‘Crianças devem correr riscos’, afirmam especialistas

Cair, se machucar e levantar. Entre um tombo e outro, a criança cria resistência para lidar com o mundo

Camilla Hoshino Publicado em 15.01.2018

Resumo

Dizer que é preciso que crianças corram riscos para se preparar para o futuro não significa de modo algum colocá-las em perigo, mas dar espaço tanto para o sucesso quanto para o fracasso. Veja a opinião de especialistas sobre o assunto.

Se equilibrar no muro. Subir na árvore. Tomar banho de chuva. Cair, se machucar, levantar. Diz o ditado popular que “quem não arrisca, não petisca”. Ou, em outras palavras, nada pode ser alcançado sem correr riscos. E se isso vale para a diversão, vale também para outros desafios da vida.

Mas se a afirmação parece facilmente incorporada na vida adulta, quando se trata do cuidado com os filhos, a preferência contemporânea passa a ser muito mais pela segurança a qualquer custo. Assim se transforma o universo das brincadeiras: parquinhos sem gangorras, escorregadores protegidos por telas, casinhas de plástico, grama sintética. Afinal, quando foi que passamos a eliminar qualquer tipo de adrenalina, riscos e conquista de autonomia na infância?

Arricar-se é saudável

“O medo do risco por seus filhos é compreensível, temos que proteger nossos filhos. Mas se queremos que cresçam e virem adultos resilientes e estejam seguros, eles têm que correr riscos na infância”, afirma o jornalista e especialista em advocacy pela infância, Richard Louv.

(Fonte: “Quando o risco vale a pena”, vídeo produzido pelo programa Criança e Natureza, do Instituto Alana)

Diferença entre risco real e suposto

Dizer que é preciso que crianças corram riscos para sair da zona de conforto e se preparar para o futuro não significa de modo algum colocá-las em perigo, mas dar espaço tanto para o sucesso quanto para o fracasso em determinadas situações. A engenheira florestal, mestre em conservação de ecossistemas e pesquisadora do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana, Maria Isabel Amando de Barros, defende que as crianças precisam de acidentes de pequena consequência para aprender a evitar os grandes acidentes no futuro. Ela explica que há uma distinção entre risco real e risco percebido, aquele que deve ser incentivado.

“O risco real é aquele que existe em andar de bicicleta fora da ciclovia, em uma avenida movimentada ou deixar uma criança que não sabe nadar sozinha ao lado de uma piscina. O risco percebido é aquele que a criança sente como excitante e emocionante, em que há, sim, a ameaça de algum machucado, sem consequências graves”, explica.

Cabe aos adultos, segundo a pesquisadora Maria Isabel de Barros, proporcionar às crianças experiências adequadas em termos de dificuldade e progressão, possibilitando que elas próprias percebam quando há limites e quando é preciso ir adiante e enfrentar um novo desafio.

Um laboratório de pesquisa com foco na prevenção de acidentes, ligado à Universidade de British Columbia, no Canadá, desenvolveu uma ferramenta online para auxiliar pais e cuidadores a elaborar planos para os filhos que envolvam riscos durante as brincadeiras. A ferramenta se chama Outside Play e está disponível em inglês.

Em 2017, a rede global de organizações educacionais ISGA (International School Grounds Aliance), publicou um documento  (em inglês) que recomenda correr riscos na infância como uma forma de proporcionar bem-estar para as crianças e desenvolvimento de competências cognitivas, sociais, físicas e psicológicas. Entre elas a resiliência, precaução, autoconfiança e autonomia, além de reconhecimento sobre as próprias habilidades e limites.

Nesse sentido, por meio da Declaração de Ubud-Höör, essas organizações estimulam pais, comunidade escolar e gestores públicos a permitir e oferecer às crianças espaços e atividades que incluam assumir riscos. Essa também é uma ideia defendida pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 31.

“Não é preciso garantir que seja o mais seguro quanto possível, mas o mais seguro quanto necessário”

“Em termos práticos, significa permitir que as crianças tenham liberdade de decidir até que altura querem escalar, até onde querem explorar um parque, andar sozinha de um lugar para o outro, brincar com ferramentas de verdade, fazer uma fogueira e assim serem ativas”, afirma a pesquisadora do projeto Criança e Natureza, do Instituto Alana, Maria Isabel de Barros.

Assim, segundo ela, as crianças podem aprender a reconhecer e avaliar desafios de acordo com sua própria habilidade, se forem dadas a chance de praticar.

Excesso de controle

De acordo com um relatório publicado em 2006 pela Future Foundation, o tempo diário que pais passam olhando as crianças aumentou de 25 minutos em 1975 para 99 minutos em 2000, isto é, quadruplicou. O estudo aponta que as causas estão relacionadas ao aumento da ansiedade parental e que “gerações anteriores não se preocupavam tanto em deixar as crianças brincando sozinhas no quintal ou na rua”.

Essa análise é apresentada no livro de Tim Gill, “No Fear: growing up in a risk averse society”, em que o autor aponta para um conjunto de mudanças sociais e culturais que convergiram numa sociedade adversa ao risco.

Para Isabel Barros, os contextos de cada país para a mudança de comportamento em relação às crianças variam. No Brasil, por exemplo, a segurança pública e o alto índice de acidentes de trânsito são duas questões fundamentais que precisam ser pensadas quando se quer estabelecer limites na infância.

“Cuidado não é sinônimo de controle e vigilância”

“Ninguém se desenvolve se isolando de riscos”, afirma o instrutor de educação ao ar livre, Fabio Raimo em entrevista à série Inspirações, produzida pelo programa Criança e Natureza.

Na tentativa de de proporcionar às crianças experiências de contato com o risco, as brincadeiras ao ar livre e a interação com a natureza podem ser caminhos possíveis e aconselháveis.

“Na nossa cultura brasileira, temos uma associação desproporcional entre natureza e risco. Estar ao ar livre na natureza engloba riscos, mas eles são muito menores do que se pensa, principalmente quando se exerce prudência”, afirma o diretor executivo da Outward Bound Brasil, Andreas G. Martin.

A instituição, que é pioneira no desenvolvimento de programas educacionais que combinam aventuras e desenvolvimento pessoal, proporciona às famílias a possibilidade de “desmistificarem” o excesso de medo em torno da combinação criança e natureza. Os passeios também podem se configurar como um exercício de percepção e confiança nas crianças por parte dos pais.

“No ambiente natural, soltar as amarras libera muita energia acumulada. Para os adultos, muda principalmente a percepção das habilidades e capacidades que suas crianças já possuem. Para as crianças o principal ganho, entre muitos outros, é uma autoestima e independência melhor desenvolvidas”, descreve Martin

É preciso rever a superproteção, dizem especialistas

Uma mudança de olhar sobre a capacidade de autonomia desenvolvida pelas crianças ajuda os adultos a ter a sensibilidade de perceber se e quando é preciso intervir em alguma atividade.

“Podemos ajudar a criança excessivamente confiante a perceber a consequência do que não é capaz de fazer e impedi-la de se machucar”

“Também precisamos incentivar a criança insegura, porém habilidosa, a ir além do que lhe parece factível”, diz Maria Isabel.

Para ela, esse comportamento faz com que as crianças tenham experiências que sejam armazenadas em seu repertório de avaliação de risco, se tornando pessoas mais preparadas e equipadas para os desafios que a vida oferece. E assim retornamos à máxima de que “só se aprender a cair, caindo”. O que, no fundo, nos parece algo bem natural, mas muitas vezes negligenciado.

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