‘Eu errei’: Por que e como pedir desculpas para as crianças?

Segundo especialistas, crianças que ouvem pedidos de desculpa dos pais tendem a reconhecer melhor os próprios erros

Cintia Ferreira Publicado em 04.01.2022
Uma mulher e uma criança se abraçam. Ambas são negras. Elas estão na sala de uma casa bem iluminada. A matéria é sobre pedir desculpas.
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Resumo

Todo mundo erra, mas nem sempre pedir desculpas é uma tarefa fácil. Segundo especialistas, crianças que ouvem isso dos pais tendem a reconhecer melhor os próprios erros. Saiba por que é tão importante pedir desculpas às crianças e como fazer isso.

Certa vez, Tatiana Pinheiro viu um vídeo que a deixou muito triste: nele, uma mãe gritava com os filhos, sem perceber que uma das meninas tremia quando ela falava. Esse vídeo foi gravado pelo marido da Tatiana, e a mãe que aparecia nas imagens era ela mesma. “Nessa época, eu estava trabalhando o dobro para segurar as contas e o sustento da minha família, chegava em casa exausta e as crianças queriam atenção, mas o barulho delas e a agitação me deixavam irritada. Foi quando comecei a gritar demais”, conta. Nesse dia, Tatiana se valeu do recurso de pedir desculpas. “Me sentei com cada um deles e perguntei como estavam se sentindo em relação a mim, exatamente como meu pai fazia, e que marcou minha infância. Pedi desculpas e prometi melhorar, e assim tenho feito desde então”, detalha. 

Os filhos de Tatiana, Kaique, 17, Kiara, 5, e Kelvin, 3, certamente vivenciaram um fato que não era tão comum há algumas décadas: pais pedindo desculpas aos filhos. Mas por que é tão difícil para os adultos fazerem isso?

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Arquivo pessoal

Kelvin, Kaique e Kiara, filhos de Tatiana, já se acostumaram a pedir desculpas. Para a mãe, essa é uma ótima forma de mostrar respeito, além de ajudar na formação de caráter

Quebra da autoridade “perfeita”

“Um dos grandes desafios em pedir desculpas encontra-se nas concepções que alguns pais têm sobre o papel que devem assumir na relação com os filhos. Para algumas famílias, os filhos devem obediência incondicional e irrefletida aos pais, pois estes supostamente detêm maior conhecimento e maturidade sobre a vida. Logo, não há espaço para admitir erros, pois isso implicaria na quebra da autoridade perfeita”, explica a psicóloga Izabella Melo. “Tal expectativa de autoridade também pesa sobre os pais, ao esperarem de si uma performance humanamente impossível de ser praticada: a de uma parentalidade sem erros”, diz.

A dinâmica familiar também impacta nessa hora. Em algumas, o pedido de desculpas pode ser normalizado; em outras, a dificuldade de reconhecer as próprias falhas pode ser um grande desafio. Ainda que as relações humanas sejam fluidas e uma mesma família possa passar por diversas categorias, a depender da fase de vida de cada um, estudos em terapia familiar mostram que é possível destacar três tipos de fronteiras: as rígidas, permeáveis e difusas. 

Nas famílias com fronteiras rígidas, há dificuldade nas trocas e a fluidez para que se exerçam papéis de modo espontâneo fica prejudicada. Famílias com fronteiras difusas não permitem aos seus membros um processo saudável de individualização. O ideal são as fronteiras permeáveis, nas quais os membros sabem que podem explorar o mundo, mas têm uma base segura de retorno. “A depender dessas fronteiras, diferentes tipos de comunicação são encorajados ou vistos como seguros”, explica Izabella. Segundo ela, famílias com fronteiras difusas, enfrentam dificuldades de os filhos reconhecerem aos pais que são diferentes, que cometem erros. Já naquelas com fronteiras permeáveis, há um encorajamento maior para a honestidade.

No estudo “Pedir desculpas: categorias e efeitos em três tipos de relacionamento interpessoal”, da Universidade de Brasília (UnB), Izabella demonstrou que é mais comum que as pessoas deem desculpas que tenham justificativas externas. Porém as mais bem aceitas e vistas como mais verdadeiras são aquelas nas quais a pessoa se responsabiliza pelo ocorrido. O tipo de relacionamento influencia também e quando esse pedido é feito pelos pais o ganho é imenso. 

Pais que falham e falam sobre isso

“Pedir desculpas, espontaneamente, pressupõe o reconhecimento do erro e o compromisso de fazer diferente. Isso retira dos pais a expectativa de serem perfeitos e proporciona, no ambiente de relações familiares, espaço para a responsabilização sobre os próprios atos”, esclarece Izabella. Os filhos, quando veem que seus cuidadores podem falhar, mas se comprometendo a fazer o melhor que podem, entendem que também podem errar e comunicar isso aos pais. Essa dinâmica pode favorecer uma comunicação mais aberta e honesta lá na frente, quando os filhos crescerem. 

Admitir uma falha pode ser um bom exercício de empatia também. O reconhecimento de um erro envolve uma análise das consequências da ação e identificação dos malefícios que essa ação causou em outras pessoas. Para isso, é preciso que o indivíduo seja capaz de se colocar no lugar do outro e analisar a situação a partir da sua perspectiva. “Essa reflexão precisa ser estimulada na criança para que ela aprenda a usar esse recurso quando estiver em uma situação de injustiça, seja quando ela comete um erro ou quando alguém erra com ela”, avalia a professora doutora Eloá Losano de Abreu, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba, autora do artigo “O pensamento moral do perdão em crianças”

Segundo ela, o ato de desculpar-se é essencial para que o autoperdão aconteça e para que o ofensor busque o perdão da vítima. “Quando a criança aprende a reconhecer seus erros, isso será importante para que ela busque restaurar a relação que foi prejudicada e pode conscientizá-la para que não erre novamente”, complementa. 

Como as crianças perdoam

Na pesquisa realizada por Eloá, um dilema moral foi apresentado a 20 crianças de 6 a 8 anos, para conhecer suas percepções sobre o perdão. “Conforme os resultados apontaram, as crianças apresentam uma concepção bem ‘concreta’ sobre o perdão, trazendo elementos comportamentais e práticos, como voltar a brincar, dar algo em troca, um abraço”, explica a autora. Segundo ela, pesquisas têm reforçado que as crianças necessitam de demonstrações práticas de arrependimento e reconciliação para entenderem o perdão. “Elas aprendem que sempre que fazem algo errado, devem pedir desculpas, mas não costumam analisar situações em que elas perdoam, em que tenham sido as vítimas da ofensa”, explica Eloá. 

Receber um pedido de desculpas pode mostrar que há modos mais harmoniosos e menos punitivos de resolver conflitos. “A maneira como os pais e cuidadores lidam com os conflitos e situações de injustiça terá relação com a forma como a criança fará isso”, detalha a professora.

Nada de desculpas “automáticas”

Quando se trata de reconhecer que errou, quanto mais espontâneo for o pedido, melhor. Muitos pais acabam utilizando o recurso de pedir que os filhos se desculpem, sem dar a eles tempo de fazer isso por conta própria. “É muito comum que as crianças acabem pedindo desculpas quase que instantaneamente, apenas para evitar uma punição, e não necessariamente porque compreenderam que cometeram uma falha e precisam repará-la. O processo de reflexão sobre a ofensa é mais efetivo para evitar reincidências do que a emissão de um pedido ‘automático’”, emenda Eloá. 

Izabella lembra que obrigar a criança a desculpar-se guarda semelhanças com uma agressão: sob justificativa de uma suposta educação, há uma imposição de apenas uma visão sobre o contexto (a do adulto) e elas aprendem unicamente a não se comportarem de forma indesejada na frente do adulto que as repreendeu. “As desculpas devem fazer sentido para as crianças, de modo que elas desenvolvam suas próprias formas de compreender a situação e escolherem como se comportar”, detalha.

Tem jeito certo de pedir desculpas?

Reconhecer os próprios erros ajuda – e muito – no fortalecimento do vínculo, mas não é nada fácil. Qual a melhor forma de fazer isso? “O pedido de desculpas ideal parte da reflexão sobre nossos atos, sobre os impactos nas pessoas ao redor, sobre como os sentimentos delas são afetados. Essa reflexão passa, inclusive, sobre as expectativas para a estruturação do vínculo. É a partir desse processo reflexivo que podemos nos desculpar, buscando ser honestos e empáticos com nosso interlocutor. Não há uma receita única, as famílias precisam refletir e definir os contornos do que consideram aceitável ou não”, explica Izabella. 

“Em termos de socialização de pais, cuidadores e educadores, é importante que existam estratégias e programas educativos sobre perdão e resolução de conflitos que os ajudem a entender como e quando estimular esses comportamentos com seus filhos ou alunos”, complementa Eloá.

Para Luana Brustelo, mãe de Alice, 7, e Léo, de 4 meses, pedir desculpas é algo natural. “Como posso querer que meus filhos se desculpem quando erram se eu não dou o exemplo? Eles precisam entender que se desculpar com alguém não os diminui, mas sim os engrandece. Reconhecer erros só torna as pessoas ainda melhores. Sempre que percebo que errei com minha filha, não penso duas vezes em me desculpar. Eu quero que ela saiba e sinta que é respeitada, que os sentimentos dela importam. Uma educação respeitosa e acolhedora é no que acredito como mãe”, afirma.

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Arquivo pessoal

Luana, com os filhos, Alice e Léo, e o marido Flávio. Seguindo o lema: só ama quem é amado, Luana busca ensinar pelo exemplo sobre a importância de reconhecer os erros

Na casa de Tatiana também é assim. “Acho fundamental reconhecer quando eu erro e pedir desculpas aos meus filhos. Tanto para a formação de caráter deles, como forma de expressar meu amor e respeito. Errar é normal e, muitas vezes, não conseguimos evitar. Por causa dessa forma que os trato, quando eles fazem algo que fico desapontada ou nervosa, eles sabem que estão errados e prontamente pedem desculpas”, diz. 

Erros como parte do ciclo de vida

Reconhecer que errou é uma das principais estratégias para que a criança compreenda suas responsabilidades e impactos no mundo, segundo Izabella. “É possível que a criança criada a partir dessas premissas consiga calibrar melhor as expectativas que desenvolve sobre si, seus pares e demais pessoas que conviver ao longo da vida, compreendendo que os erros dos outros não precisam significar rompimento de vínculos ou a desvalorização dela, mas partes comuns do ciclo de vida da criança e de quem a cerca”, afirma a psicóloga.

Luana ressalta que quer muito que seus filhos lembrem que ela nunca teve medo de mostrar as próprias fragilidades para que, no futuro, possam replicar isso com a família deles. “É complicado pensar em um mundo melhor para viver sem criar crianças que se tornarão adultos que tenham amor, respeito e empatia em seus corações. O que observo disso são sementes que já estão dando frutos. Minha filha não tem vergonha de expor os sentimentos dela. E isso faz tudo valer a pena. Aqui nosso lema é: só ama quem foi amado”, conta. Já que, inevitavelmente, todo mundo erra, o reconhecimento das próprias falhas – e os pedidos de desculpas – podem ser um enorme ganho afetivo para as crianças. 

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