Lugar de criança é brincando lá fora

Cada vez mais afastadas de ambientes naturais, as crianças perdem muito com essa desconexão impulsionada por fatores como o excesso de zelo e a falta de incenti

Cintia Ferreira Publicado em 17.05.2023
Foto de dois meninos brincando na lama. As roupas são coloridas e estão sujas de barro.
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Resumo

Especialistas discutem quais caminhos são possíveis para voltar a aproximar as crianças da natureza e por que isso é tão importante para o bem-estar físico e emocional na primeira infância.

A sola do tênis suja de grama e a camiseta que chegou suada e manchada de lama dão pistas de que lavar tudo isso vai ser difícil. Nessa hora, a mãe suspira: o trabalho nunca termina. Porém, assim que ela olha o filho, com o sorriso que mal cabe no rosto por ter vivido um dia no parque ou aproveitado ao máximo o recreio da escola, ela esquece da sujeira da roupa e repara na felicidade. Esse gosto pela terra, pela vida lá fora, não é nada peculiar: infância e natureza combinam muito. Mas por que será que as crianças estão cada vez mais longe dessa “sujeira saudável”? Como replantar essa sementinha entre as gerações que estão chegando?

O crescimento dos centros urbanos, a baixa oferta de espaços públicos verdes e seguros, o medo de que a criança “adoeça” se pegar uma “friagem” ou se brincar no chão ajudam a explicar um pouco desse afastamento. Contudo, a perda de contato com o meio ambiente, que leva as crianças a se acomodarem em espaços fechados, onde frequentemente se dedicam a telas, pode reverberar não só durante a infância. Estar à parte do mundo natural e de todos os seres viventes, sem manter um vínculo profundo e sólido, dizem os povos originários há centenas de anos, não é sustentável. Os impactos são para a vida toda. Por isso, uma das iniciativas mais importantes é levar as crianças para fora de casa, mesmo que seja só um pouquinho.

A natureza possível

“É preciso que as crianças tenham a chance de se apaixonar pela natureza, por meio de experiências autônomas e que engajem todas as suas dimensões (física, mental, emocional, social e espiritual). Isso porque, sem dúvida alguma, há relações entre o sentimento de pertencer ao mundo natural e atitudes para valorizar o planeta”, avalia a especialista em infâncias e naturezas do Instituto Alana, Maria Isabel Amando de Barros. Ela faz parte do Programa Criança e Natureza, que tem como missão defender o direito de toda criança viver em um meio ambiente saudável, fortalecendo o seu vínculo com a natureza.

Embora muitos pais e cuidadores possam ter ressalvas quanto a deixar os filhos brincarem na pracinha perto de casa, seja porque não está bem cuidada ou pelo medo da violência, é importante que aproveitem esses espaços. “As crianças não precisam de uma área extensa e extremamente preservada. Devemos valorizar as praças e pequenos parques próximos e acessíveis, onde podemos levar as crianças com mais frequência para que corram, subam em árvores, coletem sementes e folhas”, afirma a pesquisadora.

O site Criança e Natureza tem uma série de sugestões sobre como favorecer esse brincar mais ativo e engajado das crianças com a natureza a partir da naturalização de parquinhos e outros espaços de brincar que aproveitem troncos de árvores, caminhos de terra, árvores e plantas como brinquedos. O GPS da Natureza, por exemplo, permite que as famílias descubram áreas verdes por perto e acessem ideias criativas de brincadeiras para fazer.

O poder público tem responsabilidade por garantir que crianças possam acessar lugares amigáveis e brincantes e que eles estejam distribuídos de maneira justa, pontua Barros. “Temos acompanhado e apoiado diversos municípios que fazem parte da Rede Urban95, iniciativa da Fundação Bernard van Leer, que estão trabalhando para transformar escolas e parques em ambientes que favoreçam a interação da criança com a natureza e dela com seus pares”.

Diversão de graça

“Minha família sempre gostou muito de plantas, cresci numa casa com jardim, tive cachorro, pássaro, peixe, hamster e pintinho que virou galo de estimação. Quando mudei para casa da minha avó, aos 11 anos, os amigos diziam que o filme do Tarzan tinha sido filmado no jardim dela”, lembra Talita Cristina Nicoletti. Hoje ela mora em uma casa com gramado, horta e flores, onde o filho Kenzo, 8, desde bebê brinca na grama e pelo chão com as cachorras, e interage com minhocas, lagartixas, taturanas, abelhas e borboletas.

“Sou mãe solo e empreendedora, o orçamento é baixo. Então a melhor forma de diversão quase gratuita é a natureza. Assim colocamos a vitamina D em dia e somos felizes”. Além do próprio quintal, a dupla prioriza passeios em praças, parques e ambientes temáticos naturais. Também na escola onde estuda, Kenzo tem acesso a “horta, árvores, um barranco que escorrega”, detalha a mãe. E assim volta: todo sujo de lama”, diz.

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Arquivo pessoal

Kenzo aprende desde cedo com a mãe a valorizar a interação com a natureza e seus seres

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Fabiana sempre leva os filhos ao parque para interagir com a natureza

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Catharina e Francisco brincam ao ar livre e sempre visitam os parques da cidade

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Arquivo pessoal

O contato com a natureza é um valor que passa de mãe para filho na família de Talita

Na casa de Fabiana Ferreira Rocha, Catharina, 6, e Francisco, 10 meses, também sempre tiveram apoio dos pais para brincar ao ar livre, visitar parques, tomar banho de chuva, além do contato com pets desde cedo. “Nós temos brincadeiras com água de mangueira, mostro para minha filha como subir em árvores, pisamos na grama. Adoramos quando tem lama! Em algumas pracinhas perto de casa tem folha de árvore. Eu e minha filha fazemos guerra de folhas com os pés.”

Além de sempre estimular esse tipo de interação com o meio ambiente, ela recomenda que pais e cuidadores “liberem sua criança interior”. “Mesmo que não saia muito de casa, brinquem com eles de mangueira em um dia quente ou dancem com seus filhos na chuva. É maravilhoso”, detalha.

Natureza não é sujeira

Além de ser raro encontrar espaços verdes em algumas regiões urbanas, existe um outro “inimigo” dos pais e cuidadores quando o assunto é natureza: a sujeira, ou melhor, o medo de que o contato com terra, lama e muitos microorganismos possam trazer doenças. Quem nunca ouviu que tomar banho de chuva pode gripar? Ou ficar muito tempo em ambientes externos pode fazer a criança “pegar friagem”? Será que, para além do senso comum, tem algum fundamento a ideia de que estar em contato com a natureza pode fazer mal para a saúde da criança?

Ter medo de eles se sujarem ou ficarem doentes nunca foi uma questão na família Rocha. “Acredito que é o contrário: isso ajuda na imunidade deles”, diz a mãe. A crença dela foi confirmada por um experimento feito na Finlândia que substituiu o piso cimentado de algumas escolas por solo trazido de florestas, com cerca de 500 vezes mais micróbios e microorganismos. O resultado, publicado na revista Science Advances, mostrou que as crianças que brincaram nos espaços verdes tinham mais bactérias amigáveis vivendo na pele e desenvolveram mais moléculas anti-inflamatórias do que aquelas que não tiveram esse contato.

A proximidade com a natureza, desde cedo, pode ainda ajudar na prevenção ou amenizar quadros alérgicos, indica a pediatra e membro da Doctoralia, Tathiana Pereira. “Os casos de alergia vêm aumentando muito nos últimos anos, principalmente após a pandemia. Se as crianças não podem brincar ao ar livre e em convívio com as outras, perdemos uma oportunidade preciosíssima de formar uma imunidade nata, que é a primeira linha de defesa do nosso organismo. Se retardamos esse processo, ao entrar em contato com germes ‘desconhecidos’, há maior chance da criança desenvolver quadros alérgicos”, explica.

Cuidados básicos de higiene, como banho, escovação dental, lavar as mãos, ingerir alimentos saudáveis e limpos, continuam sendo essenciais para prevenção de doenças e devem ser incentivados, mas brincar na natureza não é se sujar, é ser feliz, pondera a pediatra. De acordo com ela, o estímulo às brincadeiras ao ar livre e a coletividade é um modo eficaz de expor as crianças a essa “sujeira saudável”. “Quanto mais assépticos forem os ambientes, menores serão as chances de sermos apresentados a microorganismos que, de forma indireta, estimulam nosso sistema de defesa”, diz.

Na mesma linha, a especialista do Instituto Alana recomenda atenção ao valor que a exploração do mundo tem no desenvolvimento integral das crianças. “Claro que não defendemos a exposição delas a ambientes poluídos ou extremamente sujos, mas a terra, a grama e outras formas de vegetação não são sujeira. Os ambientes naturais são o espaço de pertencimento das infâncias e conviver com eles com autonomia e liberdade – com o acompanhamento cuidadoso e incentivador de um adulto – é uma das melhores experiências que podemos proporcionar às crianças”.

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