Como proteger as crianças das fake news na internet?

Se as crianças de hoje não forem habilitadas a se defender de informações falsas, que líderes teremos no futuro?

Renata Penzani Publicado em 20.03.2018
Fake news: foto em preto e branco de um menino lendo, apoiando o queixo sobre a mão
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Resumo

Quanto mais informação existe no mundo, maior o risco de informações falsas. O que isso tem a ver com as crianças? Nesta reportagem sobre "fake news", discutimos qual a importância de aproximar as crianças do jornalismo para estimular desde cedo o conhecimento de mundo.

Em 2015, a rede de mídia francesa PlayBac foi às ruas para distribuir gratuitamente números especiais do jornal Le Petit Quotidien, voltado para o público infantil em idade escolar – de seis a dez anos. O objetivo? Falar diretamente com as crianças sobre uma pergunta urgente naquele momento: “O que é um terrorista?” – a publicação está disponível on-line, em francês.

A iniciativa foi uma resposta aos incidentes de novembro de 2015, quando Paris sofreu uma série de atentados, incluindo fuzilamentos, explosões e uso de reféns. Quem quer que ligasse a TV, via cenas de horror e medo. Diante daquilo, o jornal resolveu utilizar de uma linguagem simples, direta e assertiva, em tom de diálogo, para tranquilizar os pequenos diante de tantas notícias sobre atos terroristas. Afinal, o desconhecido dá medo.

Para chegar nesse objetivo, foi preciso contar uma história com começo, meio e fim.

Por que um terrorista tem esse nome? O que ele faz? Por que ele faz o que faz? Todas essas questões fazem parte de uma explicação aprofundada do terrorismo como conceito político. Nessa missão, uma palavra é fundamental: contexto. E quando se amplia a reflexão sobre um determinado assunto, não chegamos necessariamente a uma resposta fechada, mas a outras perguntas. Por exemplo: De quem o terrorista é inimigo, e de quem ele é amigo? Quem deu esse nome a ele? Tudo isso é provocar a pensar.

Fake News: Capa da revista Petit Quotidien
“Mãe, o que é terrorismo?”. “Pai, o que é intolerância?”. No jornal francês Le Petit Quotidien, a explicação vem em forma de um material didático, simples e acessível para as crianças

O exemplo francês acima mostra como é complexa a tarefa de aproximar temas de adulto das crianças. Respostas prontas e rápidas não saciam a sua curiosidade, e nem contribuem para formar pensamento crítico.

Estamos em ano eleitoral, e o mundo está cada vez mais polarizado. Todo mundo quer ter razão, fazer sobressair sua voz ou atacar quem pensa diferente. Nesse cenário, surgem com cada vez mais força as chamadasfake news, notícias falsas que segregam ainda mais os eleitores, ao invés de uni-los em prol do bem comum do país.

Para entender qual o impacto disso para as crianças, conversamos com Stéphanie Habrich, fundadora doJoca, o primeiro jornal voltado para o público infantil do Brasil. Para ela, há um ponto fundamental a ser considerado quando a questão é informação e infância: a relação dos próprios pais com a informação.

Por mais simplista que seja o exemplo, é possível pensar assim: da mesma forma que é um contrassenso oferecer brócolis às crianças enquanto se come pizza todo dia, é igualmente contraditório cobrar das crianças que saibam analisar a veracidade do que é dito para elas se os pais não valorizam o conhecimento no seu dia a dia. E isso vale não só para o jornalismo, claro, mas para toda e qualquer informação que chegue até a criança, desde uma informação recebida na rua até o contato com pessoas e situações desconhecidas.

“Repertório é muito importante. Quanto mais repertório temos, mais seguros nos sentimos”,diz a empreendedora.

“Conhecimento é segurança, e informação acalma”

Jornalismo é assunto de criança?

Antes de responder a essa pergunta, vale um exercício: pare e pense quantas vezes por dia, por semana e por mês uma criança tem contato com alguma notícia, seja na TV, na internet, no rádio ou mesmo indiretamente, enquanto anda na rua ou toma um suco na padaria.

Vivemos na era da informação – ou melhor, do excesso de informação -, e as crianças não estão imunes. Assim, não se trata tanto de pensar no que é “para crianças” ou não, mas ponderar as consequências de deixá-las reféns da desinformação promovida pelas fake news ou mesmo da omissão dos pais.

“Se a criança não ouve a explicação de um determinado assunto em casa, os pais perdem a chance de colocar aquela questão de acordo com seus próprios critérios”, pondera Stéphanie.

“Se ela não ouviu de você, vai ouvir de outra pessoa”

Foto de uma mulher loira, de pele clara, vestindo uma blusa branca e sentado em um sofá com uma edição do jornal O Joca nas mãos
A alemã Stéphanie Habrich e a missão de formar cidadãos críticos e aptos a transformar a realidade

Assim, tanto no caso das fake news quanto da informação de uma forma geral, incentivar o interesse da criança e responder da melhor forma às perguntas que elas fizerem está diretamente ligado ao protagonismo infantil. Isso porque somente uma criança que foi instruída e teve suas questões acolhidas pode se instrumentalizar para ser um indivíduo atuante no mundo. Aos pais e professores, não cabe esconder determinado assunto ou envolvê-lo em tabus; ao contrário, transparência é sinônimo de orientação. Para exemplificar a dimensão disso, Stéphanie dá um exemplo prático:

“A informação é uma oportunidade de formarum cidadão”

“Se a gente for a uma escola e perguntar do que as crianças querem falar, provavelmente vão escolher assuntos do momento. Mas o adulto tem que se perguntar: de onde vem isso?”

Ou seja, para de fato conhecer as demandas da criança, é preciso observar como ela se comporta, quais são suas inseguranças, como faz suas escolhas, entre outros aspectos que compreendem uma escuta integral que dê conta de apreender as múltiplas dimensões de uma criança – social, afetiva, psicológica.

Como proteger as crianças das fake news?

A relação das famílias com a informação é muito particular. Porém, é preciso considerar que é essa relação, em grande parte, que constrói as bases do que a criança entende por conhecimento. Por isso, vale a pena não só escolher bem as fontes de onde obter informação, mas também aproximar os filhos das conversas consideradas “de adulto“, desde que isso seja feito de forma consciente e com a devida orientação, para não sobrecarregar nem traumatizar a criança.

“O que queremos é formar adultos críticos. É preciso trazer a família mais para perto, a própria família tem que querer falar sobre isso”, defende Habrich, chamando a atenção para a importância de um debate claro e democrático com os filhos. Abrir espaço para o diálogo ajuda também a fortalecer os vínculos afetivos e de segurança entre pais e filhos.

“Uma vez ouvi de uma criança: ‘agora eu sou o melhor amigo do meu pai'”

No caso do Joca, que nasceu da vontade de reproduzir no Brasil a bem-sucedida experiência de pensar um jornal estritamente voltado para o público infantil – na Europa, existem mais de cem publicações do gênero – trata-se de uma linguagem já planejada, que antecipa os principais receios, medos e dúvidas do pequeno leitor. Mas e no caso dos outros veículos? Ainda assim, é possível traduzir o que se passa de uma forma que a criança entenda. Não se trata de oferecer respostas prontas, mas de pensar junto, questionar, perguntar “por quê?” repetidas vezes.

Em relação às fake news, a consciência sobre essa reflexão constante é ainda mais importante. Ao ter contato com uma determinada notícia, é bem-vindo questionar-se, buscar outras fontes, ampliar o olhar para outras perspectivas. Afinal, se adultos bem instruídos e preparados se tornam vítimas de informações falsas ou equivocadas, muito mais vulnerável é a criança, que ainda está em processo constante de elaboração do mundo.

“Tudo é contextualização, é contar uma história”

Algumas dicas de como colocar esse pensamento em prática

  • Não coloque verdades prontas – por exemplo, dizer que “político é tudo igual”.Discursos fechados não favorecem o senso crítico.
  • Quando ouvir um “mas por quê?”, questione de volta. “Por que você acha que é assim?”
  • Se não tiver resposta para alguma pergunta, diga que não sabe, proponha pesquisarem juntos.
  • Quando houver espaço para isso na rotina, chame as crianças para ler junto as manchetes do dia. Explique o que puder, converse, debata.
  • Não existem temas tabus, existem adultos sem disposição para aproximá-los das crianças da forma adequada.
  • Não fuja dos porquês das crianças. Acolher a pergunta é mais importante do que dar a resposta.
  • Procure múltiplas fontes para se informar.
  • Duvide de quem sempre diz saber tudo.

Crianças curiosas = crianças capazes

No Joca, não faltam exemplos do impacto desse estímulo assistido pela informação. Stéphanie conta vários deles, que chegam por relatos de famílias, escolas e educadores. Foi o caso de um brechó organizado pelas crianças ao ficarem sabendo da crise dos refugiados; em outra escola, um grupo de alunos teve a ideia de organizar uma mini-olimpíada depois que tiverem contato com os índices de obesidade infantil.

É nesse sentido que a informação capacita. Não se trata apenas de se manter abastecido daquilo que se passa no mundo, mas de agir e mudar o rumo dessa narrativa. Protagonismo.

Outro exemplo desse protagonismo infantil aconteceu em agosto de 2017, logo depois que o jornal noticiou o livro “O Diário de Myriam”. Publicado somente na França e ainda sem tradução no Brasil, o livro é uma espécie de “Diário de Anne Frank” sírio, pois também traz os escritos de uma garota de 13 anos sobre a guerra. No lugar do horror dos campos de concentração nazistas, a violência dos bombardeios em Aleppo.

Comovidas com a história de Myriam, centenas de crianças enviaram cartas ao Joca querendo saber mais, e pedindo que o livro fosse publicado no Brasil.

Três crianças estão lendo uma edição do Joca e sorrindo
Jovens críticos e cidadãos do mundo, exercendo o sentimento de pertencimento

“Gostaria de saber mais sobre o conflito e a vida na Síria: quais são as tradições, crenças, brincadeiras, comidas”, escreveu Gustavo, de 10 anos.

Ao todo, foram cerca de 200 cartas recebidas – todas escritas à mão pelas próprias crianças. Foi aí que Stéphanie resolver encampar uma campanha para a edição brasileira do livro. E deu certo: “O Diário de Myriam Rawick” (2018) foi publicado no Brasil pela editora Darkside, do Rio de Janeiro. No prefácio, Stéphanie escreve:

“A leitura e o conhecimento de mundo são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo”

“Tenho plena convicção de que ferramentas como o Joca, e como os diários de Anne Frank e Myriam, têm o poder de transformar toda uma geração, tornando crianças e jovens do século 21 cidadãos críticos e ativos, que lutam por seus direitos, que cumprem seus deveres e que possuem as ferramentas necessárias para construir um futuro melhor para o nosso país. Apenas assim teremos líderes responsáveis e arquitetos de uma nova geração engajada e transformadora”, afirma Stéphanie.

Não por acaso, o primeiro Joca de 2018 foi dedicado às fake news. O experimento foi distribuir tanto notícias falsas quanto verdadeiras, e avaliar qual o impacto de uma e de outra nos leitores. O que foi percebido é que, dentre as crianças que não conseguiam detectar quais eram as falsas, o desinteresse pelas informações era muito mais presente.

Muitas questões da ordem do dia no país se tornam alvo fácil de especulações, e o único caminho para se defender delas é o senso crítico. Daí a urgência de despertar desde cedo para a importância de questionar o que se vê, lê e ouve, consequentemente identificando as fake news. “O maior perigo é a desmotivação, porque se perdermos essa geração de agora, acabou. As consequências a longo prazo serão irreversíveis”, diz Stéphanie.

“Se as crianças de hoje não forem habilitadas a se defender de informações falsas, que líderes teremos no futuro?”

No fim das contas, o que importa mais não é os pais estarem sempre presentes para mostrar “é por ali”, mas sim a disposição para lembrar que existem muitos caminhos, e assim habilitar as crianças a buscarem sua própria resposta, tirar suas próprias conclusões.

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