Como o racismo se revela na crise climática e afeta a infância?

Impactos climáticos não são democráticos e ameaçam as infâncias de formas distintas. Enfrentar as desigualdades socioambientais é parte da luta antirracista

Andréia Coutinho Louback Publicado em 20.09.2021
Foto de duas crianças negras, de costas, andando em direção a uma casa feita de barro
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Resumo

Desigualdades socioambientais têm cor, gênero, idade e lugar. Discutir desigualdade racial é fundamental para incluir populações marginalizadas nas decisões e políticas climáticas. Afinal, o antirracismo é parte da luta por justiça climática e socioambiental.

O que vem à mente quando pensamos em (in)justiça climática e socioambiental? Quais são as imagens, os cenários e as populações que percorrem nosso exercício imaginativo? Qual a cor dessas pessoas? Onde elas vivem? Em uma batalha travada pela sobrevivência, qual seria o provável desfecho? Pausa para recuperar o fôlego. Muitas são as interrogativas que nos provocam quando o tema é racismo ambiental. Diante de tantas perguntas inegociáveis, a comunidade climática segue em débito no que tange às respostas frente a um contexto global de desigualdades sistêmicas e estruturantes, sobretudo no Brasil. 

Impactos climáticos têm cor, gênero e lugar. Esta é literalmente a primeira premissa que rege a publicação intitulada “O que o antirracismo pode ensinar ao campo das mudanças climáticas?”, lançada pelo LAB PerifaConnection: Clima e Periferias, no ano passado. Produzido sob uma lente racial, o estudo traz à tona a urgência de pautar as causas, consequências e soluções para a emergência climática com uma perspectiva antirracista. Afinal, os extremos climáticos – diretos e indiretos – não são democráticos e afetam com maior intensidade as comunidades, gerações e vidas historicamente marginalizadas.

Para entender o contexto, é preciso retornar quatro décadas atrás. Considerado o precursor do tema nos Estados Unidos, o reverendo Benjamin Franklin Chaves Jr. não apenas cunhou o conceito de racismo ambiental como também institucionalizou o debate científico sobre comunidades negras, indígenas e de baixa renda desproporcionalmente afetadas pela degradação e contaminação do meio ambiente por resíduos tóxicos. Embora esse marco tenha acontecido em 1981, é a partir da tragédia do furacão Katrina – que atingiu a costa sul norte- americana, em 2005 –  que o Brasil “desperta” para a mesma problemática.

Considerado um dos furacões mais mortíferos da história dos Estados Unidos, as enchentes devastadoras deixaram, pelo menos, 1.800 mortes e mais de um milhão de pessoas evacuadas de suas casas. O Katrina evidenciou a negligência política em relação à comunidade negra e deixou profundas marcas na população sobrevivente após a tragédia ambiental. Um estudo conduzido por pesquisadores de Harvard sobre a catástrofe mostrou que as crianças, por exemplo, sofreram graves distúrbios emocionais, como desordem mental (depressão e estresse pós-traumático).

Embora eventos climáticos extremos impactem a todos nós, há um recorte persistente e estrutural de quem paga a pior parte dessa conta. Não há neutralidade na identificação desse grupo, pois ele é composto majoritariamente pela população negra, quilombola, pesqueira, periférica, indígena, ribeirinha e infantil. Vale lembrar que esses mesmos grupos populacionais são sub-representados em espaços de tomada de decisão e de estruturação de políticas climáticas. Esse fenômeno histórico de invisibilidade, negligência e exclusão no movimento ambientalista é chamado de racismo ambiental e climático

‘Racializando’ territórios e infâncias brasileiras

Um levantamento divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que, em meio à pandemia, o Brasil conta com 5.127.747 domicílios em aglomerados subnormais, popularmente conhecidos como favelas. Simultaneamente, o último registro oficial mapeou 7.103 territórios indígenas e 5.972 quilombolas. A geografia dessas localidades é tradicionalmente vulnerabilizada pela crise climática. Segundo o cientista social e doutor em planejamento urbano e regional Rodrigo Nũnez Viégas, esses territórios, denominados como zonas de sacrifícios, são exatamente os locais onde ocorrem múltiplas práticas ambientalmente agressivas com impactos diretos nas populações de baixa renda e minorias étnicas. 

A vida de Sônia Alves, 62, é um exemplo que ilustra esse cenário. Ela cria seus cinco netos, com idade entre 3 e 18 anos, e mora no Morro da Providência, no Rio de Janeiro (RJ), considerada a primeira favela do Brasil. Para ela, o verão representa quase um fantasma em duplo sentido. De um lado, o extremo calor que faz dentro das residências causa uma série de estragos e desconfortos. Do outro, a ameaça constante de chuvas também traz muito temor para ela e sua família. “Não consigo dormir com medo do vento forte, penso logo que ele vai sair levando tudo pela frente. Eu sempre acho que a chuva é uma ameaça à minha vida e à minha casa”, desabafa. 

“Até hoje, fica difícil explicar para as crianças como o fato de viver aqui nos coloca em risco de vida o ano inteiro”

Ana Clara, 12, tenta descrever o porquê de se sentir menos vulnerável – no sentido de ameaçada – do que a sua avó diante de um temporal, por exemplo. Como ela nunca presenciou nenhuma enchente na sua casa desde que nasceu, suas memórias estão mais protegidas de episódios traumáticos como os que a Dona Sônia já viveu. “Eu não sinto tanto medo como a minha vó. Só quando a chuva está muito forte e faz aquele barulho de vento, eu fico mais assustada, mas ela fica desesperada”, conta a menina. Para ela, saber que as mudanças climáticas ameaçam não só a favela onde vive, mas tantas outras comunidades pobres no Brasil é muito triste. 

“Espero que eu nunca precise ver nenhum dos meus amigos feridos, ou perder alguma pessoa que eu goste por conta de um problema que a gente não inventou”, lamenta.

Em 1989, houve uma enchente muito violenta na favela que a traumatizou. “Eu perdi o pouco que tinha e ainda vi pessoas que amava morrer”, lembra. Em sua memória, corpos negros foram soterrados e não houve nenhuma assistência dos governos locais frente à tragédia. 

De acordo com dados preliminares do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, a situação de pandemia, quando houve queda no orçamento disponibilizado para enfrentamento aos desastres, expôs ainda mais a nossa fragilidade na gestão de riscos, e amplificou o impacto dos eventos extremos em 2020 e 2021. Foram monitorados 1.920 alertas e 626 ocorrências em 2020, o que revelou um aumento considerável em relação aos anos anteriores. Já entre  2016 e 2019, por exemplo, o Brasil registrou 1.362 alertas e 279 ocorrências.

Comunidades quilombolas na mira de grande projetos

Quando direcionamos o olhar para a região Nordeste, vemos uma lógica repaginada de racismo ambiental nas comunidades quilombolas. No município de Santa Rita, localizado no estado do Maranhão, um quilombo acaba de “perder” a batalha contra a passagem de um linhão de transmissão de energia, que desrespeitosamente fincou suas torres nos campos naturais de 111 quilombos. A principal contradição dessa invasão é o fato que o linhão está passando por uma comunidade, que não tem luz, para fornecer eletricidade a uma cidade.

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Obras da passagem de um linhão de transmissão de energia, no município de Santa Rita (MA), que desrespeitou códigos ambientais e construiu suas torres nos campos naturais de 111 quilombos

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Obras da passagem de um linhão de transmissão de energia, no município de Santa Rita (MA), que desrespeitou códigos ambientais e construiu suas torres nos campos naturais de 111 quilombos

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Obras da passagem de um linhão de transmissão de energia, no município de Santa Rita (MA), que desrespeitou códigos ambientais e construiu suas torres nos campos naturais de 111 quilombos

“A obra iniciou em meados de 2019 e já está na reta final. Eu acionei a defensoria pública daqui e conversei com o defensor público federal. Mas não tive apoio de ninguém e de nenhuma instituição”, relata a liderança negra e quilombola Antônia Cariongo. 

“Somos poucos para tantos projetos gigantes e seus impactos”

Ela narra ainda que, pelo fato de a obra da linha de transmissão ter se instalado dentro dos campos naturais, houve quatro territórios negros impactados sem que houvesse nenhuma consulta à população residente. “A empresa sempre justifica que não tem impacto, mas há impactos gigantescos: durante a implantação da obra, máquinas afundaram dentro do campo, derramaram óleo na nossa água. Depois que eles colocaram as torres aqui, os campos naturais não deram peixe esse ano. Como vamos viver se o que abastecia as mesas do nosso município eram os campos?”, questiona.

Em meio a isso tudo, estão aproximadamente 300 crianças que vivem na região. Para elas, as torres parecem bonitas e mágicas, com aquela estrutura metálica gigante sustentando fios, lá no alto, que cruzam o céu. Mas os pequenos ainda não conseguem entender o quanto essas torres imponentes podem impactar o seu futuro. “Elas vão compreender esse impacto quando não tiver peixe assado para comer. Nem assado, nem cozido, nem frito, de forma alguma”, lamenta.

“Enquanto alguém está enriquecendo, milhares de famílias estão sem o que colocar no prato para comer”

Leia também: Entre as comunidades afetadas pelo racismo ambiental estão também as indígenas. O Lunetas abordou este assunto em uma reportagem sobre os impactos da mineração ilegal na Amazônia ao meio ambiente, à saúde e à cultura indígena.

Preservar e conservar para quem?

O geógrafo, professor e coordenador acadêmico da especialização em Estado de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Diosmar Filho, lembra que a legislação ambiental é pautada no debate de preservação e conservação. Entretanto, enquanto essa lógica não estiver centrada na interseccionalidade de raça, gênero e classe, as desigualdades socioambientais serão ainda mais acentuadas e perpetuadas. Sendo o movimento ambientalista brasileiro composto, em sua maioria, por lideranças brancas, precisamos atentar para que a pauta do racismo ambiental e climático não corra o risco de se tornar apenas um slogan para as Nações Unidas. 

Nesse sentido, a perspectiva da intergeracionalidade também demanda ações importantes. Uma vez que dedicamos nossos esforços para um futuro climaticamente seguro e justo, crianças e adolescentes são os principais protagonistas-chave da transformação que estamos construindo. 

O 5º relatório Luz da Sociedade Civil Agenda 2030, lançado este ano, apontou que “o aumento dos desastres climáticos têm acometido em especial crianças e adolescentes, pela sua característica vulnerável aos impactos ambientais para a vida toda, o que torna ainda mais desafiador o alcance da meta 13.b, hoje ameaçada”. A meta 13.b dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) faz jus à promoção de mecanismos para a criação de capacidades para o planejamento relacionado à mudança do clima e à gestão eficaz, com foco em mulheres, jovens, comunidades locais e marginalizadas. Ou seja: um olhar pautado nas múltiplas intersecções de vozes, corpos e realidades na contramão do racismo ambiental e climático para a elaboração de políticas públicas. 

Para Diosmar, é imperativo que o impacto da crise climática na infância seja racializado e geracional. “Quando a gente fala de futuro, precisamos considerar o nosso presente. E esse presente tem as crianças do hoje, do agora. Vejo que o ambientalismo branco gosta muito de trabalhar com esse recorte da infância, mas, na nossa visão negra, trata-se de algo muito ancestral.” Esta ancestralidade se refere a uma perspectiva cultural, religiosa e geracional da identidade negra que traz ainda mais profundidade à infância e à natureza.

“Quando a gente luta pelo meio ambiente, lutamos por uma infância que ainda não chegou. E quando ela chegar, precisará receber da gente um ambiente em condições de vida e igualdade”

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