Sobra água e falta saneamento: a infância na periferia da Amazônia 

Na região do pior saneamento do país, a saúde física e cognitiva das crianças é comprometida. Especialistas alertam para a mudança na atividade cerebral

Célia Fernanda Lima Publicado em 04.10.2023
Um menino e uma menina caminham por uma ponte de medeira em cima de um igarapé. Ao fundo, a mãe deles carrega outra criança no colo.
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Resumo

Na região amazônica, a maioria dos lares não possui saneamento e água tratada. Conheça histórias de famílias que vivem, ao mesmo tempo, perto e longe da água, e entenda como essa privação pode afetar o desenvolvimento das crianças na primeira infância.

Grávida de nove meses, Adrievelyn Palheta se equilibra sobre pontes de madeira para sair de casa, no bairro do Tapanã, periferia de Belém (PA). Na barriga, Aurora acompanha a voz e os passos da mãe, que se desloca entre as casas suspensas sobre o igarapé Mata-Fome.

Desde a metade da gestação, quando todos os órgãos, em especial o cérebro, estão crescendo intensamente, os bebês podem sentir alguns estímulos do mundo exterior. “Nessa fase, se a mãe está estressada, o aumento das taxas de cortisol pode afetar o desenvolvimento cerebral do feto”, explica o médico psiquiatra da infância e adolescência Miguel Boarati.

Aurora vai nascer em uma das cidades com o pior saneamento do país, segundo estudo do Instituto Trata Brasil. Na região amazônica, outros seis municípios compõem a lista dos dez piores serviços. Quatro deles são do Pará: Belém, Ananindeua, Santarém e Marabá. Na capital do estado, cercada por rios e igarapés, um a cada quatro habitantes não tem água tratada.

Além disso, toda vez que os rios sobem com as chuvas, algumas áreas alagam. É o caso das ruas de pontes e palafitas da comunidade Bairro da Fé, onde mora Adrievelyn. “Andar aqui é ruim. Mas, quando está cheio, é pior. Não tem como sair, só se tiver muita necessidade. Eu já perdi consulta e até caí algumas vezes. Queria que a rua fosse mais limpa e segura para a Aurora brincar.”

A poucos passos da mesma travessia, a dona de casa Camila Galdino dá banho no filho caçula, Gael, 2, com a água reservada um dia antes porque, pela manhã, as torneiras estão secas. “Só tem água de noite. Por isso tem que ficar enchendo os baldes. As crianças tomam banho desse jeito”, conta a mãe.

Segundo o Observatório do Marco Legal da Primeira Infância, 42% das crianças de zero a cinco anos não têm saneamento em suas casas. Apesar da cobertura total desse serviço estar na lista dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas até 2030, o desafio é grande: são 100 milhões de pessoas sem coleta de esgoto, de acordo com o Trata Brasil.

Uma primeira infância afetada por não ter água limpa

Na frente da casa de Gael, os irmãos Ágata, 7, e Kauã, 3, veem a água suja e o plástico acumulado debaixo da ponte onde deságua o Mata-Fome. O odor dos dias abafados afastava o que deveria ser o cheiro das árvores e da terra úmida.

O sistema de água tratada do Tapanã, ou a falta dele, compromete a saúde dos três. “Eles já tiveram diarreia alguma vezes e bicho de pé. Essa daqui [Ágata] teve muita coceira. Por isso tive que levar no posto para passar remédio”, conta a mãe.

No posto de saúde do bairro, uma das diretoras revelou que é comum crianças pequenas com os mesmos sintomas: vômitos, diarreia e coceira. Além disso, é recorrente exames que confirmam verminoses e anemia.

“As condições inadequadas a que estão sujeitos os moradores dessas áreas afetam o estado nutricional e o peso das crianças“, afirma Vilma Hutim, pediatra neonatologista e presidente da Sociedade Paraense de Pediatria.

Para ela, o saneamento é “a base para a saúde global da criança em formação”. Os efeitos dessa privação podem ser graves e duradouros. “Se a criança tem anemia ou parasitose não tratada, pode ter implicações no desenvolvimento neurológico, cognitivo, físico e até social”. Além disso, Hutim defende que o saneamento adequado é também uma questão de saúde preventiva contra doenças evitáveis, como diarreia, dengue e leptospirose.

A diarreia é a segunda maior causa de mortes no mundo em crianças na primeira infância, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). A doença é fatal para 1,5 milhão de crianças a cada ano. Cerca de 88% dessas mortes ocorre por causa da má qualidade da água e saneamento ou falta de higiene. A OMS indica que a intervenção mais eficaz para a redução desses casos é lavar as mãos com água tratada e sabão.

Nesse sentido, o contexto ambiental é determinante para o crescimento saudável da criança, sobretudo durante a primeira infância, que é o período mais sensível para o desenvolvimento, ressalta Boarati. “O que não for conquistado nessa fase, por situações ambientais desfavoráveis, como a exposição à violência, fome e doenças infecciosas, não será obtido futuramente”. Segundo ele, os impactos da falta de saneamento ao cérebro de crianças pequenas podem ser permanentes “por ser um órgão muito sensível a situações adversas”, diz. “O prejuízo irá variar de indivíduo para indivíduo, mas, certamente ocorrerão danos. A plasticidade e a capacidade de regeneração vão diminuindo na vida adulta.”

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Bruno Carachesti

Embora a cidade tenha rios e igarapés, a falta de saneamento marca a rotina das crianças que vivem na periferia de Belém (PA). Mãe de três, Camila Galdino, precisa estocar baldes de água, já que as torneiras amanhecem vazias.

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Atualmente, 42% das crianças na primeira infância no país estão sem saneamento em suas casas. O Marco Legal do Saneamento quer atingir 99% de acesso à água potável até 2033.

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Grávida de nove meses, Adrievelyn Palheta já teve que faltar às consultas de pré-natal porque a chuva alaga as pontes.

Falta de saneamento pode afetar o cérebro das crianças

“Os primeiros anos são como construir a estrutura de uma casa.” A fala é do neurocientista e professor de pediatria da Universidade de Harvard, Charles Nelson, no documentário “O início da vida” (2016).

Em entrevista ao Lunetas, o professor enfatiza que não há conclusões sobre quais implicações as crianças que crescem em lugares sem algum recurso específico, como a água tratada, apresentará no futuro. Mesmo assim, não se descarta a possibilidade de uma “transmissão intergeracional”.

“Uma pessoa que sofreu na infância por causa de saneamento deficiente ou pobreza, provavelmente, dará à luz uma criança com a saúde comprometida, devido à experiência de vida inicial da mãe.”

Para a ciência, os primeiros mil dias de vida da criança são fundamentais. Nesse período, as células do cérebro fazem até mil novas conexões por segundo, o que favorece a aprendizagem. Porém, estar em um ambiente precário pode afetar a evolução cerebral.

No início dos anos 2000, Nelson conduziu uma pesquisa revolucionária com crianças órfãs da Romênia. O estudo observou que o estresse constante pela falta de estímulo e afeto nos abrigos pesquisados mudava o desenho do cérebro e diminuía as conexões dos neurônios das crianças. Isso afetava principalmente a área que processa a linguagem. Com os resultados, o governo romeno precisou mudar as leis para garantir melhores condições às crianças abrigadas.

Há alguns anos, ele também conduz um estudo inédito sobre o impacto de adversidades, como a má nutrição e o saneamento precário, no cérebro de mais de 130 crianças que vivem em Bangladesh. Exames de imagem buscaram identificar qual fator externo dessas adversidades induz mais variações no desenvolvimento do cérebro, “não necessariamente a poluição ou o saneamento em si”, conta.

Alguns resultados sugerem que as doenças inflamatórias, causadas por vírus, bactérias e parasitas no intestino, têm maior impacto na atividade cerebral. “Em Bangladesh, a falta de saneamento causa doenças crônicas nas crianças, como diarreia e inflamações, o que tem um efeito deletério no desenvolvimento do cérebro.”

No caso de crianças que vivem na Amazônia brasileira, embora não haja estudos a longo prazo, as condições contraditórias de viver perto da água doce e longe da água tratada compromete a qualidade de vida e até o desenvolvimento educacional. Isso porque, nas áreas sem saneamento, basta chover para as escolas fecharem as portas.

Privações impactam o desenvolvimento educacional

Matriculada no primeiro ano do ensino fundamental, Ágata é a única entre os irmãos que frequenta a escola. Contudo, o processo de aprender a ler e escrever atrasa quando a sala de aula está alagada. “Se chover, não tem escola”, conta a mãe.

Do outro lado do bairro, na comunidade Parque União, as vizinhas Tayane e Trayce, ambas com 9 anos, também perdem aula toda a vez que deságua o toró – como o belenense nomeia uma forte chuva. “O colégio fica cheio, não tem aula e não dá para atravessar as pontes. A gente quer uma ponte de concreto, mas nunca fizeram”, relata Tatiane Freitas, mãe de Tayane. A dona de casa percebe que, além de sofrer quando não tem aula, a menina sente falta da convivência com os colegas.

Já a casa onde Trayce vive com a avó, Nazaré Portilho, precisou ser suspensa várias vezes porque a água da chuva invade os cômodos. “Minha neta é muito inteligente e estudiosa. Mas precisa faltar aula por causa das enchentes. São anos de promessas para arrumar o canal. Às vezes me pergunto ‘por que somos desprezados?’”
Quem não tem acesso a serviços básicos como saneamento pode ter um atraso de até cinco anos na frequência das aulas. As principais causas são as faltas por doenças transmitidas pela água, como mostrou o IBGE de 2019. Além disso, em 2018, a nota média no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) variou 70 pontos entre os estudantes que tinham banheiros em casa e os que não tinham.

A estrutura das escolas também conta. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), metade das 181 mil instituições da educação básica não tem rede de esgoto. Água encanada só em 26% delas e 16% não dispõe de banheiros.

As aulas de Tayane e Trayce geralmente são canceladas por causa dos alagamentos. “Já ficamos sem fazer prova. Quando chove, a água da goteira cai na minha mesa e eu não falo mais nada”, lembra Trayce.

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Apesar de ter a varanda suspensa, Nazaré Portilho precisa se equilibrar com a neta, Trayce (9), para não se molharem durante os alagamentos.

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Trayce (9) dribla as valas para chegar à escola. Mas com as chuvas, as aulas são canceladas por causa dos alagamentos.

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“Além de sofrer porque não tem aula, ela não tem a convivência com os colegas”, conta Tatiane Freitas, mãe de Tayane (9).

Amazônia: tanta água sem gente e tanta gente sem água

Há décadas, o poder público local planeja soluções para os alagamentos e a poluição da água do igarapé Mata-Fome. Enquanto nada sai do papel, as comunidades ocuparam lugares geograficamente críticos em relação à subida da maré.

“O Mata-Fome deságua na baía do Guajará, uma das principais de Belém. Grande parte dessas baías tem terras e planícies de inundação. Quando um rio enche, elas inundam”, explica o geógrafo Carlos Bordalo, coordenador do Grupo de Pesquisa em Geografia das Águas na Amazônia, da Universidade Federal do Pará.

Bordalo diz que as inundações resultam da ocupação desordenada sobre os leitos dos rios. Historicamente, as famílias construíram suas casas aterrando essas áreas, sem levarem em conta que os rios continuam lá. Portanto, ao cair uma chuva de maior volume, “as águas voltam para os seus espaços e as áreas vão continuar enchendo”, diz. “Na verdade, isso tudo é falta de planejamento urbano e ambiental, que deveria preservar a margem de rios e nascentes.”

O que o pesquisador chama de “paradoxo das águas” é uma realidade não só de Belém, mas de toda a região norte. Embora a Amazônia tenha o maior reservatório de água doce do mundo, é também onde a população tem menos acesso à água tratada. Os nove estados que compõem a região despejam quase 900 piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento todos os dias no meio ambiente, aponta o Trata Brasil. “Do ponto de vista da disponibilidade de água, temos uma grande riqueza com aquíferos, águas subterrâneas e volumes de chuva. Por outro lado, somos a região em que a maior parte das pessoas precisa coletar água de poços, da chuva ou de rios. Mas é uma água imprópria, porque não é potável.”

A solução emergencial seria “ampliar o sistema de abastecimento público ou privado”, com preço justo. “Infelizmente, as companhias de abastecimento estão privatizadas e cobrando caro.”

Sem saneamento, famílias improvisam o cuidado com as crianças

Embora a conta de água chegue todo mês, é comum as torneiras vazias. “A gente tem que pegar água na vizinha, que tem poço artesiano”, conta Alane Soares. Para ela, é um desafio sair de casa com a filha, Aurora Luísa, de 3 meses. “Eu evito sair se chover, pois a água bate na coxa.”

Mesmo assim, de segunda à sexta, precisa caminhar dois quarteirões para deixar a bebê com a mãe, Andreza Soares, e ir trabalhar. “Aqui sempre foi assim, desde quando minha mãe chegou. Então, já vem da bisavó da Aurora Luísa. Não muda. Ou fazem tudo devagar”, conta Andreza.

O direito a uma primeira infância saudável é negado às crianças das periferias amazônicas que não têm saneamento básico. Enquanto o Estado promete uma mudança efetiva a partir do Marco Legal do Saneamento – cuja meta é que 99% da população tenha água potável e 90% tenha tratamento e coleta de esgoto até 2033 -, as famílias fazem o melhor por suas crianças.

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Sair para o trabalho é um desafio para Alane Soares. Mesmo assim, todos os dias ela precisa atravessar as poças para deixar a filha na casa da mãe.

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Quando falta água, a família recorre aos vizinhos que têm poço. “Aqui sempre foi assim, desde quando minha mãe chegou”, conta Andreza Soares.

* Esta série de reportagens recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University.

Produção e reportagem: Célia Fernanda Lima

Mentoria: Mariana Kotscho

Edição: Laís Barros Martins

Fotos: Bruno Carachesti

Design: Larissa Fernandes

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