Como nascem e como poderiam nascer as crianças brasileiras

De um lado, mulheres que viveram traumas no parto cirúrgico. De outro, as que têm medo de parir de forma natural. Precisamos falar sobre assistência ao parto

Mayara Penina Publicado em 14.03.2017
Mãe com bebê recém-nascido no colo olha sorrindo para o filho.

Resumo

Por que são tantas mulheres contando experiências traumáticas de parto cirúrgico? Por que o parto normal ainda é visto com preconceitos? Conversamos com Raquel Marques, diretora da Artemis e com o obstetra Alberto Guimarães.

O Brasil é campeão mundial de cirurgia cesariana, chegando a 85% na rede privada. A OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda que este número não ultrapasse o índice de 15%. Dados do Ministério da Saúde indicam que a cesárea sem indicação médica aumenta aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido e triplica o risco de morte materna.

Além disso, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto no Brasil, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo.

Por outro lado, o parto humanizado é encarado por muitas pessoas como uma conduta relacionada a grupos específicos, sem entender que um processo seguro, acolhedor e respeitoso – desde a barriga até o pós-parto, passando, é claro, pelo parto em si – é um direito de TODAS as mulheres.

Para entender este cenário e investigar porque existem tantas mulheres contando experiências traumáticas de parto, o Lunetas foi conversar com Raquel Marques, diretora da Artemis, e com o obstetra Alberto Guimarães, que lidera o Programa Parto Sem Medo. Os dois profissionais concordam que há uma multiplicidade de fatores.

Confira a entrevista!

Lunetas: A que você atribui a situação que o Brasil chegou em relação aos nascimentos? Quando o parto deixou de ser um processo fisiológico e as taxas de cesáreas aumentaram tanto?

Alberto Guimarães: Uma das coisas que fez muita diferença foi a ida do parto para o ambiente hospitalar, e essa ida veio sinalizada com a questão de equipamentos, anestesia, especialistas e a segurança do hospital, por ser um local mais controlado.

“Com essa promessa de parto sem dor, e os equipamentos e o ambiente mais controlado, a mulher basicamente foi abrindo mão do que ela precisava fazer”

Isso foi transferido para a mão de outras pessoas, o que aumentou a noção de que o dinheiro fazia com que não houvesse a dor no trabalho de parto, ou seja, a ideia de “sofrimento”. A mulher começou a pensar “se eu tenho dinheiro, vou ao hospital, peço uma cesárea e extrapolo esta fase”. Também veio a questão de se espelhar nas outras mulheres, e já que agora existem os planos de saúde, a cesárea ficou ainda mais fácil.

Essa distorção de quem tem dinheiro faz cesárea e quem não tem vai para o parto normal e para a dor é um dos fatores muito importantes.

“É uma questão tecnocrática, este olhar da assistência baseada em equipamentos e tecnologia, onde os menos favorecidos sofrem e os que têm mais condições podem passar pelo parto sem dor”

Raquel Marques: O entendimento de que as cesarianas estavam aumentando já começou a ser percebido na década de 70, 80. Não é um problema exclusivo no Brasil, mas nosso país teve algumas peculiaridades históricas que levaram a essa distorção.

A primeira delas é que durante muito tempo a laqueadura era proibida no país. Então, as mulheres faziam acordos com os médicos para que elas fizessem o procedimento escondidas durante a cesariana. Há também o medo da mulher na assistência, e como o parto vaginal é muito violento, as mulheres acabam optando por uma cirurgia como uma forma de sofrer menos.

“Para muitas mulheres, a cirurgia cesariana é apenas uma alternativa à experiência de um parto violento”

Ou seja, é uma questão multifatorial, histórica, econômica. A gente tem um cenário de que na assistência privada, os hospitais não têm uma capacidade tão grande assim. Então, eles resolvem esse problema colocando muitos centros cirúrgicos e poucos centros obstétricos, considerando que a cirurgia é muito mais rápida que o parto.

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Shutterstock

O que define um parto como humanizado é o respeito às escolhas da parturiente e à saúde do bebê.

Lunetas: Fazendo uma análise da política pública, quais caminhos o Brasil precisa seguir para que todas as mulheres tenham uma assistência humanizada ao nascimento? 

Alberto Guimarães: O nosso trabalho é contribuir com a questão do parto e do nascimento, e envolve duas frentes: a principal delas diz respeito a esse esclarecimento do papel da mulher na gestação e no parto, à medida que ela entende e incorpora a fisiologia do parto de maneira desvelada, de uma maneira que se veja superando tudo, que ela entenda que sobre as contrações e dores existem uma série de táticas para diminuir e torná-las todas suportáveis. Assim, essa mulher começa a perceber que ela pode pleitear a experiência fazendo parte do ciclo da feminilidade, deixando à mão ajuda para quando realmente precisar.

“À medida em que se investe na informação, você instrumentaliza a mulher a entender de fato que o parto normal é uma questão de saúde para ela e para o bebê”

Assim, mulheres esclarecidas vão ter o discernimento para saber o que elas estão recebendo em termos de assistência, e podem reivindicar e provocar as mudanças estruturais que precisarão ser instaladas para que todas possam receber de maneira universal a assistência necessária.

“Óbvio que isso não tira a possibilidade de quem quer e pode receber uma assistência privada, mas essa luta tem que chegar à saúde pública”

Temos que caminhar com mudanças profundas do modelo que temos hoje, atingindo os profissionais e chegando até à população informada.

Raquel Marques: É bem complexo. Precisamos de uma revisão da formação dos profissionais. Essa formação totalmente voltada para a medicalização e para a intervenção é um problema. Também tem uma questão que é cultural e educacional, e que tem o tempo dela  de acontecer.

“Precisamos de uma revisão nos processos e maternidades para que eles sejam centradas nas necessidades das mulheres e não na necessidade da instituição ou dos profissionais”

Além disso, podemos falar em uma mudança de modelo, especialmente da assistência para que a referência da mulher seja o serviço, e não o profissional.

“A mulher precisa ter confiança de que qualquer profissional que vá atendê-la, vai atender bem”

Os profissionais precisam trabalhar orientados pelas evidências científicas mais recentes. É preciso que tenham a disposição. de rever a sua práticas. Também é preciso mudar os hospitais para que tenham instalações adequadas ao parto normal. Na rede privada, até nos hospitais mais chiques faltam centros obstétricos. Enfim, são muitas iniciativas que devem andar em paralelo para que a gente tenha uma assistência ao parto de qualidade orientadas pelo que a gente sabe hoje que são as melhores evidências, centradas na necessidade da mulher, da criança, e da família.

“Muitos dos procedimentos que os profissionais que se formaram há 20 anos aprenderam, hoje são entendidos como completamente obsoletos. Mais do que isso, danosos”

Lunetas: Muitas vezes as mulheres nem sabem que tem seus direitos violados, e acham normal que o parto seja um evento doloroso. Como mudar esse cenário?

Alberto Guimarães: De fato, as experiências que a gente tem visto e ouvido os relatos em relação aos partos normais, no fundo de normal não têm quase nada, porque são partos em que o foco é muita coisa técnica e não leva em consideração que existe uma mulher ali e que deveria ser respeitada – no sentido da sua autonomia, esclarecimento e informação – na utilização de um plano de parto.

“É na educação dos seus direitos e na cidadania, que nós podemos reverter este quadro e reescrever o parto como algo natural, fisiológico”

Raquel Marques: O único remédio é a informação, falar mais e mais sobre esse assunto. É muito dolorido descobrir que sofreu uma violência e por outro lado também acho que traz uma paz porque muitas vezes, essa mulher sentiu, mas racionalmente acha que não passou por isso, afinal, tudo aquilo era necessário para que ela e o bebê ficassem bem. Então, quando isso é nomeado, acalma muitos corações.

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iStock/Arte Lunetas

É importante pontuar que qualquer parto – cesárea, normal, hospitalar ou em domicílio – pode e deve ser humanizado.

A Artemis atua fazendo controle social e discussão de políticas públicas, exigindo que os poderes executivo, legislativo e judiciário que cumpram sua funções.

“Por meio das denúncias que recebemos, trabalhamos para exigir que responsáveis cumpram suas funções sob a pena de prevaricação. Quando um secretário de saúde ou um promotor, ou um gestor público ou gestor do hospital, não cumpre a regra, a lei ele está prevaricando, então isso é uma falta grave”, exemplifica Raquel.

Já o programa “Parto sem Medo“, criado pelo obstetra Alberto Guimarães, foi pensado inicialmente para a mulher grávida e para deixá-la preparada assumindo o protagonismo do parto e hoje está entrando em outra fase.

“Agora estamos pensando em um “Parto sem Medo” para o profissional também envolvido, voltando a deixá-lo em condições de fazer uma boa assistência, não ficar preocupado na questão burocrática do parto normal, como se a cesárea fosse ser a solução de tudo e o livrasse de qualquer problema”, contou o médico ao Lunetas.

“É inegável que o movimento pelo parto humanizado no Brasil avançou entre as classes sociais mais altas, numa solução liberal, em que cada um contrata seu profissional”

A violência obstétrica existe

Toda mulher tem direito a um pré-natal de qualidade, e é um direto que visa à saúde e ao bem-estar não apenas da mulher, mas também da criança.

No Brasil, todas as mulheres tem direito a um acompanhante de sua escolha durante todo o período de duração do trabalho de parto, parto e pós-parto, além de ser tratada com dignidade ter garantida a sua integridade física e psicológica.

O que define violência obstétrica?

Não é só no parto que ela acontece, mas desde as primeiras consultas de pré-natal até o pós-parto. Aprenda a identificar se o que você ou sua família viveram pode ser entendido como tal:

  • Negação de atendimento à mulher ou imposição de dificuldades ao atendimento de saúde onde serão realizados o acompanhamento pré-natal;
  • Comentários constrangedores à mulher, por sua cor, raça, etnia, idade, escolaridade, religião ou crença, condição socioeconômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, número de filhos, etc.;
  • Ofender, humilhar ou xingar a mulher ou sua família;
  • Negligenciar o atendimento de qualidade;
  • Agendar cesárea sem recomendação baseada em evidências científicas, atendendo aos interesses e conveniência do médico.

As formas mais comuns de violência obstétrica no parto são:

  • Recusa de admissão em hospital ou maternidade (peregrinação por leito);
  • Impedimento da entrada do acompanhante escolhido pela mulher;
  • Procedimentos que incidam sobre o corpo da mulher, que interfiram, causem dor ou dano físico (de grau leve e intenso) . Exemplos: soro com ocitocina para acelerar o trabalho de parto por conveniência médica, exames de toques sucessivos e por diferentes pessoas, privação de alimentos, episiotomia (corte na região da vagina), imobilização (braços e pernas).
  • Toda ação verbal ou ou comportamental que cause a mulher sentimento de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade emocional, medo, acuação, insegurança, dissuasão, ludibriamento, alienação, perda da integridade prestígio;
  • Cesariana sem indicação clínica e sem o consentimento da mulher;
  • Impedir ou retardar o contato do bebê com a mulher logo após o parto, impedir o alojamento conjunto da mãe com o bebê, levando recém-nascido para o berçário sem nenhuma necessidade médica, apenas por conivência da instituição;
  • Impedir ou dificultar o aleitamento materno (impedindo a amentação nas primeiras horas de vida, afastando o recém nascido da mãe, deixando-o em berçários onde são oferecidos mamadeiras e chupetas.

(Fonte: Defensoria Pública do Estado de São Paulo)

Como denunciar?

  • Exija cópia do seu prontuário junto à instituição de saúde onde foi atendida. Esta documentação pertence à paciente, podendo ser cobrado apenas o valor referente ao custo das cópias.
  • Procure a Defensoria Pública, independentemente se você usou o serviço público ou privado.
  • Ligue para o 180 (violência contra a mulher) ou 136 (Disque Saúde)

 

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