Muito além do beabá: o embate entre os métodos de alfabetização

Existe uma forma "melhor" de aprender a ler e escrever? De onde vem o conflito em torno dos métodos de alfabetização e o que ele nos convida a pensar?

Da redação Publicado em 29.01.2019
Imagem de um menino negro estudando
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Resumo

Semanas após a declaração da nova Secretaria de Alfabetização, que pretende substituir o método global de alfabetização pelo método fônico, o Lunetas conversou com profissionais especialistas no assunto para entender quais implicações que essa pretensa mudança traria.

Métodos de Alfabetização. Eis um assunto que não se esgota em uma reflexão rápida, nem tampouco em dominar este ou aquele método. Isso porque aprender a ler e escrever não é algo estanque, ao contrário: é um processo que envolve fundamentalmente o contato com práticas sociais de leitura e escrita. Para se aprofundar na questão da alfabetização enquanto conceito, leia a entrevista com a psicóloga e mestre em Educação Ana Carolina Carvalho, formadora do Instituto Avisa Lá.

O que isso significa, afinal? Que a criança – ou o adulto – em fase de alfabetização é influenciada por diversos aspectos de seu contexto social e cultural. Conviver ou não em ambientes letrados, por exemplo, impacta a forma como o sujeito de aprendizagem se familiariza com os códigos de alfabetização.

Semanas após a declaração da nova Secretaria de Alfabetização, que pretende substituir o método global de alfabetização pelo método fônico, o Lunetas conversou com profissionais especialistas no assunto para entender quais as implicações que essa pretensa mudança traria. A proposta é entender de onde vêm os conflitos em torno das abordagens de alfabetização no Brasil e o que eles têm a ver com o desenvolvimento das crianças.

Para ampliar a discussão sobre o assunto com a complexidade que ele demanda e ainda assim oferecer perspectivas práticas e objetivas para pais e professores interessados no tema, propusemos as mesmas questões para dois profissionais com diferentes pontos de vista.

Mas, antes de mais nada, vamos entender os conceitos básicos de cada um.

O que é o método global?

“O método global integra o conjunto dos métodos analíticos que se orientam no sentido do todo para as partes. Defende que a criança percebe as coisas e a linguagem em seu aspecto global, que a leitura é uma atividade de interpretação de ideias e que a análise de partes deve ser um processo posterior.”

O que é o método fônico?

O método fônico ou fonético integra o conjunto dos métodos sintéticos que privilegiam as correspondências grafofônicas. Seu princípio organizativo é a ênfase na relação direta entre fonema e grafema, ou seja, entre o som da fala e a escrita.

Fonte: Glossário CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Por que o assunto virou pauta no Brasil?

A alfabetização será uma das prioridades do governo de Jair Bolsonaro. Após a extinção de Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, foi instituída a Secretaria de Alfabetização, conduzida por Carlos Nadalim, à frente do recém-criado programa Alfabetização Acima de Tudo, cujas bases deverão ser apresentadas em breve pela nova pasta.

O projeto consiste em “banir métodos globais de ensinar a ler e escrever”, e utilizar o método fônico em substituição ao método global para a alfabetização. Já a Ministra Damares, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pretende regulamentar o ensino domiciliar e à distância.

Nadalim atuou anteriormente na escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina, fundada por sua mãe. Nadalim é conhecido por sua posição combativa contra pensadores considerados referência em pedagogia em todo o mundo, como o educador Paulo Freire, e por seu entusiasmo às ideias do filósofo Olavo de Carvalho – considerado guru da extrema direita -, de quem foi aluno.

Em seu canal no YouTube, chamado “Como educar seus filhos“, ele publica conteúdos que apresentam “o jeito certo de ensinar as letras”, por exemplo, e critica o que considera um problema da alfabetização no Brasil: o letramento. “No Brasil, sobra letramento, mas ler e compreender textos bem é raridade“, afirma.

Métodos de alfabetização: qual o “melhor”?

A discussão sobre o tema é tão complexa que, nos Estados Unidos, por exemplo, existe até um termo para contemplá-la: “reading wars“, ou seja, a ‘guerra’ que existe em torno da melhor melhor de aprender a ler e escrever.

Se você, leitor, já percebeu um erro na frase acima, ponto pra você! A questão não é de encontrar o “melhor” método, justamente porque não existem receitas prontas quando o assunto é transmitir a um indivíduo (que já é por si só formado por múltiplas dimensões) os códigos de leitura e escrita de uma cultura de letramento.

Em um artigo publicado no Washington Post, o cientista cognitivo Daniel Willingham classificou as “reading wars” como perda de tempo. “O que os pesquisadores dizem, você pergunta? Algumas pessoas dirão que há provas conclusivas de que a fonética é melhor. Outros dirão o contrário. Enquanto isso, há algo chamado “alfabetização equilibrada”, que às vezes é retratada como sendo uma linguagem completa com um pouco de fonética, mas é muito mais do que isso, como Rachael Gabriel, professor associado de alfabetização da Universidade de Connecticut.”

Assim, vale considerar que a aprendizagem está associada a um conjunto de fatores condicionantes – socioeconômicos, culturais, econômicos, entre outros. Além disso, para falar sobre isso, é preciso ter em mente de qual conceito de educação estamos falando? O que se espera do processo pedagógico, para que se forma um indivíduo? Como e por quê?

Para ajudar a pensar em todos esses pontos, leia o bate-papo que tivemos com dois pesquisadores desse universo e, portanto, referências no assunto. Uma delas é Maria Alice Junqueira de Almeida, psicóloga especializada em alfabetização do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação Comunitária); Também conversamos com o presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Oliveira é especialista em alfabetização, aprendizagem e desenvolvimento infantil.

Leia a entrevista na íntegra

Lunetas – Você é a favor ou contra a decisão do novo ministro da educação de substituir o método global pelo fônico? E por quê?
Maria Alice Junqueira de Almeida –  A questão da alfabetização é central no contexto da educação brasileira. Por isso é muito importante que se olhe para ela com rigor técnico e que se tenha clareza de quais são as políticas públicas necessárias para que se avance nesse campo. Ao longo dos últimos quarenta anos, muito se tem discutido sobre o assunto e, ainda que haja discordâncias no que toca a questões teóricas, há um consenso entre os estudiosos no que se refere a pauta para a alfabetização: formação docente, gestão da aprendizagem, continuidade nas políticas públicas e salários adequados.

“Como se vê, a questão do método não é central nessa pauta”

O que é, sim, muito importante é que os professores alfabetizadores entendam profundamente como o processo de alfabetização se desenvolve. Para tanto, é preciso que tenham conhecimentos psicológicos, linguísticos, sociolinguísticos e fonológicos (que se refere à relação som/escrita). O que se passa é que a formação inicial dos professores normalmente não aborda esses fundamentos com a profundidade necessária e, quando o faz é do ponto de vista teórico.

Hoje, sabemos que as políticas públicas precisam ir na direção da formação dos professores e que, além de tratar de questões teóricas, precisa abordar também as questões de didática. Para fazer intervenções pedagógicas adequadas em cada fase da alfabetização é necessário estabelecer relações entre teoria e prática. E é a didática que trata de como ensinar.

Outro ponto fundamental seria incentivar a gestão da aprendizagem, ou seja, desenhar políticas de apoio às secretarias de educação para que desenvolvam instrumentos de acompanhamento da aprendizagem dos alunos. Isso significa elaborar diagnósticos e instrumentos de acompanhamento que apontem, ao longo do ano, os alunos que estão caminhando bem e aqueles que precisam de ajuda.

Esses instrumentos fornecem insumos para que se pense em intervenções didáticas específicas para aqueles alunos que precisam de um acompanhamento mais próximo. Ajudam também a detectar as crianças que já estão lá na frente e que, por isso, precisam de mais desafios para que continuem avançando.

“Seria um equívoco pensar que a solução para os problemas da alfabetização se encontra na adoção do método fônico”

João Batista Oliveira – A meu ver a questão da alfabetização é grave, está mal definida na BNCC – Base Nacional Curricular Comum, nas orientações do PNLD – Programa Nacional do Livro Didático e na ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização – e engloba uma série de políticas, orientações e práticas.

Por outro lado, permanecem em vigência iniciativas como o Programa da Alfabetização na Idade Certa – que nunca demonstrou resultados. Diferentemente de qualquer país que adota o sistema alfabético de escrita, no Brasil sequer há consenso sobre quando o aluno está alfabetizado e até instituições respeitáveis usam eufemismos como “completamente alfabetizado” para deixar a questão em aberto. Ou seja: há muitos problemas que precisam ser tratados ao mesmo tempo para que o tema possa avançar.

À falta de maiores esclarecimentos por parte do Ministério seria prematuro qualquer posicionamento.

Lunetas – Na sua opinião, qual a função dos métodos de alfabetização? Há vantagens de um sobre outro?
MAJA – Há muito tempo já há um consenso entre os estudiosos de que a questão dos métodos não é central na alfabetização. O que realmente importa é conhecer profundamente esse processo.

Essa foi a grande discussão na primeira metade do século XX, mas que já foi superada desde os anos 80. A partir de inúmeras pesquisas e estudos na área da psicologia e linguística sabemos que o que realmente importa é conhecer a fundo como se aprende a ler e escrever. Atualmente, sabemos que esse aprendizado não se dá por treinamento, por isso não se trata de saber qual o melhor método para se alfabetizar.

“Aprender a ler e escrever não é aprender um código e sim uma construção conceitual pela qual a criança passa”

A criança demora a perceber, por exemplo, que quando escreve, está escrevendo o som, e não representando o objeto em si. O processo de alfabetização é um longo caminho pelo qual ela passa para compreender como ocorre essa representação, como os sons são representados por letras. Trata-se de um processo de construção do conceito de língua escrita pela criança.

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A discussão sobre alfabetização infantil passa também por entender quais são os ambientes por onde ela circula, se há estímulo à prática social da leitura e da escrita

JBO – A questão de método é um aspecto da alfabetização. Mas sem dúvida é uma questão sumamente importante por duas razões principais. A primeira é que este é o tema mais pesquisado em educação em todo o mundo, e as evidências são muito robustas.

Portanto, se queremos que a educação avance com base em evidências, é necessário entender que existem evidências contundentes a favor de métodos fônicos. Hoje também sabemos das razões pelas quais esses métodos são mais eficazes. A segunda é que as evidências disponíveis no país e no mundo mostram que – além de serem mais eficazes para todos – eles são particularmente mais eficazes com alunos provenientes de ambientes socioeconômicos mais desfavorecidos. Portanto, se pensarmos na situação do Brasil, há fortes razões para adotar métodos fônicos.

“No entanto método é apenas o pedaço de uma história – que inclui materiais pedagógicos e adequação desses materiais às condições em que serão implementados”

O Brasil – e especialmente o MEC e as Universidades Públicas (UFMG e UFPE, em especial) vêm tratando a questão dos métodos de alfabetização de forma que considero inadequada, e isso há várias décadas. Se efetivamente as propostas (indevidamente denominadas de) construtivistas são eficazes, onde estão as evidências?

Lunetas – Há prejuízos para o processo de alfabetização utilizar um único método como parâmetro? Por quê?
MAJA – É muito mais importante ter uma metodologia ao se alfabetizar do que adotar um método em si. A questão não é ser contra o método fônico, mas considerar que ele não dá conta do processo de alfabetização. Relacionar o som às letras é algo que acontece sim, mas num determinado momento do processo, quando a criança está pronta cognitivamente e linguisticamente para fazer as relações do fonema com a letra.

“Não se pode apressar esse momento. É como querer que uma criança ande sem que ainda tenha as pernas fortes o suficiente para que fique de pé”

O método propõe uma análise dos fonemas logo no momento da partida, nesse sentido seria sim prejudicial, pois a criança não está num momento em que está suficientemente desenvolvida cognitivamente para conseguir entender as relações entre fonemas e grafemas.

Outro aspecto importante salientar é que, além de entender o que a escrita representa (os sons e não o objeto em si) e como ela representa (por meios de fonemas e grafemas), a criança precisa compreender também para que a escrita serve, ou seja, qual a sua função social. O processo de alfabetização precisa caminhar junto com o letramento. Embora ocupem lugares diferentes e tenham características específicas, letramento e alfabetização são indissociáveis.

“Na alfabetização, o foco tem que estar colocado, ora na compreensão do funcionamento do sistema alfabético, ora em sua função social”

JBO – É preciso diferenciar três questões diferentes referentes ao tema de “método”. Na área da saúde há protocolos que definem, com bastante rigor, os procedimentos (e métodos) adequados para a maioria das intervenções realizadas por médicos, enfermeiras e agentes de saúde. Isso se aplica a muitas outras profissões.

Esses instrumentos são pouco usados em educação embora haja evidências suficientes para recomendar a utilização de diversos procedimentos. Nesse sentido poderia haver áreas em que determinados procedimentos (ou métodos) sejam reconhecidamente mais recomendáveis do que outros.

A segunda questão refere-se à utilização: numa sala de aula, há várias habilidades para cujo ensino é absolutamente essencial usar um método bem definido. Isso vale também para muitas outras áreas, como no ensino de matemática, por exemplo.

“O que precisa ser claro é o que é método e o quê, dentro de um método, constituem estratégias que podem ser usadas de maneira mais ou menos flexível dependendo do contexto”

No caso da alfabetização sem dúvida a consistência no uso de um determinado método produz resultados muito mais eficazes. Orientar o aluno a ler usando as regras do código ou se orientando pelas ilustrações ou pelo contexto é o mesmo que dizer a uma criança atravessar a rua se o sinal estiver verde, se ela não ver algum carro ou se outras pessoas estiverem atravessando. É receita para desastre.

E uma terceira coisa é prática: mesmo que haja um decreto, lei ou decisão governamental isso não significa que ela será implementada. Uma mudança como essa requer um longo processo de experimentação, convencimento e, sobretudo, estratégias eficazes para disseminar e multiplicar experiências bem-sucedidas. Uma leitura das orientações curriculares dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] permitirá observar que em todos deles – com exceção da Espanha – os ministérios da educação trazem recomendações mais ou menos específicas favorecendo a utilização de métodos fônicos.

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