Dá para imaginar uma escola sem livros?

Trocar livros didáticos por tablets e notebooks vai na contramão de pesquisas e da experiência de países desenvolvidos

Célia Fernanda Lima Publicado em 07.08.2023
Imagem em preto e branco mostra duas meninas sentadas em sala de aula escrevendo com lápis em seus cadernos
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Resumo

Acelerar a digitalização do material didático nas escolas é uma tendência que pode afetar diretamente alunos brasileiros do ensino público. Enquanto alguns estados sugerem abolir os livros, especialistas alertam para os riscos na aprendizagem.

Escolas de todo o país têm buscado alternativas aos livros didáticos em formato físico, como fez o Paraná, que adotou materiais digitalizados em 2019, e agora São Paulo. Neste estado, será a primeira vez que 1,4 milhão de estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental terão apenas conteúdos digitais, depois da decisão da secretaria de educação em não aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

A nova dinâmica, diferente de um livro didático físico ou de um livro digital, envolve sistemas de leituras em telas eletrônicas. Agora, o conteúdo será explicado em tópicos em formato de slides, com indicações de recursos multimídias, como links para sites de pesquisa, vídeos e áudios.

Profissionais da educação questionam a falta de livros

Os riscos de utilizar somente conteúdo digital em vez de livros didáticos afeta diretamente o processo educacional, como afirma a psicopedagoga Camila Fattori. Isso porque, além da compreensão da leitura no material físico e digital serem diferentes, o aumento do tempo de telas pode gerar prejuízos na interação social e mais distração.

Fattori, que também é coordenadora pedagógica na Comunidade Educativa CEDAC, que atua na melhoria das práticas educativas das escolas públicas no país, afirma que substituir de forma abrupta a estrutura e o conteúdo do material didático, sem antes consultar a comunidade escolar, pode reforçar as desigualdades. “Hoje, todos têm o mesmo livro. Já com a mudança, estudantes com menos condição social passarão a não ter acesso adequado.”

A professora Isabel Frade, presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf), ressalta que não trabalhar com livro impresso é como negar a história da leitura. “Embora os materiais digitais já façam parte da educação, a substituição de um pelo outro não respeita a cultura da leitura. Por isso, é preciso pensar soluções cautelosas e híbridas.”

Ela ressalta que o processo de reflexão e aprofundamento de uma leitura é mais efetivo nos livros físicos. “O modo de compreender na tela é diferente. Com o livro físico, podemos folhear, ver o texto inteiro, retomar, marcar. Nesse sentido, não podemos abandonar toda essa construção cultural e pedagógica do uso do livro didático”.

Para alunos voltarem a ler, Suécia retoma os livros nas escolas

O Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS) revelou que 4 a cada 10 alunos não dominam as habilidades básicas de leitura no Brasil. Na Suécia, após a nota nesta mesma avaliação cair, a ministra da educação, Lotta Edholm, enfatizou o risco de “criar uma geração de analfabetos funcionais”. Segundo afirmou ao jornal francês Le Monde, “os livros têm vantagens que nenhum tablet pode substituir”. Para evitar o retrocesso e recuperar a capacidade de uma leitura eficiente entre os estudantes, o país lançou um programa de reintrodução dos livros. A Suécia ocupa o nono lugar no PIRLS; o Brasil está em 52º.

Obras do PNLD têm “rigor científico e pedagógico”

De acordo com o MEC, os materiais didáticos do PNLD estão em 95% do ensino público do país. Mesmo assim, por lei, estados e municípios têm autonomia em seus sistemas educacionais e a permanência no programa é “voluntária”.

Para Fattori, a total digitalização do material didático é um retrocesso. “Substituir livros validados por vários profissionais e alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não é a resposta para melhorar a educação. O material da secretaria deveria ser complementar.”

Enquanto as obras do PNLD seguem critérios da BNCC, profissionais da secretaria de educação de São Paulo produzem e aprovam o próprio material. Nesse sentido, Fattori questiona o porquê de uma padronização estatal do material didático se as realidades das escolas são diferentes. Ela também se preocupa caso a tendência se estenda para bibliotecas públicas, por exemplo.

Depois do secretário de educação de São Paulo, Renato Feder, indicar que o material poderia ser impresso por quem não tivesse aparelhos digitais, o governador Tarcísio de Freitas explicou que todos os estudantes vão recebê-lo encadernado. A declaração sobre as obras do PNLD terem perdido “qualidade, profundidade e conteúdo” também gerou manifestações.

O sindicato dos professores do ensino oficial de São Paulo (Apeoesp) afirmou que a medida de abolir os livros didáticos nas escolas estaduais “não tem respaldo pedagógico e vai na contramão das tendências internacionais”.

Na mesma linha, a Associação Brasileira de Autores de Livros Educativos disse tratar-se de um ataque à educação. “[Os livros] são escritos com rigor científico e pedagógico”. Segundo a associação, a medida eliminaria a possibilidade de escolher materiais didáticos que contemplem abordagens plurais.

Já a ex-secretária da educação básica do MEC e presidente do Instituto Reuna, Kátia Smole, que pesquisa a introdução de livros digitais em vários países, ressalta que nenhum deles fez uma transição tão repentina. “A qualidade técnica dos livros ofertados pelo PNLD tem de ser valorizada”.

Como as escolas utilizam o material digital?

Guilherme Paulino, professor de uma escola pública de ensino integral em Guarulhos (SP), considera válido digitalizar o material. “Os alunos já utilizam os notebooks da escola e a internet, aqui, pega bem. Eles não precisam mais carregar muito peso nas mochilas”, diz. Mesmo assim, ele tem dúvidas de como funcionaria “em escolas em área de periferia devido às condições de conexão.

Para Letícia Morais, professora do ensino fundamental e médio em uma escola estadual na zona leste de São Paulo, o sistema digital ajuda a variar as aulas. Porém, os livros didáticos dão um norte para trabalhar os principais conteúdos. “Eu passo mais de 50 horas por semana dentro da escola, contando o tempo de preparar as aulas. Se não tiver mais os livros, imagina como vai dificultar o trabalho?”, questiona.

Próximos passos

O Ministério Público de São Paulo vai apurar se houve consulta ao Conselho Estadual de Educação e à comunidade escolar antes da decisão do governo do estado. Já o Grupo de Atuação Especial de Educação do MP irá verificar se isso implica em uma violação da Constituição a respeito do “princípio constitucional da gestão democrática do ensino público”, previsto na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).

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