandemia acabou com meu Gabriel”, desabafa Viviane, mãe de Gabriel, 10 anos, sobre o diagnóstico tardio de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
“Agora ele está no quinto ano, mas é como se fosse uma criança de segundo ano e com muita dificuldade no aprendizado”, conta. Viviane acredita que a frequência na escola desde o primeiro ano ajudaria a família a ter um diagnóstico mais precoce. “Em casa, ele não prestava atenção nas aulas online, mas eu conversava com outras mães e elas me falavam que era assim também”, complementa.
Além da dificuldade no aprendizado, a pandemia deixou sequelas na socialização de Gabriel, que passou a ter medo de sair na rua. “Mexeu com o emocional dele, porque a gente falava que tinha um bichinho e não podia ficar sem máscara. Daí ele não queria sair quando o isolamento acabou”, lamenta.
Atualmente, Gabriel faz terapias e é acompanhado por uma equipe médica multidisciplinar. Viviane era vendedora e deixou o trabalho para se dedicar exclusivamente aos cuidados do menino.
A pandemia evidenciou a necessidade de tornar os espaços urbanos mais acolhedores para as crianças. Dessa forma, é mais fácil recuperar o desenvolvimento motor prejudicado e incentivar a socialização. “Isso nos faz pensar na urbanização das cidades e outras estratégias, como colocar amarelinhas nas ruas para estimular a atividade física, por exemplo”, sugere Márcia Machado.
Por outro lado, Soraia Chung Saura, pesquisadora da infância, ressalta a importância de equilibrar o uso de tecnologia com atividades físicas. “Não tem problema jogar no celular, o problema é só fazer isso.”
Se para as crianças do país inteiro a pandemia deixou marcas profundas, também ensinou um pouco de resiliência. Agora, o desafio é garantir que elas tenham oportunidades para superar os prejuízos e seguir em frente. Nesse caminho, o apoio da família e das escolas é essencial. No entanto, o poder público também é responsável por reforçar ações que priorizem o desenvolvimento infantil pós-pandemia.
Entre as políticas públicas pensadas nesse sentido, o governo federal firmou o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. O objetivo é garantir a alfabetização até o segundo ano do ensino fundamental, com ações como aceleração para alunos que apresentam dificuldade e a implementação de escolas em tempo integral. Além disso, há o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, reforçado para garantir maior fiscalização.
Depois de tantos revezes, as próprias crianças estão encontrando formas de reconstruir seus sonhos. Anderson, que adorava empinar pipa, hoje quer ser MC e frequenta aulas de reforço para se alfabetizar e escrever suas músicas. Maicon retomou o sonho de ser goleiro, pois agora já pode jogar bola com os amigos. Larissa, por sua vez, se encanta cada vez mais com as aulas de geografia e diz que, por enquanto, quer apenas recuperar o tempo perdido brincando.
As pesquisadoras ouvidas pela reportagem elencam uma série de ações simples e cotidianas que podem ajudar as crianças que passaram pela pandemia. Confira:
De acordo com o estudo “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência – 2017 a 2023″, da Unicef, 30% das crianças de até 8 anos não estavam alfabetizadas em 2023. Esse número mais que dobrou em relação a 2019, quando o percentual era de 14%. Atualmente, quatro milhões de crianças ainda estão atrasadas nos estudos.