Com a sobrecarga de tarefas e a influência das redes sociais, aniversários padronizados trazem praticidade, mas acabam reproduzindo experiências adultas
Diante da “adultização” das festas de criança, o Lunetas buscou entender a importância desses ritos de passagem para as famílias, e os cuidados para evitar o incentivo de hábitos prejudiciais, como o consumo de álcool, nesses eventos.
Festas infantis em resort de luxo, um dia de princesa no spa ou um ônibus balada com drinques de adulto em versão sem álcool são propostas de comemorações que vêm substituindo as tradicionais festas com bolinho e parabéns. Mas, qual é o verdadeiro propósito dessas celebrações? Por que as crianças querem imitar festas adultas? Há necessidade de tanto glamour?
Segundo a psicóloga especialista em crianças e adolescentes Juliana Piovezan, as festas infantis são uma fase importante na vida das crianças, pois funcionam como rituais de passagem que as auxiliam a entender a transição do tempo cronológico. Mas ela lembra que as festinhas também têm impacto no desenvolvimento físico e psicológico das crianças.
Por isso, segundo ela, deve-se promover um ambiente de celebração que respeite o estágio de desenvolvimento: “Pelo menos entre os sete e oito anos os pais devem focar em comemorações que considerem as crianças como crianças, e não miniadultos. Onde elas possam comer doces, se esbaldar na comilança, suar e se sujar sem se importar com a aparência, e brincar até ficarem exaustas.”
Julia, 10, se encantou com a festa da amiga Martina, também de 10 anos, que aconteceu em um resort, próximo a Curitiba, Paraná. Tinha piscina, com tobogã, música e “comida chique”, nas suas palavras. Julia associa esse tipo de festa às cenas de filmes como “Meninas malvadas” (o original de 2004 ganhou uma nova versão no início de 2024), em que as personagens buscam a popularidade. “Nesses momentos, nos sentimos lindas, legais e interessantes”, dispara.
O sentimento de Julia é compartilhado por meninas e meninos na pré-adolescência, que ocorre entre os 10 e os 14 anos, quando é comum estarem interessados em parecer mais velhos. A psicóloga Juliana esclarece que, a busca das crianças por se aproximar dos adultos é uma jornada rumo à descoberta da própria identidade. Durante esse período, os pais e outros adultos que elas admiram continuam a ser os principais modelos de comportamento. E isso muitas vezes se reflete nas festas.
“A adultização das festas infantis pode impactar significativamente o desenvolvimento emocional, a autoestima e a identidade das crianças”, diz Piovezan.
Até dois anos atrás, todas as festas de Ísis, 11, tinham inspiração em personagens da Disney: Branca de neve, Rapunzel, Moana e Valente. Mas a mãe, Roberta da Silva Bomfim, admite que talvez essas escolhas tenham refletido mais os sonhos dela do que da própria filha.
Ísis nasceu prematura, aos sete meses de gestação, com complicações de má formação em alguns órgãos que exigiram meses de cuidados na UTI. Roberta conta que, por isso, cada ano de vida de Ísis é considerado pela família um presente a ser celebrado.
A menina, que faz aniversário em setembro, conta que os temas de suas festas vêm mudando: “no ano passado foi ‘borboleta roxa’. Esse ano eu quero fazer tudo muito rosa, como era nos anos 2000. Eu vi no TikTok.” Roberta reconhece que vai se despedindo do que desejou para sua “princesinha” e passa a dar lugar às fantasias da própria filha. “Nós começamos a preparar tudo um ano antes. Eu faço todas as confecções. No fim, o pai também se envolve, pinta a parede e monta o que for preciso”, diz Roberta.
É comum que nos primeiros anos de vida as celebrações de aniversário fiquem concentradas no círculo familiar, principalmente porque até os dois anos a criança ainda socializa pouco. À medida que crescem, observa a psicóloga Juliana, as festas de aniversário oferecem oportunidades para desenvolver novas relações sociais e experienciar interações diversas.
É muito comum que as festas pensadas cuidadosamente pelas famílias, com confecções artesanais e simplicidade, dêem espaço para celebrações padronizadas. Assim, o que conta é mais a popularidade e a praticidade do que a personalidade e a idade do aniversariante. “A adultização das festas infantis como prática dos tempos atuais, na minha opinião, reflete a falta de tempo e sobrecarga de tarefas de trabalho e casa”, diz Juliana Piovezan. Isso leva “os pais a escolhas mais rápidas, como moldes de festas prontas”.
É o caso de Luana Furtado, que deu de presente à filha Jade, 7, um dia de princesa em um spa, influenciada por uma ideia que viu no Instagram. “Ela convidou as amigas e fizeram máscara de chocolate, massagem, banho de banheira com espuma e tiveram um jantar”, descreve a mãe. De lembrancinha, todas levaram para casa uma nécessaire de maquiagem.
Para Luana, além de economizar, ela pode aproveitar mais o momento para curtir com a filha e a família do que se fosse em um buffet, com diversos convidados para quem teria que dar atenção. “Até uma festa do pijama no prédio daria muito mais trabalho que isso”, desabafa.
Para muitos familiares que frequentam festas infantis, o consumo de álcool é normalizado. Nesse caso, no entanto, a máxima “enquanto as crianças brincam, os adultos também se divertem” pode ser perigosa. “Beber é uma ideia muito aceita socialmente, ainda que, do ponto de vista psicológico e populacional, seja muito ruim”, defende a coordenadora do projeto de álcool da ACT Promoção de Saúde, Laura Cury.
A presença de adultos que acabam embriagados e manifestando comportamentos inadequados também pode criar um ambiente desconfortável para as crianças. Por esse motivo, Sara Bonfim, mãe de Estrela, 2, e Julia, 10, não tem boas lembranças das festas de criança de sua infância. Desde o nascimento da primeira filha, ela evita a presença de álcool nos aniversários. “Sempre me acharam uma chata por não deixar os convidados beberem álcool nas festas”, conta. “O álcool muda a energia do ambiente e, quando tem, as crianças dizem que os adultos não dão bola pra elas.”
Os aniversários das crianças ensinam valores como gratidão e compartilhamento, destacando a relevância fundamental desses momentos na formação de memórias afetivas e no fortalecimento das relações familiares.
“Esses eventos não apenas expõem as crianças a ambientes e propostas de interação diferenciadas, mas também podem promover encontros mais frequentes entre famílias”, ressalta Juliana Piovezan. Segundo ela, isso ajuda a “estabelecer laços espontâneos e descontraídos em um ambiente festivo entre as crianças”.
‘Drinques-kids’: festinhas na mira da indústria de bebidas
Embora seja proibido vender bebidas alcoólicas para menores de 18 anos (Lei 13.106), a indústria do álcool vê nas crianças consumidores em potencial. Por isso, festas infantis são ótimas oportunidades para explorar esse mercado. Hoje, é fácil encontrar taças de champagne e similares criadas para crianças, com a desculpa do glamour. Para Cury, essa glamourização do consumo de álcool desde a infância acarreta sérias implicações na vida adulta. “Os adultos mostram às crianças, desde cedo, que os eventos sociais precisam estar regados a álcool.”
A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), conduzida em 2019 pelo IBGE, constatou que o consumo de álcool por crianças e adolescentes está iniciando cada vez mais cedo. Segundo o levantamento, 63,3% dos estudantes entre 13 e 17 anos já experimentaram alguma bebida alcoólica e 47% dos alunos nessa faixa etária afirmaram ter ficado embriagados pelo menos uma vez.