A Amazônia é o lugar mais inseguro para ser criança no país

Enquanto o mundo discute a crise ambiental na região, meninas e meninos continuam sem acesso à saúde, educação e saneamento

Célia Fernanda Lima Publicado em 13.06.2022
Crianças da Amazônia são as que mais têm direitos básicos negados: na imagem, uma família indígena olha através de uma janela. A foto possui intervenções de rabiscos e colagens coloridas.
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Resumo

A crise socioambiental na Amazônia afeta diretamente 9 milhões de crianças. A infância na região apresenta os maiores índices de privações de direitos básicos, segundo pesquisas. Além de enfrentar dificuldades sociais, famílias temem invasões.

A rotina da família do professor de língua indígena Bewâri Tembé é parecida com a de tantas outras que têm crianças. Na casa em Alto Rio Guamá, em Santa Luzia do Pará (PA), a esposa Piraywa apronta tudo bem cedo antes de levar as filhas Ywywaràn, 7, e Yway, 5, para a escola.

É nesse espaço que começam os problemas diários de famílias e crianças da aldeia: a escola não comporta todas as turmas e os alunos assistem aula em espaços improvisados. Há dez anos, a construção de um novo prédio foi abandonada. Além disso, há o desafio de  garantir a merenda, pois a secretaria de educação não manda o gás e eles precisam fazer coleta para comprar, conta Bewâri.

Em casos de emergência de saúde, os moradores precisam ir à capital Belém,a mais de 200 km do centro de Santa Luzia do Pará. “O  atendimento de saúde é precário no postinho da aldeia e já tivemos dificuldade em encontrar atendimento na cidade”, relata. 

Mas, diante de todos esses problemas, as constantes ameaças de invasão da aldeia pelo garimpo são o maior medo da família. Durante as fiscalizações na região dos Tembé, os moradores são sistematicamente ameaçados e as crianças ficam expostas à violência e a abusos. “Estamos protegendo a área, explicando, mas eles não nos escutam e nos ameaçam. Quem sofre mais são os caciques. Se os garimpeiros acabarem com o nosso cacique, nós vamos nos sentir mais fracos. Fico preocupado com esse cenário de quererem nos calar”, diz.  

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Arquivo pessoal

Bewâri e Piraywa Tembé com as filhas Ywywaràn (7) e Yway (5) vivem na Terra Indígena Alto Rio Guamá (PA). A rotina da família é interrompida às vezes pelas ameaças de invasões de garimpeiros.

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Pedro Tobias

As irmãs Ywywaràn e Yway Tembé enfrentam desafios comuns a mais de 9 milhões de crianças na Amazônia.

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Arquivo pessoal

A escola indígena na aldeia dos Tembé não comporta todas as turmas e professores precisam improvisar salas de aula em um galpão escuro. Um novo prédio começou a ser construído, mas está abandonado há dez anos, segundo os moradores.

Ser criança na Amazônia

De dimensões gigantescas, a região amazônica abriga múltiplas infâncias: crianças indígenas, ribeirinhas, quilombolas, e as que vivem nas zonas rurais e periferias das grandes cidades. Elas são as mais impactadas pela grave crise socioambiental em curso. “As desigualdades regionais são grandes desafios para alcançarmos o desenvolvimento sustentável das próximas gerações. É preciso um esforço público para aumentar a cobertura de saúde, educação e assistência social nas regiões do interior da Amazônia que sofrem com fortes restrições de desenvolvimento humano”, ressalta Caroline Miranda, assistente técnica da Fundação Abrinq.

De acordo com o Cenário da infância e adolescência no Brasil 2020, produzido pela Fundação Abrinq e direcionado a partir dos indicadores propostos na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), a região Norte concentra a maior população com menos de 19 anos em relação à população total. Dentro desse recorte, o lugar apresenta as maiores taxas de mortalidade antes de um ano, abandono escolar, gravidez na adolescência e trabalho infantil. “Os caminhos para melhorar as condições dessas crianças podem ser o aprimoramento dos cuidados com as gestantes durante o parto e puerpério nos serviços de saúde, e a maior cobertura de vacinação para que as doenças mais comuns na infância sejam controladas. São compromissos diretamente ligados ao futuro das novas gerações e é fundamental que os governos locais assegurem os direitos relacionados à proteção da criança e do adolescente”, explica Caroline.  

Índices da região Norte no cenário da infância e adolescência no Brasil 2020

Mortalidade na infância (menores de 5 anos): 18%
Gravidez na adolescência: 23%
População sem acesso à distribuição de água: 43%
População sem coleta de esgoto: 74%
Estupro de crianças e adolescentes do sexo feminino: 91%
Exploração sexual de crianças e adolescentes do sexo feminino: 89%
Nº de crianças e adolescentes ocupados com trabalho: 400 mil

Fonte: Fundação Abrinq

Por que as infâncias amazônicas estão ameaçadas?

Privações de direitos básicos marcam a infância de 9 milhões de crianças e adolescentes que vivem na Amazônia brasileira. Indicadores nacionais da saúde, educação e segurança das crianças revelam que a Amazônia é considerada o pior lugar para ser criança no país. Quem aponta a situação é o relatório “Bem-estar e privações múltiplas na infância e na adolescência no Brasil”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Entre tantos meninos e meninas submetidos a privações múltiplas dos direitos com implicações diretas em seu desenvolvimento, a situação é mais grave para os grupos declarados indígenas e quilombolas. 

A taxa de mortalidade infantil e desnutrição nos nove estados que compreendem a Amazônia estão acima da média brasileira. O número é bem maior entre as crianças indígenas. A cada mil bebês que nascem, mais de 30 vão à óbito nos primeiros 28 dias de vida. As mortes são causadas por doenças chamadas evitáveis, como diarreias, malária, tuberculose e infecções respiratórias. A desnutrição crônica atinge 30% das crianças indígenas, sendo que algumas etnias apresentam índices maiores: entre os yanomami, 80% das crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição e 65% de anemia. Nos lugares mais afastados da área urbana, a infância também é marcada pela exposição a conflitos ambientais violentos e acesso precário ao saneamento e à educação

“Tudo está interligado. Se não tem educação, saneamento e alimentação, não tem saúde. Se a gente vive em uma área vulnerabilizada, toda a família é afetada. Precisamos de uma qualidade de vida melhor. Vivemos aqui porque somos resistência no quilombo”, diz Roseti Araújo, presidente da Associação Remanescente da Comunidade Quilombola do América, em Bragança (PA). 

A comunidade fica dentro de uma Reserva Extrativista onde vivem 120 famílias remanescentes de quilombolas, que ocupam há mais de 200 anos o local. Roseti é mãe de três meninos e trabalha como agente de saúde. O filho mais novo, Ronan, 5, estuda na primeira e única escola da comunidade. A estrutura do lugar e o esquema de turmas multisseriadas prejudicam a qualidade de ensino. “Eu estudei nessa escola e vou fazer 47 anos. Está do mesmo jeito: é só um quadrado muito pequeno, os vidros das janelas estão quebrados e, quando chove, a sala enche de água”, conta Roseti. “A professora dá aula para quatro turmas diferentes dentro da mesma sala de aula. Não tem como as crianças acompanharem. Meu filho sabe escrever porque nós ensinamos. Mas imagina nas casas que os pais são analfabetos e não tem ninguém para ajudar, a criança não avança”, diz. 

No América, tudo foi conquistado com muita luta. A associação sempre recorre ao Ministério Público Estadual para conseguir o básico, como acompanhamento de saúde, transporte escolar, merenda adequada e melhor estrutura. São batalhas demoradas e cansativas. De acordo com Roseti, o cenário político atual deixou tudo mais difícil. “Lutamos tanto por nossos direitos nesses últimos anos e estamos vendo isso ser tirado de nós. O certo é viver na expectativa de conseguir mais direitos, e não o contrário. Espero que as leis não se transformem apenas em letras mortas”, ressalta. 

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Arquivo pessoal

A comunidade do América tem apenas uma escola há mais de 40 anos para todas as crianças. No espaço, apenas sala de aula para turmas multisseriadas.

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Arquivo pessoal

Mãe de três filhos, Roseti vive com a família na comunidade Quilombola do América, em Bragança (PA), onde vivem 120 famílias remanescentes quilombolas. Todos os direitos foram conquistados ao longo de anos. “Precisamos de uma qualidade de vida melhor. Vivemos aqui porque somos resistência no quilombo”, diz.

“Somos a última geração que pode salvar o mundo”

A preocupação com o futuro da Amazônia reflete a proporção de sua destruição. O assunto deve ser destaque nas discussões das próximas eleições presidenciais, como mostrou uma pesquisa encomendada pelo Instituto Clima e Sociedade (ISC): 80% dos brasileiros entrevistados consideraram a proteção da Amazônia prioridade para os candidatos à presidência e 71% analisaram negativamente o atual governo em relação às políticas de proteção ambiental.

Ricardo Abramovay, professor sênior de Ciência Ambiental da USP, ressalta no relatório “A Amazônia precisa de uma economia do conhecimento da natureza”, produzido em parceria com o Instituto Alana e demais instituições, que, justamente nos lugares onde há mais desmatamento, o desenvolvimento social é menor. “O crescimento econômico e o bem-estar das populações que vivem na Amazônia não dependem do desmatamento. Ao contrário, onde mais se desmata é onde menos a economia cresce e onde é maior a distância entre os indicadores de desenvolvimento do país e os da Amazônia”, diz o texto.

Segundo Abramovay, dar continuidade às vivências dos povos originários e suas formas de manejo com a natureza é garantir a sustentabilidade da floresta. “A cultura material e imaterial das populações tradicionais da Amazônia traz ensinamentos que o país pouco conhece e menos ainda valoriza. Melhorar a vida e ampliar as oportunidades para que as populações tradicionais possam manter sua cultura e gerar renda por meio das atividades compatíveis com a preservação do ambiente em que vivem é uma das condições básicas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”.

Situação limite

As mudanças climáticas provenientes dos altos índices de devastação e incêndios florestais aproximam a Amazônia de um potencial “ponto de inflexão” ou não retorno, como demonstrou o Relatório de avaliação do bioma, lançado na Conferência do Clima da ONU, em Glasgow, ano passado. Se chegar a esse ponto, a floresta perderá a capacidade de se recompor e a vegetação se transformará permanentemente em um ecossistema seco, com menor cobertura de árvores.  

Cerca de 60% de toda a Bacia Amazônica já está próxima desse ponto crítico. Além disso, quase 70% dos territórios indígenas e áreas protegidas encontram-se ameaçados em função da abertura de estradas, mineração, invasões ilegais, garimpo e desmatamento descontrolado. A recomendação registrada no mesmo relatório aponta a suspensão imediata do desmatamento e propõe que o Brasil alcance até 2030 a meta de desmatamento e degradação zero. 

O governo brasileiro anunciou, durante a Conferência, a antecipação da meta para 2028, mas as políticas atuais que passam pela pasta ambiental não incentivam a preservação da Amazônia tampouco faz valer as vozes dos povos originários.

Todas essas problemáticas ameaçam diretamente as infâncias amazônicas; às vezes, antes de nascerem, como nos casos de contaminação por mercúrio em mulheres grávidas que vivem próximas dos garimpos. Por isso, é preciso mais do que consciência: é hora de parar a destruição, exigir políticas voltadas à preservação e ouvir as vozes de quem faz a Amazônia. Garantir o futuro das crianças que vivem na Amazônia é também garantir a existência do futuro de todo o planeta.

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