Violência, morte e outras tragédias preocupam os adultos e passam, cada vez mais, a fazer parte do imaginário infantil
Os medos imaginários das crianças passaram a dividir espaço com medos reais. Como os pais podem ajudar os filhos a lidarem com essa nova realidade e como protegê-los do excesso de informações?
Seja do monstro escondido no armário ou das sombras no escuro do quarto, é normal que a criança sinta medo. “Relacionados às etapas do amadurecimento emocional, os medos podem ser um indicador importante do que a criança está vivenciando em suas relações”, explica Cynthia Ladvocat, psicóloga, psicanalista e terapeuta familiar.
Mas, além dos medos imaginários infantis, a geração atual tem experimentado essa emoção de outras formas. Isso porque há também o medo da realidade: violência, tragédias, guerras e perda de entes queridos. “A violência urbana, por exemplo, se tornou uma monstruosidade que acontece à nossa volta e a todo instante”, diz.
“Os monstros de antigamente se transformaram em monstros mais atuais e reais”
Assim, Nanna Pretto observa como medos reais e imaginários se apresentam na rotina de cada um dos três filhos, de acordo com a faixa etária. “Gabriel, 16, frequenta estádios e noto que usa doleira, que guarda o celular, se protege. O Rafael, 10, tem medo de perder pessoas que ama, então o diálogo é sempre nessa questão do medo da perda, da ausência”, afirma. “Já a caçula, Luisa, 3, tem medos mais lúdicos, relacionados a monstros e dinossauros.”
Para lidar com esses medos, a psicóloga Cynthia Ladvocat sugere, em primeiro lugar, validação e acolhimento. “O mundo pode ser assustador na infância, com tantas situações a serem enfrentadas”, ressalta. Sendo assim, a criança pode temer “coisas que nunca teve contato antes ou que ainda não compreende como funciona”.
Mas, além da orientação de que as famílias estejam atentas ao que a criança transmite, seja verbalmente ou através de suas dificuldades, Cynthia recomenda que também os adultos procurem ajuda especializada caso não consigam amparar os medos e temores das crianças. “É importante refletir sobre como eles próprios estão enfrentando seus medos.”
Sequestrada aos 20 anos na saída de um estacionamento, Nanna Pretto conta como isso impactou sua forma de lidar com a segurança. “Até hoje tenho receio dessa coisa de entrar e sair do carro. Então, sempre peço que respeitem meu medo”, desabafa. “A gente tem que respeitar o medo do dinossauro, do escuro, da sombra, de andar sozinho, de perder alguém. Seja qual for a idade, temos que respeitar”, diz. Por isso, Nanna busca sempre respeitar os medos de cada fase, adaptando a conversa com cada um dos filhos.
Ainda, de acordo com a especialista, conhecer as possíveis razões da ansiedade dos filhos é essencial para saber a melhor maneira de ajudá-los. “Existem medos, como o do escuro, que, na verdade, representam o receio de ficar longe dos pais”, observa. Em geral, a criança tem medo do escuro “porque não consegue ver a presença de alguém que lhe dê segurança”.
Então, um profissional pode ajudar na identificação de um perigo real e um fantasioso e também a diferenciar os medos que fazem parte do mundo das crianças daqueles que fazem parte do mundo dos adultos. “Tratar dos medos na família significa perceber que encontramos medos infantis nos adultos e medos de adultos nas crianças. Se os pais ficam inseguros nesse papel, a criança sofrerá e poderá desenvolver o desejo de proteger seus pais”, diz.
Temer coisas ruins é algo inerente ao ser humano, afirma Cynthia Ladvocat. Contudo, é a intensidade do medo que “assinala a diferença entre o normal e o patológico”. Assim, um medo excessivo pode se transformar em ansiedade, insegurança e até fobia.
Portanto, é importante que as famílias entendam se o medo está fazendo mal à criança, já que “algumas não conseguem expressar, apenas se tornam mais inseguras e medrosas”. Ela pode apresentar receio de ir à escola, festas, de fazer passeios em família ou mesmo sentir vontade de fugir ou se esconder.
Nesses casos, para não ameaçar a estabilidade da criança, “os pais não devem pressioná-la para que revele os motivos dos medos, mas tentar entender a própria dinâmica familiar”, explica.
Ainda, a forma como os adultos reagem pode impactar em como os pequenos vão lidar com os seus temores. “Se os pais têm medo de cachorro, o filho também sentirá. Se ficam inseguros com brinquedos em parques de diversão, a criança não terá coragem para se divertir”, exemplifica. No entanto, “os pais podem passar a noção do perigo, como não brincar com fogo, objetos cortantes, lugares altos”.
Para Nanna, o diálogo segue sendo essencial para lidar com os medos que as crianças sentem – sejam eles imaginários ou reais. “Se eles perguntam algo, acho que precisam de resposta.” Mesmo que se trate de assuntos complexos como as guerras atuais. “Deixar sem respostas abre caminho para que eles tirem as próprias conclusões.”
“Cada geração vive seus medos e temores de acordo com as questões do contexto de sua época”, analisa Cynthia Ladvocat. Mas isso não significa que as crianças de hoje temem mais do que as de antigamente. Segundo ela, o que acontece é que elas “estão mais expostas aos fatos”, por conta da facilidade de acesso à informação no mundo digital.
As notícias – boas e ruins – estão só a alguns cliques de distância. As crianças veem escolas fechadas e cada vez mais cheias de segurança. Além disso, acompanham inúmeros dramas ambientais. Ou seja, “podemos dizer que os medos passaram por um processo de transformação”, diz. Hoje, elas estão mais cientes dos riscos que podem correr.
Diante de tantas informações, as crianças trazem para casa temáticas como corrupção, assassinatos, transgressões sexuais. Com isso, ficam aguardando respostas dos adultos para suas aflições. “Em geral, os pais não sabem como passar para a criança que nada daquilo irá ocorrer à sua volta, pois eles não têm essa certeza”, afirma Cynthia. Na realidade, como ressalta a psicóloga, os medos dos filhos mexem com os medos dos próprios pais.
Por isso, deve-se tomar cuidado com o que as crianças têm acesso, protegendo-as da exposição a fatos desnecessários de vivenciar. “Mas, se a criança presenciou, não há como desfazer o que aconteceu. Ou seja, omitir é pior do que a revelação dos fatos em si”, pondera Cynthia. “O melhor é tentar apenas suavizar a realidade, sem distorcê-la.”
Tamires Correia, mãe de Maria Clara, 11, conta que atualmente a menina teme apenas os insetos. Mas uma estratégia para ajudar na condução dos medos é acompanhar os noticiários em casa e manter um diálogo aberto com a filha. “Sempre conversei muito com ela, inclusive sobre assuntos como educação sexual”, diz a mãe. “Tudo para tentar protegê-la na minha ausência.”