‘A vida depois’ fala sobre como é sobreviver a um ataque à escola

Ao tratar o processo de cura após uma tragédia, o filme traz reflexões sobre como minimizar o trauma e a urgência de proteger crianças e adolescentes

Camila Santana Publicado em 01.06.2023
Cena do filme A vida depois em que a personagem Vada, interpretada por Jenna Ortega, ouve tiros na escola
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Resumo

Ao tratar o processo de cura dos jovens impactados por um tiroteio escolar, o filme “A vida depois” traz reflexões sobre como minimizar o trauma coletivo e aponta para a urgência de criar um futuro mais seguro para crianças e adolescentes.

O som de tiros ocupa o banheiro onde estão Vada, interpretada por Jenna Ortega, e Mia (Maddie Ziegler), duas estudantes do ensino médio que vão ter a vida transformada ao vivenciarem um ataque em escola no filme “A vida depois” (2022), disponível na HBO Max. Ao retratar de modo sensível as consequências desse problema crônico dos Estados Unidos, que tem feito vítimas também no Brasil, acompanhamos a crise emocional de Vada e como o evento vai impactar sua visão de mundo e o modo como se relaciona com familiares e amigos.

Ao priorizar a tensão dos personagens sobreviventes, sem reproduzir o tiroteio ou glamourizar as ações do atirador, comenta a psicóloga Patrícia Santos, “o filme destaca o tempo de cura e as formas que cada vítima vai encontrar para lidar com a situação”. Em entrevista, a diretora Megan Park revelou sua intenção de mostrar um novo olhar sobre como as pessoas se sentem quando há um tiroteio em uma escola.

“Queria usar minha voz para fazer com que as pessoas se sentissem menos sozinhas. Espero que mostrar outras formas de recuperação possa inspirar quem precisa.” – Megan Park

Em 2019, o massacre na Escola Raul Brasil, em Suzano, região metropolitana de São Paulo, resultou na morte de dez pessoas, e mobilizou campanhas contra o armamento e debates sobre como educar para a solidariedade. Henry, um dos sobreviventes da tragédia, relata a identificação que sentiu ao assistir o filme “A vida depois”, nas avaliações do Google.

Avaliação de Henry sobre o filme "A vida depois", no Google, em que se lê: "Esse filme e simplesmente o filme da minha vida. Eu estudava na escola de Suzano quando aconteceu o dia que o menino entrou atirando na escola. Aquilo pra mim me deixou muito em choque e traumatizado. Fiquei 7 meses fazendo terapia tentando esquecer algo que me assusta até hoje, e assistir esse filme me fez ver como outra pessoa lidou com essa situação. Choque pós traumático de um momento tão delicado como esse foi exatamente o que eu passei. Simplesmente chorei muito, mostrou uma realidade da situação da melhor forma possivel."
Avaliação do Google de Henry, ex-aluno na Escola Professor Raul Brasil, alvo de um ataque em 13 de março de 2019

Um olhar sensível sobre a geração Z

Cheio de detalhes realistas e num tom pessoal, o longa-metragem trata de temas difíceis como traumas coletivos, dinâmicas familiares, saúde mental e amizade, sobretudo para essa nova geração marcada pelos desafios impostos por uma pandemia e agora pelo medo desde que a violência invadiu as escolas, como pontua a atriz Jenna Ortega: “[O filme] é sobre as lutas que enfrentamos, como ter medo de ir pra escola todas as manhãs, ou mesmo de ir para as redes sociais e ficar completamente inseguro.”

“Eu tenho medo de ir pra escola todos os dias!” – Vada Cavell (personagem)

Para Juliana Cunha, psicóloga e diretora da Safernet, ONG que defende e promove os direitos humanos na internet, a geração que cresceu nesses ambientes digitais tem uma responsabilidade adicional, pois “as redes são hoje o principal espaço de convivência entre jovens. Elas oferecem uma série de oportunidades de construção de vínculos, de formação da identidade, de acesso à informação e também de participação, mas isso vem acompanhado de alguns riscos envolvendo o compartilhamento não consensual de imagens íntimas, violência sexual, bullying, intimidação ou extorsão”, detalha.

O diálogo constante da família e da escola com crianças e adolescentes é fundamental na educação para um uso ético, seguro e cidadão da internet. “É importante auxiliá-los a identificar um contato inadequado, um conteúdo desinformativo e instruí-los sobre as ferramentas de segurança oferecidas pelas plataformas, como denunciar, bloquear, silenciar e ter uma conta privada”, completa a especialista.

Ao convidar o público a refletir sobre esses grandes temas, a se identificar com pessoas imperfeitas e processos de cura não lineares, o filme entrega um olhar sensível sobre a geração Z. Em meio a dancinhas no TikTok e cartazes de “Vidas negras importam“, os personagens sentem a pressão das redes sociais, experimentam a sexualidade e se engajam em causas sociais.

“Queremos uma mudança real! Política honesta que torne a escola um local seguro para aprendermos e crescermos.” – Nick Feinstein (personagem)

Cunha reforça que os ambientes digitais também podem ser parceiros no envolvimento de pessoas em torno de uma causa, graças ao seu potencial agregador, que cria conexões e reúne comunidades. “As redes podem ser importantes aliados nesses momentos de maior comoção nacional, como a situação trágica de ataques em escolas, inclusive para fazer avançar debates e mudanças na sociedade”, sugere.

A crescente onda de violência contra as escolas vem de fora para dentro, e também é um reflexo da cultura de ódio, que não tolera as diferenças culturais, os direitos das meninas e mulheres, de negras e negros, e as diferentes possibilidades de ser e amar. Nesse sentido, uma educação que valorize as diferenças e auxilie no uso responsável da internet, em conjunto com uma rede de apoio para crianças e adolescentes são fundamentais para criar outros caminhos possíveis.

O apoio psicológico e a importância da família para superar traumas

Por incentivo dos pais, Patrícia (Julie Bowen) e Carlos (John Ortiz), Vada começa a frequentar sessões de terapia para lidar com seu trauma. Mesmo em um processo não linear, fica nítida a importância da psicóloga Anna (Shailene Woodley) em sua recuperação, sem que haja a pretensão de “consertar” a protagonista no final.

Embora a legislação brasileira exija, desde 2019, que as escolas públicas da rede básica tenham profissionais de psicologia e serviço social, o número de psicólogos nas escolas do país é inferior a 0,1% do total de alunos, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Globo, com base no Censo Escolar de 2022. Santos explica que a psicologia escolar serve para mediar conflitos e identificar o que está disfuncional ou que precisa melhorar naquela instituição.

“Entre outras atribuições, o profissional fornece ferramentas aos professores e demais funcionários para perceber quando algum aluno ou colega de trabalho dá sinais de que não está bem”, esclarece. Segundo a especialista, em muitos casos de atiradores em escola, os sinais do autor em algum momento foram negligenciados, reforçando a importância desse acompanhamento. “Precisamos estar mais atentos para mudanças de comportamento e atitudes dos estudantes e, se necessário, buscar ajuda profissional.”

“Eu tenho medo de levar minhas crianças na escola todos os dias!” – Carlos Cavell (personagem)

“Cada pessoa dá um significado singular ao acontecimento”, diz Santos. Contudo, ela sugere enfrentar o desespero inicial que esses incidentes despertam. “Não podemos ser consumidos pelo medo, porque podemos prejudicar também nossos filhos e passar esse temor para eles. Em vez disso, podemos lhes mostrar as medidas que têm sido tomadas pelas escolas para garantir maior segurança, ensinar que seus colegas podem dar sinais de que não estão bem e explicar que eles podem contar com adultos responsáveis. Mesmo com dificuldade, é importante manter a rotina e passar tranquilidade para as crianças e adolescentes, criando um canal de diálogo constante”.

Para Cunha, existe uma percepção equivocada de que o trauma se expressa de forma automática logo após um evento trágico. “Não é assim que acontece, e isso fica evidente durante os processos dos protagonistas do filme. Cada um vivencia ao seu modo. No caso de Vada, ela passa um tempo anestesiada, sem conseguir identificar suas emoções.”

Na medida em que a personagem vai elaborando essa experiência, especialmente junto com a terapeuta, familiares e amigos, ela finalmente vivencia o trauma. Aos poucos, Vada consegue expressar seus sentimentos, socializar vivências e participar também do processo de cura dos próprios familiares. Em oposição à realidade da personagem Mia, cujos pais ausentes não oferecem um suporte e isso afeta a sua recuperação.

“A vida depois” retrata nossas inseguranças, como se dissesse: não há problema em ter medo. Você não está sozinho, é preciso enfrentar esse trauma e criar um outro futuro possível, juntos.

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