Além de estimular áreas cerebrais cruciais, a prática ajuda a linguagem, a memória e o pensamento crítico
Escrever à mão tem caído em desuso, mas inúmeros estudos mostram o quanto recorrer ao lápis e ao papel pode ajudar no desenvolvimento motor e cerebral. Especialistas mostram caminhos para as crianças se reconectarem com essa prática.
Era uma vez um macaco que precisou pular três montanhas da floresta para chegar ao casamento do amigo. Esse não é o início de uma história infantil. É uma das maneiras de começar o ensino da letra cursiva, atualmente uma técnica opcional, cada vez mais desafiada pelos dispositivos eletrônicos. Mas quais os impactos de priorizar o teclar? O que as crianças ganham quando aprendem a escrever à mão?
“Quando falamos sobre escrita à mão, estamos olhando para uma atividade que estimula áreas cerebrais cruciais da criança”, explica a professora e orientadora pela Association Montessori Internationale Portugal, Lorena Carvalho. Isso porque essa prática “engaja partes do cérebro responsáveis pela linguagem, pela memória e pelo pensamento crítico”.
Um estudo da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, publicado em 2012, confirmou a eficácia da escrita manual na aprendizagem das letras, em comparação a métodos como visualização e digitação, durante a idade pré-escolar.
“Em uma era com tantos vídeos e bombardeamento de informação a cada segundo, manter o foco e a concentração é um desafio”, complementa Carvalho. “A escrita à mão exige um nível de atenção que pode ser extremamente benéfico para as crianças, ajudando-as a desenvolver uma capacidade de foco mais aguçada.”
Já os movimentos delicados ajudam no fortalecimento dos músculos da mão e na melhoria da coordenação mão-olho, essenciais para tarefas como a alfabetização e a fluência na compreensão de um texto. Além disso, a escrita à mão é uma forma de as crianças expressarem a própria identidade, emoções e criatividade, diz a pedagoga. “Isso não apenas enriquece o desenvolvimento emocional, mas também fortalece a autoestima.”
A neurocientista comportamental pela London College (UCL), Bruna Dimantas, afirma que o cérebro opera sob a regra de “use ou perca”. “Em outras palavras, as áreas cerebrais que são regularmente estimuladas e desafiadas tendem a se desenvolver e fortalecer. Enquanto isso, aquelas que são subutilizadas podem não atingir seu potencial pleno.”
Segundo ela, essa dinâmica é particularmente crucial na infância, período no qual ocorre uma notável neuroplasticidade. Isto é, a capacidade do cérebro de formar e reorganizar conexões sinápticas em resposta a experiências e aprendizados. “Significa que as experiências e atividades realizadas nessa fase têm um impacto profundo na formação e no fortalecimento das redes neurais que acompanharão a criança até a vida adulta”, explica a especialista. Nesse sentido, por envolver um conjunto diversificado de habilidades cognitivas e motoras, a escrita manual, ao contrário da digitação, desafia o cérebro em múltiplos aspectos.
“Ao priorizar práticas como a escrita manual, estamos não apenas ensinando uma habilidade fundamental, mas também cultivando um terreno fértil para um desenvolvimento cerebral abrangente e saudável durante essa fase crítica de crescimento e aprendizado”, complementa Dimantas.
Suportes como computadores, smartphones, notebooks e tablets possibilitam novas aprendizagens, mas criaram desafios. A diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade de Minas Gerais (UFMG), Isabel Cristina Alves da Silva Frade, lembra que existe uma complexidade nos meios digitais que afeta a aprendizagem da escrita. “Quando a criança tinha à sua mão um lápis e uma folha, precisava conseguir fazer um gesto de escrever com certo alinhamento, numa certa direção, distribuindo isso entre linhas”, diz. Em contrapartida, no mundo virtual, há que ter noções de busca na internet, regras dos aplicativos como WhatsApp, escolhas a serem feitas em relação à fonte utilizada, entre outras.
Já Dimantas afirma que a digitação é uma atividade mais passiva e menos envolvente para o cérebro do ponto de vista cognitivo, em comparação à escrita. “Pense bem: enquanto o aprendizado básico das posições das teclas e a digitação simples podem ser adquiridos em questão de meses, a escrita cursiva leva anos.”
A escrita à mão, de acordo com a neurocientista, exige que a criança se concentre na forma de cada letra, coordene o movimento da mão com o que vê e lembre-se das regras de ortografia e gramática. Isso estimula o cérebro a manter um nível de atenção sustentada e ativa áreas como processamento visual, memória e controle motor.
Segundo Dimantas, a dependência excessiva da digitação e da interação com dispositivos digitais em idades precoces pode resultar em oportunidades perdidas para o desenvolvimento do foco, atenção e outras habilidades cognitivas durante o período crítico de desenvolvimento cerebral.
Por isso, para as especialistas, o equilíbrio entre a digitação e a escrita à mão é a chave para um desenvolvimento cognitivo e motor saudável nas crianças.
Nem todas as crianças têm a mesma facilidade para exercitar a coordenação motora exigida pela escrita à mão. “Se os pais notarem que a criança tem dificuldade na coordenação motora fina, precisam procurar um pediatra para avaliação e exames neurológicos. “Um fisioterapeuta pode reverter a situação com exercícios apropriados”, explica a professora, redatora e escritora, Luciana de Rocio Mallon.
Mallon conta que ela mesma teve problemas para aprender letra cursiva e sofria bullying por só conseguir fazer garranchos. “Só consegui superar isso com aulas de dança. Por causa de tudo que passei, criei o método chamado ‘Alfabetizando Através da Dança’, no qual a criança pode desenvolver a coordenação motora fina em toda sua plenitude, fazendo movimentos como se estivesse escrevendo letras cursivas com os pés e as mãos, no ritmo da música.”
Frade reitera que a coordenação motora fina é importante, mas que não pode ser condição essencial para alfabetizar alguém. “Forçar uma criança a dominar essa escrita, antes de aprender a ler e escrever, é uma forma de sonegar o seu direito ao aprendizado do jeito que ela dá conta. Muitas pessoas não enxergam, mas podem ler e escrever em Braille. Muitas não têm a mão, mas têm como ditar os escritos.”
Nesse sentido, embora os benefícios sejam inúmeros, o aprendizado da escrita à mão deve ser lúdico, e não apenas mais uma obrigação escolar a cumprir. “A criança quer aprender o que tem sentido para sua vida. Escrever repetidamente uma letra não faz sentido, escrever um bilhete para o amigo, uma lista do mercado, sim.”
“Obrigar ou forçar uma criança a escrever não vai ajudar em nada. Pior, vai criar um trauma ou uma resistência a ponto de não querer mais ou não se achar capaz”, diz Carvalho.
Nesse universo de telas e teclados, é natural que a escrita à mão fique um pouco negligenciada. Mas a escrita manual “representa uma pausa na constante digitalização, promovendo a conexão humana e a introspecção”, avalia a “Professora coruja” Lorena Carvalho.
De acordo com Frade, as pessoas continuam, de algum modo, conectadas com a escrita à mão. “A escrita como sistema está em todos os ambientes. Ela está na tela, na mão que segura o lápis e a folha. E mais do que marca gráfica, autoria e humanização têm a ver com outras questões de identidade, de afirmação pela escrita, tanto na tela, como na mão. Autoria e humanização atravessam a escrita como um todo, de qualquer modo.”
Ter acesso e praticar a escrita manual é uma excelente ferramenta de conexão consigo mesmo, algo que pode ser incentivado desde a primeira infância. “A escrita cursiva ajuda a trabalhar as emoções, pois está ligada ao inconsciente coletivo. Nossos antepassados a usavam para expressar emoções. Então, essa memória afetiva está no nosso inconsciente”, exemplifica Mallon.
“Ao falarmos de identidade e personalidade, existe uma interessante intersecção, à medida que a escrita manual é uma forma de expressão única. Cada criança desenvolve seu próprio estilo de escrita, que pode ajudá-la a conhecer aspectos de sua personalidade”, ressalta Carvalho. “Ao escrever à mão, aprendem não apenas a formar letras e palavras, mas também começam a expressar seu próprio ‘eu’. Esse processo de personalização ajuda na construção da identidade individual.”
Já que ficou provado que escrever à mão é excelente para o desenvolvimento infantil, como é possível estimular esse hábito em casa? Além de ser um exemplo, pois, se a criança observa os adultos escrevendo, é mais provável que ela queira participar também, as especialistas listam algumas ideias que podem ajudar: