Especialistas sugerem vivenciar mudanças de série, de cidade, escola ou etapa do desenvolvimento como continuidade do processo educacional, e não ruptura
Todo início de ano letivo carrega transformações. Às vezes, elas coincidem com desafios de mudanças do próprio desenvolvimento ou da trajetória pessoal. Famílias contam suas experiências e especialistas dão dicas de como oferecer mais apoio à criança nessa fase.
O início do ano letivo costuma trazer mudanças para crianças e adolescentes em todas as séries e ciclos de aprendizagem. Tom Fernandes, 11, está se preparando para viver duas delas de uma só vez. Isso porque ele vai iniciar o ensino fundamental 2 e sair de uma escola particular para ingressar em uma pública, referência em educação inclusiva, em Salvador, Bahia.
“Vou mudar de escola, porque eu cresci, mas sinto saudade dos colegas”, diz o menino. A mudança foi planejada pela mãe de Tom, a jornalista Andréa Fernandes, ativista pelo direito de pessoas com deficiência. Tom tem síndrome de Down e, pela primeira vez, vai estudar em uma escola com sala de recursos multifuncionais (isto é: equipamentos, acessibilidade e materiais pedagógicos para apoiar o processo educativo).
Acima de tudo, mãe e filho estão entusiasmados em frequentar uma escola fundada por famílias atípicas. Durante a visita que ambos fizeram ao local, algumas alunas disseram: “A gente adora pessoas assim que nem ele.” Acostumada a brigar pela educação que acredita, a expectativa de Fernandes é vivenciar um projeto pedagógico mais alinhado à Política Nacional de Educação Inclusiva.
Para Tom, as mudanças do ano letivo, escola e fase coincidem com os desafios da adolescência, que costuma trazer emoções mais intensas e humores cheios de altos e baixos. “Já vi ele estar cansado e chegar em casa chorando. Ou então sair da escola sorrindo e, no meio do caminho, começar a chorar e não querer sair do carro”, relata a mãe. “A gente conversa muito, eu abraço. Tem que ter carinho e paciência, que eu às vezes perco. Mas peço desculpas e tento fazer com que ele se expresse ao máximo suas emoções.”
“As viradas de chave precisam ser vistas e experienciadas como continuidade, e não como ruptura.”
A afirmação é da pedagoga e consultora associada da Avante – Educação e Mobilização Social, Fabíola Barros. Por isso, a ideia de integração entre educação infantil, ensino fundamental e ensino médio está garantida nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Esse fluxo permite, então, que as mudanças de ano letivo não sejam marcadas pela quantidade de conteúdos ou pelos famosos imperativos “acabou a brincadeira” e “agora a coisa ficou séria”.
Conforme reforça, os objetivos da formação das crianças para a educação infantil devem prolongar-se durante os anos iniciais do fundamental. Nessa fase, o processo de intensificação gradativa do acesso à leitura e à escrita, muitas vezes, é marcado pelo controle do corpo. “As crianças precisam estar mais sentadas, engessadas, em cadeiras enfileiradas… Elas têm um tempo muito limitado para brincar”, observa Barros.
“Quando a gente pensa na criança como sujeito de direitos, que constrói a sua identidade e que tem o direito de brincar coletivamente, de imaginar, de narrar, de questionar, de construir sentido sobre a natureza e a sociedade, não podemos tratar essas etapas com cortes, cisões e dicotomias. Ou seja, não devemos separar o conhecimento do afeto, os saberes dos valores, o cuidado da atenção, a seriedade do riso”, complementa.
Ela sugere que escolas e famílias trabalhem juntas para pensar o sujeito de forma integral, percebendo a singularidade das infâncias e de cada fase do desenvolvimento. Sobretudo, para que percebam que as transições escolares não podem cessar o direito de brincar.
Em 2024, Mel, 17, terá chegado ao 3º ano do ensino médio, depois de passar por nove escolas, em três cidades. As mudanças começaram aos três anos de idade, por causa de um problema de saúde. O médico sugeriu que a família se mudasse para perto do mar, onde a menina respiraria melhor. O pai, o biólogo Fábio Lima, e a mãe, a pedagoga Erica Deiró, não pensaram duas vezes. Então, deixaram Salvador para viver em Praia do Forte, a 80 quilômetros da capital baiana.
Lá, a primeira surpresa: escola tradicional, com livros didáticos, carteiras enfileiradas e tarefa de casa na primeira infância. “Um episódio marcante foi quando ensinaram a ela que tinha que escrever com a mão direita, mesmo sendo canhota, porque aquela é que era a mão certa”, lembra Deiró. A mãe garantiu que o que precisava ser ajustado era a carteira, e não a escrita.
Na época, ela engravidou de Nina, hoje com 12 anos. Como era uma gravidez de risco, a família precisou voltar a Salvador por alguns meses. Mais tarde, as mudanças no trabalho da mãe fizeram as meninas passarem de escolas particulares para a rede pública, já em Praia do Forte. Apesar do desafio de serem as filhas da professora ou da coordenadora, lá também foi onde “aprenderam que a educação está diretamente ligada à questão social, convivendo com crianças de realidades diversas e frequentando da casa da baiana de acarajé à casa do prefeito”, orgulha-se a mãe educadora. Enquanto ela ensinou às filhas que “é o estudo que possibilita a escolha”, o pai costuma dizer: “Não se acomodem. Existe um mundo lá fora.”
Após 14 anos em Praia do Forte, um novo trabalho do pai levou os quatro para Ibicoara, na Chapada Diamantina, onde vivem há dois anos. Dessa vez, Nina sentiu mais a mudança: “No começo, foi difícil fazer amizade. Aqui, meninas e meninos não convivem muito, por causa da igreja. Hoje está tudo bem, tenho amigas com quem eu brinco e brigo, e que fiz também nas aulas de circo e jiu-jítsu”, conta sorrindo. Já Mel acredita que a parte mais desafiadora de tantas mudanças é aprender a lidar com os diferentes costumes das pessoas. “Por outro lado, [a mudança] traz pessoas novas para a sua vida, vivências que podem mudar a sua forma de enxergar o mundo”, pondera.
As duas irmãs estão animadas com o início do ano letivo. Nina quer ficar mais tranquila com as amigas e Mel, chegar à formatura. É da mais velha a reflexão: “Isso é o que está me deixando mais animada. Com todas essas mudanças, cada escola me ensinou um pouco. Pretendo fazer faculdade de Letras, me formar e trabalhar com a escrita, que é o que gosto de fazer.”
Aos três anos, Davi está pronto para uma grande transição de sua vida social: em fevereiro, vai à escola pela primeira vez. Nascido no início da pandemia, o menino viveu o isolamento e, até um ano de idade, só saia de casa para ir à pediatra. Ou seja, não conhecia outras pessoas, além da mãe, a designer de interiores Larissa Borges, e do pai, o contador Tarcísio Nascimento.
A decisão de não matricular o filho na escola aos dois anos aconteceu naturalmente. “A gente demorou muito para relaxar, porque as crianças ainda não estavam sendo vacinadas e entrar na escola é sinônimo de ficar doente, por isso evitamos”, explica Borges, que conseguiu reajustar a rotina para trabalhar remotamente.
Aos poucos, Davi passou a descer para brincar no parquinho do prédio, ter aulas de natação e interações de psicomotricidade em um grupo com outras crianças. Para ajudar, o casal contratou Laiane Lopes, babá com experiência profissional em creche. Além de inventar muitas brincadeiras com Davi, ela evita celular e televisão em casa. “A gente nunca se preocupou com conteúdo, mas com a interação, com a comunicação, já que Davi nasceu e viveu sem contato com outras pessoas nesse contexto tão desafiador”, diz Nascimento.
Borges não esconde a alegria do momento que, para o casal, está chegando no tempo certo. A expectativa da família para o ano letivo é que Davi tenha uma adaptação tranquila. Isso porque ele está sendo motivado à ideia de uma nova rotina, com novos amigos e novas experiências. Enquanto isso, o menino surpreende a todos ao demonstrar iniciativa e autonomia. “Ele está participando de todo o processo, visita as escolas com a gente, conversamos bastante. Outro dia, todo animado, contou para a avó que comprou um tênis para ir à escola”, diz a mãe.
Para o psicólogo e terapeuta familiar Alexandre Coimbra Amaral, o principal conselho para famílias, crianças e escolas é compreender que as transições ao longo da vida são inevitáveis. Quando ocorrem, ele sugere escutar as crianças e os adolescentes, fortalecendo seu protagonismo. Além disso, criar conexões e diálogos com a escola a cada ano letivo para oferecer suporte emocional.
“Às vezes, a criança desloca a emoção para outro conteúdo mais fácil de expressar. Então, se está brigando mais com o irmão ou está mais triste quando assiste um filme, pode ser indicativo de que precisa falar não sobre o que está acontecendo naquele momento, mas sobre a dor de estar transicionando”, alerta.
Veja o que sugere o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral:
A sala de recursos multifuncionais foi implantada pelo Ministério da Educação em 2007 por meio do decreto n° 6.094. A proposta é atender as necessidades de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação matriculados nas classes comuns do ensino regular.