Abolir a lição de casa: o que está por trás dessa discussão?

Opiniões entre educadores e pais diverge; prática ganha força em outros países e começa a ser pautada em escolas de ensino integral no Brasil

Eduarda Ramos Publicado em 04.07.2023
Mãe e filho olham para um caderno. A imagem possui intervenções de rabiscos coloridos.
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Resumo

Lição de casa é um dos fatores que vinculam escolas e famílias no dia a dia. Mas, diante do avanço da tecnologia e a sobrecarga dos pais, como é a experiência de dedicar um tempo para acompanhar e orientar as crianças?

“A lição de casa está associada à formação de hábitos de estudo, responsabilidade, autodisciplina e envolvimento familiar na vida escolar do aluno”, diz o professor e pesquisador Marcelo Sabbatini. Em meio ao debate sobre abolir ou não a lição de casa, ele acredita que a atividade manterá seu papel importante como extensão da escola e que pais e cuidadores podem e devem participar mais ativamente destas trocas.

A prática de ter lição de casa vem sendo discutida em distritos nos Estados Unidos como Nevada, Iowa, Califórnia e Virgínia, que passaram a diminuir os pedidos por considerar que isso pode prejudicar os estudantes que precisam trabalhar ou cuidar dos irmãos. Na França, em 2012, o presidente François Hollande chegou a sugerir que o dever de casa fosse banido do país, mas a ideia não prosperou. No Brasil, escolas de ensino integral, que representam apenas 15% das escolas do país, têm tomado a frente no debate sobre abolir a lição de casa, como apurou o jornal O Globo.

O principal argumento entre quem defende abrir mão da lição de casa é em favor de mais tempo livre para as crianças e suas famílias em oposição a uma lógica que prioriza a produtividade e a conquista de resultados. “Por que exigir lições de casa diárias para crianças que já permanecem oito horas por dia na escola?”, questiona Ana Lúcia Bresciane, coordenadora do espaço ekoa, escola de educação integral, em São Paulo.

Para ela, as propostas de atividades para fazer no lar buscam “desenvolver nas crianças o senso de responsabilidade, ou enriquecer algum estudo ou discussão”, mas que um desenvolvimento infantil saudável fora da escola pode ser desfrutado “com atividades em família, conversas, atividades lúdicas, culturais, ou simplesmente com dedicação ao ócio e ao descanso”. Por isso, ela recomenda considerar o tempo de permanência das crianças na escola, a idade e o tipo de lição proposta.

“Não abolimos totalmente propostas para casa, mas somos bastante criteriosos em relação à qualidade e à quantidade do que é solicitado”

O que diz a lei?

Segundo o artigo 15 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), são assegurados às unidades escolares públicas de educação básica progressivos graus de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira. Segundo a Base Nacional Comum Curricular, na educação infantil, as interações com o outro e o brincar são os eixos estruturantes do aprendizado escolar; já no ensino fundamental, novas formas de relação com o mundo, possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las e de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos, são esperadas de forma articulada com o trabalho realizado na educação infantil.

Como as famílias lidam com a lição em casa?

Para Magali Dantas, mãe de Raphael, 9, além da lição de casa ser necessária, ela promove mais oportunidades para que os pais participem da vida escolar dos filhos. “Sem isso, o vínculo ficaria restrito apenas às reuniões de avaliação”, diz.

Mas, segundo ela, o que dificulta a participação da família é o jeito que a sociedade é estruturada, reforçando disparidades de gênero e classe. “Mulheres pobres, negras, que exercem a parentalidade solo ficam ainda mais sobrecarregadas.” Sobre a possibilidade de terceirizar a educação dos filhos, Dantas questiona “quem é que pode ficar sem cuidar dos filhos ou colocá-los numa aula particular?”

“A discussão que se tem de fundo quando falamos de lição de casa é sobre as relações de poder da sociedade, que se espelham também nas relações familiares”

Além de manter diálogo com a professora das filhas e ter trocas com pais e educadores pelo aplicativo da escola, Rosiani Machado, mãe de Ana Flor, 9, e Mariana, 2, gostava de fazer lição de casa com a mais velha “porque sentia que aquele momento era nosso”, diz. “A gente parava e estudava sobre aquele assunto e eu sentia que interagia com minha filha.”

Agora que Ana Flor começou a avançar nas séries e passou a ter outras disciplinas, além de atividades extracurriculares, como inglês e natação, o cenário mudou. “A lição de casa atrapalha o ritmo que eu tento ter com ela, porque ela faz sempre rápido e eu não vejo muito como acrescentar.” Por causa dessa vivência diária, a mãe hoje não acha necessária a lição de casa “na abordagem de escrever no livro”, mas incentiva a criação de desenhos, poemas e busca associar os temas pedidos pela escola com algo que a filha goste de fazer.

Machado e Ana Flor dedicam uma hora todos os dias aos estudos, independente de ter lição de casa ou não. Porém, o processo de auxiliar nas tarefas de casa, muitas vezes, é solitário, comenta Machado. “Não sei até que ponto exijo demais, se sou relaxada demais. É desafiador ensinar.”

A mãe ajuda a rever alguma matéria, avalia como a menina está indo na escola ou auxilia em eventuais dificuldades que Ana Flor encontra no aprendizado. Se alguma atividade realizada com a filha aborda um conteúdo que a ela não se lembra, Machado entra na internet e estuda junto com a menina. “Vejo o assunto um pouco antes, dou uma revisada, assisto videoaula, se necessário, ou minha filha vai assistindo comigo. Procurar conteúdos produzidos por mães e educadores na internet é uma forma de ‘tentar ter uma luz’ para as dificuldades que a lição de casa traz.”

Existe futuro para a lição de casa?

Sabbatini reconhece aspectos negativos nesta relação entre escola e família mediada pelas lições de casa. “O excesso de trabalho levando à fadiga, o estresse, o desinteresse e a desigualdade de recursos em termos de apoio familiar, assim como nos próprios objetivos da educação” são alguns dos fatores que o professor lista. No entanto, defende uma “escola-cidadã”, pois, segundo ele, “existem evidências de que a educação funciona melhor quanto mais integrada estiver com a comunidade, de modo que seja um ponto de encontro e de discussão das questões que são importantes para aquelas pessoas”.

Caminhos para repensar a natureza da lição de casa

  • Aprendizagem baseada em projetos ou aprendizagem investigativa
    Trabalhar a interdisciplinaridade, a criticidade e o trabalho colaborativo a partir da “exploração, reflexão e aplicação de conhecimentos” em vez de propor uma tarefa padronizada, baseada em “repetição e prática como forma de memorização”
  • Tarefas durante a própria aula
    Substituir a exposição de conteúdos do jeito tradicional (lousa e caderno) por atividades práticas, projetos, discussões ou leitura independente, por exemplo

“Fazer uma entrevista, um passeio cultural com os familiares para enriquecer um estudo ou pesquisa, ou uma leitura para ampliar o repertório de um debate, pode ser igualmente significativo”, diz Bresciane.

* As sugestões foram elaboradas a partir da consulta ao professor Marcelo Sabbatini e à coordenadora Ana Lúcia Bresciane.

Para Sabbatini, as maiores questões que envolvem a lição de casa hoje estão diretamente ligadas aos desafios que o avanço tecnológico trouxe, como o uso de redes sociais e o uso de inteligência artificial. “Sem uma inclusão digital efetiva, com uso crítico da tecnologia, o resultado é ‘voltar às práticas de sempre’, sem reconhecer as limitações que precisam ser superadas.”

Previsto para o segundo semestre de 2023, o recurso de tutoria “Série de exercícios”, disponível no Google Classroom, propõe utilizar inteligência artificial para aprimorar o processo de ensino e aprendizagem por meio de tarefas interativas.

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