A escola quilombola como um espaço de luta, resistência e memória

Crianças quilombolas e não quilombolas devem acessar a diversidade e a riqueza de conhecer o passado que nos fundou

Gessiane Nazario Publicado em 30.01.2023
Foto de crianças em uma sala de aula. Elas vestem uniforme azul e duas meninas olham para a foto
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Resumo

Gessiane Nazário traz reflexões sobre a importância de uma educação quilombola para todas as crianças brasileiras, resgatando a história de seu povo e celebrando os avanços conquistados com muita luta.

Respeito é a palavra que guia a educação quilombola. Respeito pelo passado, pelo conhecimento que nossos antepassados acumularam ao cuidarem de uma terra desconhecida e erguerem grandes civilizações desde que chegaram aqui. Respeito pelo legado de saberes e costumes que deixam para as gerações seguintes.

A possibilidade do diálogo e os avanços que alcançamos, apesar de todos os percalços, nos fazem sonhar alto. Avançamos muito, nadando contra a maré, mas sem jamais esquecer da autoestima que conquistamos ao conhecer melhor nossos ancestrais.

Até os anos 1950, os quilombolas de minha região, Armação dos Búzios, no Rio de Janeiro, não tinham nenhum acesso à educação formal. Nossos avós e bisavós, no pós-abolição (sic), arrendavam terra, pagando ao senhor para produzir para eles, basicamente em troca de comida, para sobreviver. O direito à propriedade de nossas terras só foi oficializado pela Constituição de 1988 e, apenas em 1996, foram titulados os primeiros quilombos: Pacoval e Água Fria, no Pará. Em 2003, é sancionada a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história da África nas escolas, além do Decreto 4.887, que regulamentou nosso direito à terra, já previsto na Constituição.

Quase uma década mais tarde, em junho de 2012, foram aprovadas as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola. A principal delas diz, textualmente: “A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a educação básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural”.

Existem hoje no Brasil 2.526 escolas quilombolas, onde estudam 275.132 pessoas e lecionam 51.252 professores, de acordo com o Censo Escolar de 2020. Um levantamento realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em 2019, anotou que 83% dos quilombos têm escolas. Entretanto, somente 30% delas têm acesso ao material didático determinado pelas diretrizes; destas, apenas 21% abrigam bibliotecas ou salas de leitura. Ou seja, assim como acontece com nossos colegas de profissão em qualquer “escola de cidade”, falta às vezes material escolar básico, como giz, e temos que nos cotizar para comprar. Naquele ano, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) produziu um relatório apontando que 75% dos quilombolas concluíam o ensino fundamental, mas só 10% completavam o médio.

“Hoje sabemos que estamos inseridos numa luta maior. E queremos participar dela”

Nós aprendemos dia a dia em nossos territórios o que é ser quilombola, mas a educação quilombola é para quilombolas e não quilombolas. Afinal, a responsabilidade de construir uma sociedade que respeite a pluralidade cultural, e compreenda e promova a justiça social, é de todo mundo. A educação quilombola é fundamental para a valorização e manutenção de nossa existência – negada pelo Estado e por parte da sociedade –, para que todos conheçam nossa cultura, e possam promover autoestima de crianças e jovens, que desde cedo são vítimas de discriminação.

Nós precisamos de uma escola que não seja mais um instrumento de dominação, mas que, ao contrário, atenda aos interesses das comunidades, ensinando os nossos direitos duramente conquistados. Cada escola quilombola deve honrar a memória da luta pela terra e da resistência de nosso povo pelo direito de manter seus modos de vida próprios. Escolas que respeitem nossos sonhos.

* Gessiane Nazário é doutora em Educação pela UFRJ, professora da Rede Municipal em Armação dos Búzios, integrante da Coordenação do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), do qual é uma das fundadoras. Autora do livro “Revolta do Cachimbo: a luta pela terra no Quilombo da Caveira” e coautora do livro “Mulheres quilombolas: território de existências negras femininas”.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.

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