Nenhum direito a menos: toda criança precisa de saneamento

Como os investimentos básicos podem melhorar a primeira infância e o desenvolvimento das crianças na Amazônia

Célia Fernanda Lima Publicado em 10.10.2023
Mulher dá banho em bebê jogando água de uma vasilha de plástico em uma banheira no quintal de casa. Imagem ilustra a capa da matéria especial sobre saneamento e crianças.
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Resumo

Garantir o direito ao saneamento às crianças da Amazônia ainda é um desafio. Com os novos olhares para a primeira infância, estudos mostram que investir no início da vida beneficia toda a sociedade.

É comum faltar água na casa de Eliana Feitosa, moradora do bairro do Icuí, em Ananindeua (PA). As torneiras vazias na segunda cidade mais populosa do Pará comprometem a rotina da dona de casa. “Temos que pegar água do vizinho, não tem jeito”, explica Eliana, que divide a atenção entre o neto Miqueias, 4, e a filha caçula, Kaith, 18, grávida do primeiro filho. Os próximos meses, com um recém-nascido em casa, exigirão mais cuidados da família.

A região amazônica concentra a menor cobertura de saneamento para sua população e Ananindeua aparece na lista do Trata Brasil como um dos piores serviços do país, junto com mais três municípios do Pará (Belém, Santarém e Marabá). Embora seja coberta por rios, 69% da população não tem tratamento de esgoto e a água tratada falta para 67%. Além disso, a alta incidência de casos de dengue e leptospirose, doenças diretamente ligadas ao saneamento precário, assusta os moradores.

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Bruno Carachesti

Em Ananindeua (PA), Eliana Feitosa precisa deixar o neto Miqueias, 4, dentro de casa quando aparecem ratos pelo quintal.

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Kaith Feitosa, 18, grávida do primeiro filho, tem que pedir água para os vizinhos se as torneiras amanhecem vazias.

Olhar para a infância agora é pensar nos efeitos futuros

A ciência mostra que privações como a falta de saneamento afetam o desenvolvimento de crianças na primeira infância, mas a situação não significa uma sentença final para quem vive nesse contexto. Por isso, profissionais da saúde e educação defendem iniciativas no presente. “Algumas pesquisas propõem que a felicidade só chega na fase adulta, mas a felicidade deve estar na infância porque as crianças já são pessoas hoje”, diz Juliana Prates, psicóloga doutora em Estudos Sociais da Infância e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Segundo ela, defender a ideia de que a criança é uma pessoa pronta e, ao mesmo tempo, está em desenvolvimento e precisa de proteção, é fazer parte do “movimento infancialista”.

“Defendemos o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos. Elas têm um olhar único sobre o mundo e a gente pode se beneficiar disso. Parece uma ideia poética, mas é influenciada por estudos que relacionam esse movimento a mais qualidade de vida. Se a situação não é boa para as crianças, não é boa para todos.”

Para a pesquisadora de desenvolvimento na primeira infância e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Harvard, Dana McCoy, as dificuldades na infância não são, necessariamente, um prenúncio de fracasso. “Nem todas as crianças expostas a adversidades experimentarão resultados negativos. Na verdade, a adversidade pode ser tolerável – ou mesmo vantajosa – se vivida com apoio dos cuidadores.”

Contudo, ela ressalta que a situação se agrava quando a privação é persistente e está presente em vários contextos da vida das crianças. Nesse sentido, é urgente que programas governamentais atentem para a garantia dos direitos mais básicos desde o início da vida. “Embora nunca seja tarde demais, investimentos precoces são mais vantajosos e têm mais retornos”.

Ou seja, as práticas de intervenção devem “começar cedo e considerar os adultos, pois a atenção também precisa estar voltada para cuidadores e comunidade”, diz McCoy. Ela cita os bons resultados de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, como estratégia para “minimizar custos e garantir financiamentos de longo prazo”.

Investimentos são necessários desde o início da vida

O Brasil desperdiça 40% do potencial de suas crianças, revelou o Relatório de Capital Humano Brasileiro, do Banco Mundial, no ano passado. Em áreas com menos recursos, como a região norte, o índice aumenta para 55%. Desse modo, o PIB do Brasil é 2,5 vezes menor do que poderia ser caso as crianças desenvolvessem suas habilidades ao máximo.

Ao considerar as taxas de mortalidade infantil, déficit de crescimento, escolaridade e aprendizagem, o estudo alertou os governos sobre a importância de investir na primeira infância como estratégia de crescimento econômico. Essa ideia foi comprovada pela chamada “Equação de Heckman”, proposta pelo economista James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, em 2000. Para cada dólar investido na primeira infância, sete retornam na vida adulta para a sociedade, em forma de benefícios com a redução de gastos com tratamentos médicos, menores índices de evasão escolar e de violência, por exemplo.

James Heckman analisou os dados de um projeto americano, de 1962, que acompanhava a evolução de dois grupos de crianças da mesma cidade. Um recebia mais estímulo e educação de qualidade do que o outro. Embora sem grandes efeitos iniciais – porque os índices de QI das crianças eram semelhantes -, o economista decidiu acompanhar o desenvolvimento a longo prazo e constatou que aquelas mais estimuladas apresentaram habilidades sociais e emocionais importantes na juventude, além de maior probabilidade de estarem empregadas. Assim, após 50 anos, Heckman publicou um artigo dizendo que os filhos dos participantes mais estimulados na infância estavam mais escolarizados e bem empregados do que os do outro grupo.

O saneamento básico como uma premissa para as políticas públicas voltadas para a primeira infância também é defendido por estudiosos brasileiros, como o economista Naercio Menezes Filho, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). “A casa que essa criança vive tem que ter água e esgoto”, disse em entrevista ao jornal Valor Econômico. Contudo, há um descompasso entre os índices sociais nas regiões do país.

São José do Rio Preto (SP), por exemplo, que atingiu 100% de cobertura de água tratada e 93% de esgoto, soma R$ 124 em investimentos por habitante para o saneamento. Já Ananindeua, tem apenas R$ 39 investidos por pessoa.

Outra prova de que o acesso ao saneamento é a raiz para garantir mais serviços essenciais é a evolução na qualidade de vida nas comunidades do minidocumentário “O básico que salva vidas”, do Trata Brasil. Com a chegada do tratamento de água e esgoto, cinco lugares de São Paulo zeraram as ocorrências de atendimentos de crianças com diarreia e verminoses. Mães, professores e agentes de saúde contaram que outros serviços chegaram no bairro depois da água tratada. Benefícios como postos de saúde, escolas, asfalto e espaços de lazer. Assim, as faltas escolares reduziram e mais gente conseguiu empregos.

Quem não tem água na torneira recorre ao piscinão

Em Ananindeua, Nayara Corrêa, mãe de Maria Elisa, 7 meses, sente os reflexos dos baixos investimentos do poder público. Ela divide a água de um poço artesiano próprio entre a sua casa e a casa da mãe, construídas no mesmo terreno. “Se depender da água da torneira, não tem nada. Ainda não deu para fazer a tampa, por isso deixamos assim”, aponta para a tábua de madeira improvisada sobre o poço. A ligação elétrica para essa água chegar na casa já foi feita, mas se a energia for embora, “ela não sobe”. O jeito, então, é puxar com a corda pelo balde, lá do fundo, “senão a gente fica sem energia e sem água.”

No Icuí, quando o calor é mais intenso, alguns moradores e crianças vão se refrescar no “piscinão”, um igarapé de água corrente. Segundo o geógrafo e pesquisador em Geografia das Águas na Amazônia da Universidade Federal do Pará, Carlos Bordalo, o piscinão pode ser um braço do rio Maguari, principal curso de água doce da cidade. Mas não dá para confirmar se a água é própria para banho. “Precisaria de testes específicos de balneabilidade, para saber se há presença de bactérias e outros microorganismos causadores de doenças”, diz.

O Painel Saneamento Brasil indicou que, por ano, a cada 100 mil habitantes de Ananindeua, 830 são internados por diarreia. No país inteiro, o DataSus contabilizou 130 mil internações em 2021, por causa de doenças associadas à falta de saneamento. Mais de 45 mil pacientes desse total são crianças menores de quatro anos. O Trata Brasil aponta que essas doenças surgem, em grande parte, em áreas onde o esgoto escorre a céu aberto em valas, canais e rios.

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Bruno Carachesti

Para garantir água em casa, Nayara Corrêa, mãe de Maria Elisa, 7 meses, divide um poço artesiano com a mãe.

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Crianças se refrescam no “piscinão do Icuí”, na periferia de Ananindeua (PA).

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Banhada pelo rio Maguari, Ananindeua tem uma das piores coberturas de saneamento do país, o que compromete a rotina das crianças.

Unicef aponta caminhos para a primeira infância na Amazônia

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), políticas básicas fundamentais para a primeira infância ainda são um desafio na Amazônia. Isso porque a região é o lugar mais inseguro para as crianças no país, segundo o relatório “Bem-estar e privações múltiplas na infância e na adolescência no Brasil”.

Paulo Diógenes, consultor para Água, Saneamento e Higiene do Unicef na Amazônia, explica que “a região norte apresenta os piores índices de crianças sem creches e pré-escola do país. Além disso, os grandes deslocamentos e as equipes de saúde reduzidas levam à baixa imunização das crianças e à pouca cobertura pré-natal. Especialmente em comunidades indígenas e quilombolas.”

Diógenes confirma a situação crítica do saneamento. Segundo ele, “é necessário adotar políticas integradas que incluam a melhoria da infraestrutura de saneamento, programas de educação em saúde e acesso equitativo à água potável para combater a desigualdade regional”. Além disso, as condições geográficas precisam ser consideradas, pois “a contaminação da água e do solo afeta a biodiversidade e os recursos naturais da Amazônia, prejudicando o desenvolvimento sustentável a longo prazo”. Dentre as principais ações emergenciais ele destaca:

  • Aumentar os investimentos para o acesso ao saneamento básico,
  • Desenvolver indicadores específicos para avaliar esse impacto na primeira infância,
  • Investir em pesquisas e inovações para melhorar a infraestrutura local,
  • Desenvolver programas de educação em saúde e higiene nas escolas e comunidades.

Mais atenção e novas perspectivas para as crianças

Garantir a proteção absoluta das crianças é uma prioridade compartilhada entre o Estado, a família e a sociedade, como propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Porém, a situação das infâncias brasileiras não condiz com uma divisão justa dessa responsabilidade. “Investir na primeira infância é a chave para a construção de uma sociedade mais igualitária e pode quebrar o ciclo intergeracional da pobreza”, afirma Mariana Montoro, diretora de Comunicação e Relações Governamentais na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização ligada aos direitos da primeira infância no país.

Para ela, apesar de “ainda faltar muitos passos para garantir os direitos necessários à primeira infância”, incluir essa população nas decisões políticas já é um caminho promissor. “Com o crescente respaldo e discussões mais aprofundadas, espera-se um aumento nos esforços para programas e políticas direcionadas a esse grupo e às gestantes”, diz Montoro, referindo-se à nova Lei 14.617/2023 que, cruzando percepções que atravessam a ciência e o desenvolvimento socioeconômico, instituiu agosto como o “Mês da primeira infância”.

Mesmo assim, só é possível aplicar políticas públicas com recursos que, de fato, cheguem à vida das crianças para que haja transformações. Por isso, “o foco deve ser a redução das desigualdades e a garantia do pleno desenvolvimento infantil. Nenhum programa ou melhoria para essa fase se dá sem que a criança esteja no orçamento”, defende Montoro. A partir desses novos olhares espera-se que privações, como a falta de água limpa e o tratamento de esgoto, não tirem os outros direitos da primeira infância na Amazônia. Sobretudo o direito à felicidade.

* Esta série de reportagens recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University.

Produção e reportagem: Célia Fernanda Lima

Mentoria: Mariana Kotscho

Edição: Laís Barros Martins

Fotos: Bruno Carachesti

Design e vídeo: Larissa Fernandes

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