Cuidar da infância é o melhor investimento que o país pode fazer

Especialistas afirmam que essa é a melhor janela de oportunidade para pensar o desenvolvimento do país e pode poupar bilhões de dólares em gastos futuros

Camilla Hoshino Publicado em 29.09.2022
A imagem mostra uma menina branca de cabelos claros e olhos escuros. Ela está sentada na carteira da sala de aula, segurando uma caneta.
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Resumo

Entenda por que diminuir as adversidades e aumentar as intervenções positivas na primeira infância podem ser um dos melhores investimentos do Estado para o desenvolvimento do país.

Desde a barriga da mãe aos seis anos de idade, as rápidas interconexões neurais no cérebro dos bebês e das crianças refletem a aquisição de múltiplas habilidades. Por isso, especialistas consideram este período determinante na vida dos seres humanos: ao mesmo tempo que se trata da melhor “janela de oportunidade” para intervenções positivas, as adversidades podem ser particularmente prejudiciais. Por exemplo, a fome ou infecções durante a gestação estão associadas a nascimentos prematuros ou recém-nascidos de baixo peso, podendo ter consequências que persistem na vida adulta.

Um desenvolvimento saudável nessa fase faz com que as crianças alcancem bom desempenho escolar, realização pessoal e melhores oportunidades de emprego no futuro, explica Elisa Altafim, doutora em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Ou seja, o cuidado – ou a falta de cuidado – oferecido à criança em suas relações e ambientes de convivência terão impacto em seu crescimento a curto, médio e longo prazos. 

Mundialmente, estudos em diversas áreas do conhecimento têm buscado analisar como investimentos públicos na primeira infância podem gerar retornos positivos não apenas para o indivíduo e suas famílias, mas também para o Estado em termos econômicos. Uma pesquisa publicada na revista The Lancet, em 2017, estimou que a falha na implementação de programas de visita domiciliar e de pré-escola pode custar aos países até 2,1% e 4,1% de seu PIB total, respectivamente, o dobro daquilo que gastam atualmente em saúde. Isso porque, segundo o estudo, as crianças que estão com o desenvolvimento comprometido por problemas no crescimento devido à pobreza provavelmente perderão cerca de um quarto da  renda média de um adulto por ano.   

“O investimento precoce é a chave para o desenvolvimento do país” – Elisa Altafim

Equação de Heckman

James Heckman, professor da Universidade de Chicago e Prêmio Nobel de Economia, apontou que políticas públicas para a primeira infância reduzem doenças, levam a mais anos de educação, maior taxa de emprego entre adultos e maiores rendimentos parentais, entre outros benefícios, sintetizados na chamada “Equação de Heckman”. 

Utilizando mais de 35 anos de dados do programa Perry Preschool – uma pré-escola pública de meio período, para crianças em situação de risco social, nos Estados Unidos -, Heckman verificou um retorno anual ao país de 7 a 10% sobre o investimento realizado, com base no aumento da escolaridade e do desempenho profissional, além da redução dos custos com reforço escolar, saúde e gastos do sistema de justiça penal. A equipe de sua pesquisa estimou em $48 mil dólares os benefícios por criança para a sociedade. 

Custo-benefício: investir na infância é economia pro futuro

A equação do custo-benefício tem relação com os déficits que a falta de investimento na criança pode causar nos principais domínios cognitivo, afetivo e social. Ao mesmo tempo, se baseia na tese de que ganhos positivos em uma área do desenvolvimento podem levar a benefícios posteriores no mesmo e em outros domínios do sistema da criança, o que cientistas chamam de estrutura do “desenvolvimento em cascata”. 

A pesquisadora em desenvolvimento na primeira infância e professora da Escola de Educação de Harvard, Dana McCoy, explica que negligências e violências vividas nessa fase impactam diretamente áreas do cérebro das crianças relacionadas à cognição e às emoções. Segundo ela, o efeito desses problemas no crescimento será maior ou menor de acordo com a gravidade e a persistência da situação, com o período em que ocorrem (quanto mais cedo, pior) e com a proteção ou resposta oferecida pelos cuidadores. 

Ainda em termos econômicos, não lidar com questões de desenvolvimento infantil de todas as crianças nascidas em determinado ano em um país de baixo e médio desenvolvimento custa a elas uma perda de 176,8 bilhões de dólares ao longo da vida. Esse é um dos cálculos realizados por um estudo publicado em 2016 no The American Journal of Clinical Nutrition, uma das principais referências acadêmicas da área, com a participação de Dana McCoy.

Apesar das previsões, ainda existe uma dificuldade do gestor público em perceber e valorizar essa ideia na prática. “O investimento na primeira infância traz retornos de longo prazo e, muitas vezes, gestores querem resultados imediatos”, afirma o ex-secretário executivo para a primeira infância do Recife e atual diretor do PIPA – Primeira Infância, Plantar Amor, Rogério Morais. Ele percebe que, de um lado, há pressões políticas para que as ações sejam realizadas durante um determinado mandato e, de outro, as pressões sociais por um serviço público, o que, muitas vezes, resulta em ampliação de acesso, mas sem qualidade. 

Esse é o caso do gargalo atual em relação às creches no país, que chega a apenas 37% das famílias, segundo dados do Censo de 2019. Muitas vezes, essa expansão acontece sem planejamento e o resultado são terrenos inadequados, “puxadinhos” em unidades já existentes e até salas de aula adaptadas em depósitos. “Esses espaços deixam de ser uma unidade educacional, com qualidade do ponto de vista pedagógico, e podem ter efeito contrário, comprometendo o desenvolvimento infantil”, alerta. 

“O impacto de uma creche ruim na vida de uma criança pode ser pior do que não ter acesso”

Boas práticas de intervenção

Para ajudar a aprofundar o olhar sobre as intervenções positivas na primeira infância, a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Banco Mundial apresentaram, em maio de 2018, uma espécie de “roteiro de cuidado” para essa fase, conhecido como Nurturing Care Framework. Esse quadro enfatiza cinco componentes essenciais que ajudam a atender aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: boa saúde, alimentação adequada, oportunidades de aprendizagem precoce, segurança e proteção, e cuidado responsivo.   

De acordo com esse roteiro, enquanto nutrição, construção de vínculos afetivos, brincadeiras e estímulos adequados ajudam o cérebro a desenvolver seu potencial máximo, fatores de risco, como negligência, violência e falta de acesso à educação têm efeito inverso. Por isso, o Estado precisa investir no equilíbrio da balança entre os efeitos negativos e positivos sobre a primeira infância, reduzindo adversidades (minimizando impactos negativos) e promovendo suporte (aumentando resultados positivos). 

Situação do cuidado no mundo

Uma pesquisa publicada no The Lancet em 2022 apontou que a maioria das crianças em países de baixa e média renda não está recebendo cuidados de criação minimamente adequados nos primeiros mil dias de vida. O acesso é maior para nutrição (86,2% com peso saudável) e menor para aprendizagem precoce (29%, em cuidados e educação na primeira infância), cuidados responsivos (29,7%, experimentando vínculos adequados com cuidadores não maternos) e segurança e proteção (32,3% vivendo sem castigo físico), evidenciando a necessidade de mais investimentos e recursos para crianças em idade pré-escolar nesses eixos.  

Dentro dessas práticas, é importante privilegiar a escola como um espaço de atuação intersetorial na primeira infância, fazendo conexões com serviços de assistência social e saúde, já que é ali que muitas vezes são identificadas as  principais necessidades de cada um”, defende Elisa Altafim. Ela reforça que a escola é um ambiente que pode estimular outras interações sociais positivas, como contato com a diversidade e oportunidades de brincar.  

Também é essencial que pais, mães, avós e todos os cuidadores mais próximos da criança nessa faixa etária estejam preparados para lidar com comportamentos e oferecer ambientes adequados a ela. “Os programas de parentalidade podem fortalecer esses cuidadores com informações, novas estratégias e habilidades positivas, ampliando assim a rede de proteção da criança”, afirma a psicóloga.  

“É importante olhar para quem cuida”

Melhores práticas para cuidar das crianças

  • Envolver os adultos, de preferência com capacitação e suporte do que somente com leis de punição; 
  • Atuar em múltiplos contextos de convivência da criança;
  • Promover ações intersetoriais: saúde, educação, assistência social, orçamento;
  • Garantir a demanda das famílias com habilidades e abordagens relevantes para seu contexto social;
  • Priorizar escalabilidade, atuando nos pontos mais críticos; 
  • Garantir fluxos de financiamento de longo prazo; 
  • Garantir acesso, mas sobretudo melhorar qualidade e fornecer suporte a longo prazo.

Fonte: Dana McCoy

“As áreas de atuação, como saúde e educação, assim como o próprio orçamento, ainda estão divididos em ‘caixinhas’, com seus próprios desafios do dia a dia”, atenta Rogério Morais. Portanto, o primeiro passo para alinhar políticas públicas é que prefeitos, governadores e seus secretários valorizem a intersetorialidade. A etapa seguinte é criar estruturas organizacionais para essa execução. Um exemplo positivo, segundo ele, é a criação de uma secretaria executiva exclusiva para tratar de assuntos da primeira infância, com produção de informação e suporte para que ações conjuntas aconteçam, e não apenas comitês, que costumam ter força política limitada. 

Brasil do futuro até quando? Desafios atuais

Não é à toa que o artigo 227 da Constituição Federal incentiva que tomadas de decisão e planejamentos coloquem as crianças sempre em primeiro lugar. A covid-19 deixou evidente que a falha de atuação sobre esse público pode trazer consequências sociais incalculáveis. O relatório “Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância”, lançado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, revela que mais de um terço das crianças brasileiras terão seu desenvolvimento impactado direta ou indiretamente. Para se ter uma ideia, nos últimos dois anos, houve um aumento de quase 90% da mortalidade materna no Brasil: a covid-19 foi responsável por mais de 53% das mortes de grávidas e mães de recém-nascidos.Além disso, a cobertura de dez vacinas para crianças de até 12 meses despencou 26%.

Embora as consequências econômicas ainda sejam imprecisas, um estudo de Dana McCoy publicado no ano passado na The Lancet estima que o fechamento de pré-escolas durante a pandemia pode levar aproximadamente 10 milhões de crianças a ficarem “fora do caminho” de desenvolvimento saudável na primeira infância, o que pode significar 308 bilhões de dólares em perdas de aprendizado ao longo da vida. 

A pergunta é: como o Brasil vai escolher enfrentar esses desafios centrais para o desenvolvimento das crianças e do país? Para que as crianças deixem de ser promessa de futuro e passem a ser valorizadas como sujeitos de direito com absoluta prioridade agora, a escolha começa no voto, elegendo lideranças políticas que coloquem a infância em pauta, afinal: 

“Se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda” – Raffi Cavoukian, fundador do Centre for Child Honouring

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