A culpa é da chuva? Como estão as crianças do litoral norte de SP

Enchentes e deslizamentos de terra deixam 54 mortes na região e evidenciam as marcas do racismo ambiental; 4 milhões vivem em áreas de risco no Brasil

Eduarda Ramos Publicado em 24.02.2023
Chuva no litoral norte: imagem em preto e branco que mostra uma criança e uma mulher adulta de costas, olhando para um ambiente inundado.
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Resumo

Falar sobre temporais no litoral norte de São Paulo também é falar sobre racismo ambiental e negligências no trato da população. Até o momento, são 54 óbitos.

Chega a época de chuva e as tragédias se repetem, afetando principalmente populações vulneráveis que vivem em morros ou em áreas com risco de inundações. Na madrugada de domingo (16), temporais em cidades do litoral norte de São Paulo provocaram deslizamentos de terra, deixando dezenas de desaparecidos e 54 mortos na região – pelo menos 13 são crianças.

O que acontece no litoral norte?

As cidades de São Sebastião, Bertioga, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba registraram 624 mm de chuva em 24 horas, quantidade esperada para o mês inteiro. Mais de 2.500 pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas. São Sebastião, cidade mais afetada pelos eventos climáticos, totaliza 53 mortes e 36 desaparecidos até o momento.

Na Barra do Sahy, bairro de São Sebastião mais atingido pelas chuvas, o racismo ambiental se confirma: a população que mais sofreu os impactos do desastre é a que possui moradias nas margens de morros e encostas. Mas, conforme explica Ivan Maglio, doutor em saúde pública e pós-doutorado em planejamento e mudanças climáticas, apesar da tragédia afetar principalmente quem já vivia em situação de vulnerabilidade social, a falta de planejamento público do local é sistêmica: “do lado do mar, estão as moradias de classe média e alta, que também possuem precariedade de estrutura porque a ocupação aconteceu de maneira pouco planejada”, aponta.

“É um processo cíclico que precisa ser rompido para que haja justiça social e climática para todos”

Não é um evento isolado

Waldez Góes, ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, afirmou nesta quarta-feira (22) que há 14 mil pontos com alto risco de deslizamentos de terra em todo o país, onde vivem cerca de 4 milhões de pessoas. Entre 9,5 milhões de brasileiros que estão na linha de frente para este e outros desastres climáticos, quase 2 milhões são idosos ou crianças, calcula o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Para Andréia Coutinho Louback, jornalista e especialista em crise climática, falar sobre “desastres naturais” também é falar sobre racismo ambiental. “Geralmente são pobres, negros e com poucos recursos para adaptação climática os moradores com menos chance de sobrevivência a desastres e negligências que afetam a saúde, o entorno e a qualidade de vida”, explica, reforçando como a crise climática possui impactos desiguais em diferentes populações.

É possível prevenir? A falta de políticas públicas mata

Apesar da crise climática ser um evento global que demanda a cooperação do mundo inteiro para combatê-la, a jornalista ambiental Ana Carolina Amaral conta que é possível se preparar para que esses eventos possam ser reduzidos a perdas materiais, sem perdas humanas. Para ela, as políticas públicas que mais dão suporte para enfrentar esses eventos são estaduais e municipais, como o plano diretor. Quando o assunto é moradia, “é onde a população mais pode atuar e cobrar o poder público perto dela”, diz.

Para Louback, reconhecer que “nada disso é um fato isolado” também passa por políticas públicas que tratem a questão climática considerando raça, gênero e classe, sem que as tomadas de decisões sejam feitas de maneiras excludentes, masculinas e elitistas.

O programa Criança e Natureza, do Instituto Alana, reforça que “essas pessoas não escolhem morar em áreas de risco; a falta de oportunidades e de habitação é que as empurra para esses locais”. Não é coincidência que populações mais vulneráveis, geralmente compostas por negros e moradores de periferias, que já sofrem com a falta de moradia digna e saneamento básico, sejam as mais afetadas pelos efeitos da crise climática.

“As vítimas têm cor, lugar social e habitam lugares de vulnerabilidade climática” – Andréia Coutinho Louback

A tragédia no litoral norte reflete uma série de negligências. Além da possibilidade de deslizamento já ser conhecida desde 2020, a pressão causada pela especulação imobiliária, que segrega a população e mantém os mais vulneráveis às margens, tem um capítulo à parte. Maresias, um dos bairros de São Sebastião afetados pela tragédia, tem seu território em disputa. Um projeto para construção de 400 moradias populares foi barrado – o prefeito alega que moradores de renda alta bloquearam a ideia, enquanto parte da população o rebate, pontuando que as moradias seriam construídas em áreas de charco (a campanha “Charcos com vida” define “charco” como uma massa de água parada ou de corrente muito reduzida, de caráter permanente ou temporário, de tamanho superior a uma poça e inferior a um lago) e que a falta de saneamento básico não seria capaz de suportar a chegada de novos moradores.

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