Crianças sem celular: é hora de reprogramar a infância?

Tempo demais no mundo virtual, principalmente sem orientação e supervisão, está impactando a autoestima e a autoimagem de crianças e adolescentes

Renata Valerio de Mesquita Publicado em 01.07.2024
imagem de capa sobre matéria de hiperconexão das crianças mostra um menino branco, de cabelos curtos e moletom usando um smartphone
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Resumo

A hiperconexão está tirando tempo do brincar e das interações reais das novas gerações. Além disso, sem a regulação das plataformas digitais, é preciso redobrar a atenção quanto à segurança de crianças e adolescentes no mundo on-line.

Evidências científicas mostram que a hiperconexão com o uso precoce de celulares e redes sociais por crianças e adolescentes tem afetado o comportamento, a saúde física e mental desses grupos, principalmente quando não há controle de tempo ou supervisão. Aliás, pela primeira vez, dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do SUS, apontam que eles estão mais ansiosos que os adultos.

“A situação é séria, não dá para minimizar. Estamos diante de empresas que viciam as crianças, e fazem isso de propósito, para benefício próprio. Como uma família pode enfrentar uma empresa que investe bilhões de dólares em neurociência e programação para fixar a atenção nos seus produtos? Como é que a gente sai desse buraco?”, questiona o pediatra Daniel Becker.

Embora as “big techs” minimizem publicamente a responsabilidade dos seus algoritmos sobre o bem-estar e o desenvolvimento dos pequenos, a denúncia de uma ex-funcionária do Facebook, em 2021, indicava a piora da autoestima em 32% das adolescentes e o aumento de pensamentos de suicídio e automutilação em 13,5% delas.

Estamos amputando a infância, e é nela que mora a magia e a semente de uma vida mais feliz e mais leve na fase adulta. Essas vivências no mundo real estão desaparecendo e sendo trocadas por uma atividade muito tóxica. Precisamos, portanto, entender que a criança não precisa de celular. Ela precisa demais de vivenciar o mundo real”, alerta Becker. Então, como reprogramar a infância para a essência dessa fase que envolve tempo do brincar, das interações presenciais e da formação de vínculo?

“A medicina pode prolongar sua vida por 20 anos, mas a infância continua durando 12”

Contudo, uma eventual conectividade, bem regulada e com objetivos claros, pode ser positiva. Seja para entreter as crianças com conteúdo de qualidade em momentos estratégicos, como numa fila demorada; seja para aprendizado de alguma atividade, línguas ou instrumentos musicais; seja para pesquisas escolares, ou até para manter contato com pessoas queridas que estão longe.

Propostas para o reequilíbrio

No livro “A geração ansiosa”, o psicólogo social norte-americano Jonathan Haidt encontrou na hiperconexão as causas da atual epidemia de transtornos mentais em crianças, adolescentes e jovens. Desde o início dos anos 2010, momento em que os smartphones e redes sociais se tornaram mania, as taxas de depressão, ansiedade e até suicídio, por exemplo, têm crescido expressivamente entre esses grupos.

A proposta do autor é conter essa “reprogramação da infância”, como define os efeitos das redes sociais no bem-estar das novas gerações e da sociedade em geral. Além de ações governamentais e empresariais, Haidt coloca para as famílias quatro iniciativas fundamentais e urgentes para garantir uma infância mais saudável na era digital. A pedido do Lunetas, o pediatra Daniel Becker comenta cada uma delas:

  • Nada de smartphones antes do 9º ano
    A criança não precisa de smartphone, porque é o instrumento mais tóxico. Não é questão de se afastar da tecnologia. Pode ver TV, tablet, até jogar. Se precisar para se comunicar, o indicado é celular sem internet.”
  • Nada de redes sociais antes dos 16 anos
    “É melhor que isso aconteça depois de uma infância fora das telas. E depois da puberdade, quando ocorre uma reconfiguração da área do cérebro responsável pelo controle da impulsividade, definição das escolhas, planejamento e pensamento crítico.”
  • Nada de celular nas escolas
    “Criança hoje não brinca mais na rua, em praças, e tem muitos compromissos que impedem o brincar. O recreio é o último reduto da brincadeira. É de importância capital para o resgate da vida real.”
  • Recuperar o brincar independente na vida real
    “Estou chamando isso de sair do online e ir para o onlife. Voltar para a vida, para a luz do dia, para o movimento, para a interação, para a brincadeira, para a conversa, para a alegria e para a infância no mundo real. Ou seja, para tudo o que é absolutamente indispensável ao desenvolvimento humano.”

‘Gastar mais energia do que bateria’

Os filhos de 12 e 13 anos da youtuber de maternidade e conselheira parental Monica Romeiro não estão nas redes sociais. Eles têm smartphones monitorados pelos pais e bloqueados para baixar aplicativos. As chamadas e o WhatsApp estão liberados para assuntos escolares e para falar com amigos e familiares já cadastrados. Ainda assim, regularmente suas trocas de mensagem são lidas pela mãe.

Mesmo sem perfil, os filhos de Monica chegam a acessar algumas redes para aprender a jogar xadrez, por exemplo. E até podem assistir vídeos curtos do YouTube, mas somente com tempo controlado e em locais onde os pais possam escutar e ver o que estão assistindo. Esse cuidado é devido à fase peculiar de desenvolvimento, segundo a mãe, “a adolescência é um momento de confusão e de construção e, para entrar para as redes sociais, eles precisam estar mais emocionalmente preparados”. Portanto, para ela, é uma janela de oportunidade para “educar para o resto da vida”.

“Não sou contra o uso de telas. Sou contra as telas usarem nossos filhos ou nos usarem. Se você perder mais tempo naquilo, você está sendo usado.”

Monica usa a seguinte comparação para falar sobre a responsabilidade da supervisão: “Ninguém deixaria uma criança cinco horas sozinha no shopping, não é? Deixar uma criança sozinha na tela é como deixá-la abandonada, vulnerável a qualquer coisa indevida que possa aparecer ali. Não é porque ela está dentro de casa que está segura. E não é responsabilidade da Netflix ou do YouTube dizer o que seu filho vai assistir. Depende dos pais orientar e estabelecer combinados.”

Algumas dicas práticas para começar:

  • Determinar horários, evitando que seja até duas horas antes de dormir.
  • Priorizar pessoas em vez de telas.
  • Oferecer atividades alternativas às telas, mesmo que não seja papel dos cuidadores brincar ou entreter a criança 24 horas.
  • Questionar o que veem nas redes sociais e instigá-los a refletir: “Você achou isso legal? Parece mesmo real? Dá para ter uma pele assim?”, sugere Monica.

“A criança vai ser feliz com interações sociais positivas que liberam serotonina, endorfina e ocitocina. Isso, sim, é felicidade. Tela não é felicidade, porque é cortisol (que é sinônimo de estresse) e dopamina (que é prazer imediato e curto)”, provoca. Nas redes sociais, a dopamina vem com os coraçõezinhos que se recebe, nas visualizações que um vídeo contabiliza. E ela é viciante.

Estar ou não estar nas redes sociais?

Conforme a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023, 95% das crianças e dos adolescentes de 9 a 17 anos acessam a internet e a maioria, em todas as faixas de idade, tem seu próprio perfil nas redes sociais. Instagram, YouTube e TikTok são as redes mais usadas.

Apesar disso, esses públicos ainda não estão cientes de que o que encontram nas redes sociais é apenas um recorte do que as pessoas querem mostrar. Como é difícil diferenciar vida real e virtual, “o que aparece ali é visto como verdade pelas crianças — e também pelos adultos, como acontece com as fake news”, comenta Monica.

Assim, imagens editadas e cheias de filtros publicadas podem acabar virando referência para crianças e adolescentes, principalmente para as meninas. Nesse sentido, a comparação desigual pode gerar sérios problemas de autoestima e autoimagem.

Aos 12 anos, a norte-americana Emma Lembke, 21, entrou para o Instagram. Logo, estava dedicando de cinco a seis horas por dia rolando a tela. Até que se deu conta: “aquilo estava afetando meu bem-estar e me impedindo de ver o mundo de forma criativa”, afirmou publicamente.

Então, aos 17, ela decidiu se desconectar por um tempo. Naquele momento, criou um blog para ajudar crianças e adolescentes a se relacionarem melhor com as redes sociais. Recentemente, o projeto virou ONG de projeção internacional, a Log Off Movement, que defende que cada um esteja no controle. Para isso, é preciso ter claro a hora de desconectar, priorizar as interações no mundo real, focar em conteúdo positivo e respeitoso, e lembrar que saúde mental vale mais do que validações on-line e joinhas recebidos.

Por isso, além de dar o exemplo reduzindo o tempo que dedicam às redes sociais e aos smartphones — porque essa é a forma mais efetiva de ensinar os filhos — Becker sugere que os pais resistam a essa pressão.

Por que deixar os filhos fora das redes sociais na infância?

  • Aumento da miopia, que está se tornando uma epidemia
  • Tendência ao sedentarismo, já que em vez de estar brincando e se movimentando, estão sentados no sofá com celular na mão
  • Tendência ao isolamento social, porque ficam muito tempo dedicados às telas
  • Enfraquecimento de musculatura, da ossatura e do condicionamento cardiovascular, além de problemas posturais
  • Perda de coordenação motora, equilíbrio e das habilidades finas, porque praticam menos desenhar e escrever à mão
  • Perda da atenção. Cérebros imaturos expostos horas por dia a vídeos curtos, altamente estimulantes, estão treinados para não manter atenção por longo tempo.
  • Redução do pensamento crítico. O conteúdo breve e o imediatismo das redes desenvolve a habilidade de respostas rápidas e mais automatizadas, assim não estimula a reflexão
  • Hiperatividade e transtornos do sono, devido ao superestímulo dos vídeos, excesso de informação e à ansiedade por notificações e likes. “Quando a criança dorme com o celular por perto, ela não dorme bem. E a criança que não dorme também não aprende, fica mal-humorada e não consegue se relacionar.”
  • Tendência ao consumismo exacerbado e à futilidade (rotinas de cuidado com a pele e maquiagem, por exemplo)
  • Transtornos de imagem, alimentares e perda da autoestima ao acreditarem que fotos editadas são realidade. Isso porque dispara a comparação, que se conecta com automutilação, depressão, ansiedade, transtorno de pânico e até aumento expressivo de suicídio
  • Risco de contato com pedófilos, chantagistas, golpistas e pessoas com más intenções que estão à espreita na internet para se comunicar com a criança. “Existe uma proteção excessiva na vida real e proteção nenhuma no mundo digital.”
  • Riscos de cunho ideológico: as crianças e os adolescentes são altamente influenciáveis então ficam à mercê de conteúdos de ódio, intolerância, racismo, cyberbullying, entre outros
  • Riscos de morte ao se submeterem a desafios perigosos, como tomar remédios, enforcamento etc.

Sem smartphone: existe vida fora da rede social

Com base em pesquisas como a TIC Kids Online Brasil, a campanha “Infância Livre de Telas” levou para as ruas imagens para alertar sobre a dependência tecnológica das crianças e os efeitos disso. Assim, além de informações sobre o tema, trazem sugestões para reduzir o uso de telas e formas de reimaginar o futuro, com opções de entretenimento e sugestões de leitura. É um projeto colaborativo sem fins lucrativos criado em parceria entre Editora Timo, Catraca Livre, IPA Brasil, McCann Health Brasil e o pediatra Daniel Becker.
Já o “Movimento Desconecta” nasce da preocupação de um grupo de mães de São Paulo com o uso precoce e excessivo de celular e redes sociais. Com o lema “A infância e a adolescência são muito curtas para serem vividas em um smartphone”, segue os quatro preceitos defendidos por Jonathan Haidt. A ideia é promover mais reflexão sobre o tema, propor ações coletivas que conscientizem e favoreçam a desconexão desse público, incentivar uma infância rica em experiências reais, valorizando o brincar, a natureza e, consequentemente, combatendo transtornos mentais entre as novas gerações.
Depois da experiência nas escolas municipais do Rio de Janeiro, o PL 293/2024 visa proibir celulares e aparelhos eletrônicos nas escolas de São Paulo.

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