Afetadas pelas enchentes, mães desabrigadas contam ao Lunetas como tentam cuidar de seus filhos e manter a esperança de voltar a ter um lar
Depois de dois meses da catástrofe climática no Rio Grande do Sul, ainda são mais de 10 mil pessoas morando em abrigos no estado. O Lunetas conversou com mães que perderam suas casas e esperam retomar a vida com seus filhos em segurança.
Há dois meses morando num abrigo improvisado em uma escola, na cidade de General Câmara, interior do Rio Grande do Sul, famílias quilombolas da Vila do Sabugueiro ocupam salas de aula que viraram dormitórios. “Já estamos há muito tempo aqui sem uma resposta. Perdi tudo o que tinha, porque a água encheu completamente a casa”, conta Márcia Santos, mãe de Taynan, 11, e Ryan, 10. Ela é uma das milhares de mães do RS atingidas pelas enchentes que, conforme levantamento do Governo do Estado, afetaram 2,3 milhões de pessoas e causaram 179 mortes.Além disso, mais de 10 mil pessoas continuam desabrigadas em 55 municípios.
Depois do susto ao abandonar tudo para salvar a família e do cansaço por fugir de casa no meio da água, os primeiros dias foram os mais difíceis. “Os meninos não tinham o que fazer e queriam voltar para a casa. Estranharam muito o lugar, principalmente Ryan, que tem TEA [Transtorno do Espectro Autista]. Eu nem podia sair para comprar os remédios que ele toma.”
Agora, aos poucos, uma rotina volta a se estabelecer, com as escolas reabrindo e a interação com as outras crianças do abrigo. Taynan e Ryan estudam em horários diferentes e têm a hora de brincar de bola na área externa do abrigo, por exemplo.
Mas, enquanto segue sem respostas sobre para onde vão e como será daqui para frente, Márcia se desdobra para cuidar dos meninos e ir atrás de auxílio para ter um lugar onde morar, e, assim, deixar de dormir em colchões e compartilhar o banheiro com outras pessoas. “A gente tem que explicar que precisa esperar ter uma solução. Uma vez levei o mais velho para ver como ficou a casa e ele chorou, pois viu que não tem condições de voltar”, conta. “Isso deixa os meninos tristes, porque querem ter uma casa. A gente se cansa e pensa ‘como vamos ter que fazer tudo de novo?’”, lamenta.
A professora Reni Oliveira Guarani precisou suspender as atividades com seus 50 alunos assim que as chuvas começaram. Isso porque as aulas na ocupação Tekoá Nhe’engatu, território indígena retomado na cidade de Viamão, acontecem ao ar livre. Ela, que também é mãe de Vitor, 9, sentiu falta da rotina de aulas no gramado, rodas de conversa e merenda fornecida pelo Governo do Estado. “Já conseguimos dois barracões para as crianças terem aulas, mas a merenda ainda não está chegando todos os dias”, explica Reni. “Como não temos onde guardar produtos, como carnes e leite, só vem frutas e bolachas.”
Desde fevereiro, 40 famílias indígenas Guarani Mbya tentam retomar o território ancestral após décadas morando à beira de estradas. “A gente quer retomar as terras que eram de nossos avós e que sempre nos diziam que um dia a gente iria encontrar um espaço maior para viver e cultivar”, diz. “Queremos voltar a plantar e caçar para as crianças saberem como vivíamos com nossos pais e avós.”
Conforme o levantamento do Ministério dos Povos Indígenas, 70% dos territórios originários e cerca de 30 mil indígenas foram atingidos pelas enchentes. Com as estradas fechadas nas primeiras semanas de maio, as famílias tinham que buscar as cestas básicas a pé. A pasta definiu um plano de ação com distribuição de água potável, cesta básica e kit de higiene. Além disso, haverá ações emergenciais para reconstruir casas, estradas e recuperar as áreas de plantio nas comunidades.
Apesar das terras da retomada Tekoá Nhe’engatu não terem alagado, as chuvas prejudicaram as plantações, as aulas e adiaram a construção das casas de madeira que os próprios indígenas levantaram. “Conseguimos apenas cinco casas. Enquanto isso, estamos morando em barracas de lona e esperando ajuda do Governo”, conta a professora.
Há sete anos, a manicure Mírian Ávila saiu da Venezuela e chegou em Porto Alegre com a família para fugir da crise econômica e tentar uma vida melhor. Ela e o marido trabalhavam e moravam em uma casa com os três filhos, Francesca, 16, Eduardo, 10, e Gael, 3. A vida estava praticamente estabilizada até que as chuvas a levaram a um dos abrigos improvisados da capital. “Minha casa ficou mais de mês embaixo d’água. Voltei lá há algumas semanas, mas não deu para salvar nada.”
Com as enchentes, Eduardo teve crise de pânico. “Agora meu filho tem medo toda vez que chove de novo. Ele chora por achar que a água pode chegar aqui também”, diz. “Eu converso, acalmo, só que não tivemos atendimento com um psicólogo.”
Além de manter a rotina de cuidar dos filhos em um espaço coletivo, ela conta como é tratada diferente por ser de fora. “Aqui ainda é complicado pois tem muita xenofobia por sermos venezuelanos. Já senti essa diferença.”
O Rio Grande do Sul é o terceiro estado que mais recebeu imigrantes venezuelanos nos últimos anos. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), mais de 29 mil pessoas chegaram em situação de refugiados como estratégia do Governo Federal para desafogar as fronteiras da região norte do país. Também estão na mesma condição 12 mil haitianos e 1,3 mil cubanos.
Enquanto Mírian cuida dos meninos pela manhã, à tarde eles ficam no espaço de brincadeiras destinado às crianças. “Isso é bom porque eles ficam menos estressados”, diz. Apenas a filha mais velha retornou para a escola, mas até isso dificultou garantir alimentação no abrigo. “A escola começa uma da tarde e só depois desse horário é servido o almoço. Então, eu tenho que comprar comida para ela não ir para aula com fome. Não é barato pagar isso todo dia.”
A manicure faz parte das 200 mil famílias que já receberam a parcela única de R$ 5.100,00 do Auxílio Reconstrução, distribuída pelo Governo Federal. De acordo com a União, a renda emergencial seria para “ajudar na recuperação de bens perdidos nas enchentes”. Porém, Mírian afirma que o valor é baixo para tentar morar em outro lugar com toda a família e se sentir protegida com os filhos. “Como eu vou comprar as camas e outras coisas, como uma geladeira, por exemplo? Minha esperança para não desistir está em tirar meus filhos daqui e dar uma moradia digna a eles.”
Mesmo com menos desabrigados, a Defesa Civil estima que 388 mil pessoas estejam desalojadas. Ou seja, não podem voltar para seus lares e estão em casas de familiares ou amigos. É o caso da auxiliar de limpeza, Thamires de Souza. Depois de um mês morando em um abrigo exclusivo para mulheres e crianças, agora ela e os três filhos, Leandro, 12, Ezequiel, 10, e Marina, 2, dividem o espaço na casa da irmã, na periferia de Porto Alegre. “Só consegui salvar meus filhos, mas eles perderam tudo o que tinham. As roupas, os brinquedos, o material da escola”, conta. “Voltei lá esses dias e não tem como ficar. Resgatei apenas a geladeira e a máquina de lavar.”
Thamires tenta encaixar a nova realidade na rotina dos filhos, mas “os meninos sentem falta da escola, que não tem data para voltar. Então, eles brincam como podem”, conta. No abrigo exclusivo, todos os dias havia atividades voltadas para as crianças. “Isso fazia muita diferença, porque os distraía e acalmava. Mesmo não entendendo bem o que estava acontecendo do lado de fora, eles conseguiam brincar e ficar mais felizes.”
Os abrigos exclusivos começaram a surgir após denúncias de assédio e abuso sexual contra mulheres e crianças nos abrigos mistos. A partir de então, instituições e movimentos sociais se mobilizaram para acolher esses grupos de maneira segura. Segundo o Unicef, 25% da população desabrigada são crianças e adolescentes.
Outra questão que Thamires enfrenta é o desemprego. Desde a enchente, ela ficou sem poder trabalhar e, portanto, está sem remuneração. Enquanto o pagamento do auxílio emergencial não chega, ela mantém a expectativa de voltar a trabalhar “para conseguir a casa própria e dar um lugar para meus filhos”, diz.
Em Canoas, uma das cidades mais atingidas, Joseane Rosa estava grávida do terceiro filho quando as chuvas começaram a entrar em sua casa. “Foi muito difícil porque começou a encher e tive que pegar meus filhos, colocar dentro de uma caixa d’água e sair caminhando pela água até conseguir um resgate”, lembra. Mãe de Samuel, 10, e Ágata, 2, era a primeira vez que Joseane tinha arrumado um cantinho para receber um bebê em casa. Ela comprou berço, roupinhas e brinquedos para Levi Emanoel, que nasceria justamente em maio. “Perdi o enxoval e tudo o que eu tinha preparado para o bebê. Tive que sair como estava para salvar as crianças”, conta.
Foram 18 dias em um abrigo misto no ginásio de uma universidade particular até a bolsa romper e ter que ir de ambulância para uma maternidade. “Quase tive o filho no abrigo, mas deu tempo de chegar”. Ao saber da história de Joseane, os diretores da universidade presentearam Levi Emanoel com uma bolsa de estudos da educação infantil à pós-graduação. “Isso foi o que me deixou mais feliz no meio de tanta coisa triste”, diz a mãe.
Embora Joseane esteja em um abrigo exclusivo, onde recebeu doações de roupinhas e kit de higiene para o bebê, ela sente falta da casa e de tudo o que tinha conquistado para os filhos. “Não estou 100% confortável. Aqui a gente divide banheiro e nem todas as mulheres têm paciência com as crianças. Meu bebê é muito pequeno e tem gente que se incomoda”, conta.
Ao pensar em como será daqui para frente com os três filhos, ela se entristece porque não recebeu nenhum auxílio financeiro e não tem previsão de quando sairá do abrigo. “Do fundo do coração, eu queria que isso passasse logo. Quero ver meus filhos felizes de novo, que voltem para a escola e tenham a vida deles.”
Como medida emergencial para abrigar as famílias que perderam tudo, o Governo do Estado anunciou a construção de três Centros Humanitários de Acolhimento (CHA), com a estrutura foi cedida pela Acnur. No início de julho, o primeiro centro abriu em Canoas, com a lotação de 630 pessoas em 126 casas montáveis, feitas de material isolante, que protege do sol e do calor. O local foi batizado de “Recomeço” e as casas têm 17,5 metros quadrados, iluminação e espaços de ventilação. Além disso, as chamdas “cidades provisórias” contarão com refeitório, cozinha, banheiros, lavanderia, espaço para assistência médica, ambiente para convivência, recreação das crianças e animais de estimação.
As famílias da Vila do Sabugueiro dependem das doações de alimentos que chegam pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). De acordo com a Conaq, todas as 145 comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul, onde vivem mais de 17 mil pessoas em 70 municípios, foram atingidas pelas enchentes. Além de trabalhar na arrecadação e entrega de doações para as comunidades, a coordenação cobra uma resposta do Governo. Em nota, o Ministério da Igualdade Racial disse que integra a força-tarefa de atendimento ao Rio Grande do Sul e que realiza um mapeamento da situação dos territórios quilombolas, ciganos, comunidades tradicionais e povos de matriz africana no estado.