Qual é o efeito dos desenhos de alto estímulo entre as crianças?

As produções audiovisuais podem alterar o comportamento das crianças dependendo do grau de estímulo de suas cenas

Renata Valerio de Mesquita Publicado em 15.05.2024
Duas crianças estão de costas, abraçadas, assistindo televisão. Ambas usam camiseta com listras azuis.
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Resumo

Você pode até não saber o que são desenhos animados de alto estímulo, mas certamente conhece exemplos ruidosos, de cores vibrantes e com mudanças rápidas de cena, não é? Eles podem sobrecarregar o cérebro das crianças, impactando seu comportamento e sua concentração.

Não há dúvidas de que as crianças ficam “hipnotizadas” pelos desenhos animados — afinal, eles são feitos para isso! Alguns encantam pela história contada, pelas melodias suaves e pela harmonia visual, e são classificados de “baixo estímulo”. Outros, os de “alto estímulo”, envolvem rápidas mudanças de cena, luzes piscantes, cores saturadas e sons intensos.

Então, observar o ritmo das cenas, o aspecto visual e sonoro em geral, além da carga emocional transmitida ajuda a dosar melhor o tipo e o tempo de exposição dos filhos a cada um deles. Os cortes sucessivos e frequentes de cena (com menos de quatro segundos de duração) somados a luzes e sons intensos exigem demais da cognição e dos sentidos da criança, que não estão maduros para seguir esse ritmo.

Tanta estimulação para acompanhar tudo o que está se passando gera nelas cansaço mental e uma aceleração interna. A propensão é extravasar essedesconforto por meio de birras, atitudes agressivas e irritabilidade. Assim, o que as crianças assistem refletem no comportamento delas e acaba impactando também o bem-estar de toda a família.

Já os desenhos de baixo estímulo oferecem um ritmo mais lento, enredos lineares, cores pastéis, sons suaves, além de foco em conteúdo construtivo, sintonizado com a fase de desenvolvimento do público infantil. Nessa proposta, as crianças têm tempo para processar as informações recebidas e espaço para usar a imaginação e a criatividade.

Na prática

Sem saber da questão conceitual dos desenhos, mas muito engajado em ler e aprender sobre o desenvolvimento infantil, Thiago Varela, intuitivamente, já sentia que alguns desenhos deixavam os filhos mais agitados. “Eu vejo diferença na maneira como eles reagem. Os mais tranquilos ajustam o comportamento”, comenta.

Ele e a esposa sempre controlaram bastante os programas assistidos e os horários. Os de alto estímulo ficam para a parte da manhã. Antes do jantar, é hora de baixar o ritmo. Então, entram os de baixo estímulo. Na cama, Liz, 6, e Theo, 4, só acessam historinhas lidas dos livros.

Os irmãos Liz, 6, e Theo, 4, têm horários específicos para cada tipo de programação

Diariamente, os irmãos se divertem com “Bluey” e, por meio dele, entendem que toda casa tem regras, por exemplo. “Eu me sinto animada e doidinha depois de ver ‘Bluey’, porque ela e a irmã [Bingo] fazem coisas maluquinhas”, diz Liz. Já o irmão Theo adora as caretas da personagem e seus desenhos favoritos são “Santiago dos mares” e “Hot Wheels”. “O Santiago vai para vários lugares”, conta Theo.

“As histórias mais fantasiosas trabalham com valores como coragem, perseverança e disposição para a aventura. Explorar o mundo e enfrentar desafios não são tão do cotidiano”, comenta Thiago, “mas também tem a ver com forças de caráter que eles precisam desenvolver”.

Contudo, é preciso lembrar que as crianças só aprendem de fato com a interação e a prática, como enfatiza Bianca Dias, especialista em neurociência do sono infantil. Elas precisam brincar, se movimentar, correr, viver o mundo real, estar ao ar livre, interagir com a natureza, se relacionar com outras crianças e adultos, entre tantas outras coisas. Para tudo há tempo.

Questão antiga

Diferentemente do que se pode pensar, essa não é uma questão apenas dos desenhos atuais. Muitos clássicos infantis estão na lista de alto estímulo. Aliás, a grande maioria dos desenhos tende ao alto estímulo.

Em 1997, aconteceu um caso emblemático que causou verdadeira comoção. O episódio “Porygon, o soldado elétrico”, do até hoje famoso “Pokémon”, provocou convulsões em diversas crianças pelo mundo. “Esse episódio era frenético, com muitos flashes azuis e vermelhos”, lembra a neuropsicóloga Mariana Medeiros Assed. “Precisou ser alterado para voltar ao ar.”

Ela explica que os impactos sempre dependem do tempo de exposição e de características pessoais de cada criança, como propensão à epilepsia. “Até os 9 anos é importante dar estímulo para o cérebro se desenvolver, porque é a fase em que ocorre o maior aumento de conexões cerebrais no ser humano”, argumenta Mariana, que trabalha com jogos eletrônicos de avaliação e treinamento cerebral. “Mas é preciso equilíbrio. Como diz o ditado, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.”

Na dose certa

Qual a medida para evitar impactos negativos de tela nas crianças?
0 a 2 anos – zero tela
2 a 5 – até uma hora por dia
6 a 10 anos – até duas horas por dia

Todo esse tempo deve ser acompanhado por um adulto.

Os piores momentos:
Logo que acorda
Hora das refeições
1 hora antes da soneca
Após as 17h

Fonte: Organização Mundial de Saúde e Sociedade Brasileira de Pediatria

Mariana conta que teve que restringir a exposição de seu filho Alexandre, 4, ao desenho “Ben 10”, porque estava afetando seu humor e sua concentração. “Ele estava ficando irritado e inquieto demais. O melhor seria substituir pela leitura, mas não precisamos ir de um extremo a outro, também dá para trocar por outros desenhos”, conta. Nesse caso, eles substituíram pelo “Mundo Bita” e alguns desenhos da Disney.

Alexandre continua gostando de desenhos mais agitados, seu preferido é “Sonic”. “O que eu mais gosto é da musiquinha do começo”, diz o menino. O caçula Augusto, 3, ainda prefere “Santiago dos mares” e “Patrulha canina”, que, se bem não são de baixo estímulo, porque não têm cores tão suaves e apresentam alguma movimentação de câmera, trazem temas e valores edificantes e som tranquilo (com exceção da música tema). De noite, eles assistem “Piper: descobrindo o mundo”. “Me acalma”, garante Alexandre.

Os irmãos Alexandre e Augusto têm seus desenhos preferidos, mas, à noite, assistem juntos a “Piper”

Em busca do equilíbrio

Os desenhos, principalmente os mais agitados, são pensados para gerar prazer e satisfação, pois liberam muita dopamina, substância química que traz sensação imediata de grande bem-estar. Não é por mérito da qualidade do desenho em si, a criança gosta do desenho, mas quer mesmo é ter aquela sensação de novo.

“É pesado comparar, mas a sensação do prazer produzida no cérebro é igual a de qualquer outro vício”, comenta Bianca Dias. “Com isso, a criança passa a querer só o que lhe dá prazer imediato. Fazer o dever de casa não gera esse tipo de satisfação.”

Até a década de 1990, a oferta de desenhos ficava limitada aos canais de TV aberta, fitas de vídeos, depois DVDs e, mais tarde, canais infantis pagos. Quando surgiram celulares, tablets e streamings, as opções e o acesso aos desenhos se ampliaram exponencialmente.

“Os pais abraçaram a novidade e se sentiram vitoriosos por poder oferecer isso aos filhos. Mas hoje vemos nos adolescentes e jovens muitos prejuízos gerados por conta de uma exposição prolongada à programação de alto estímulo”, avalia Bianca. Isso “afeta o humor, o comportamento, a concentração, a criatividade e o sono”, resume.

A especialista tem recebido crianças com suspeita de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), que, na verdade, estão “apenas” superestimuladas, uma consequência de cérebro sobrecarregado. Entre os sintomas destacam-se: distúrbios do sono, agitação, distração, puberdade precoce, dificuldade de socialização e até atraso na fala.

Ela sugere experimentar um “detox de telas” por 10 dias. Nos primeiros dias, as crianças costumam ficar mais nervosas, como se estivessem numa crise de abstinência. Mas, com o passar do tempo, vão voltando à infância. Passado esse período, o melhor é sentar e conversar com as crianças sobre os tipos de desenho adequados e sobre o tempo e os horários permitidos.

Mais indicados

Confira alguns desenhos de baixo estímulo que incentivam a gentileza, a empatia, o jogo criativo e mostram diversidade às crianças:

  • “Bluey” (Disney)
  • “Piper: descobrindo o mundo” (Disney)
  • “O ursinho Pooh” (Disney)
  • “Zé Coleta” (Netflix)
  • “Puffing Rock” (Netflix)
  • “Macaco George curioso” (amazon prime video)
  • “Pocoyo” (amazon prime video)
  • “Sara e o pato” (amazon prime video)
  • “Daniel Tigre” (amazon prime video)
  • “O mundo divertido de Peep” (Discovery Kids / amazon prime video)
  • “Um dia de neve” (amazon prime video)
  • “Se der um biscoito a um rato” (amazon prime video)
  • “Elionor, a curiosa” (Discovery +)

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