Privacidade na internet requer mediação e limites 

Especialistas defendem o diálogo com os adolescentes, o letramento digital e a regulação das redes sociais para garantir a privacidade online com segurança

Carla Bittencourt Publicado em 09.04.2025
Privacidade na internert: Imagem mostra um grupo de adolescentes com três meninas sentadas olhando um celular.
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Resumo

Garantir a privacidade de crianças e adolescentes é um processo construído com base na confiança das relações parentais. No ambiente digital, isso demanda estratégias que vão desde o diálogo sensível, limites e regulação.

O sucesso da série “Adolescência” (Netflix) levantou reflexões sobre a relação entre pais e filhos, sobretudo quanto à criação. Com o impacto de mais de 96 milhões de visualizações no mundo inteiro, a série apresenta uma vida online de meninos e meninas até então desconhecida por seus responsáveis. O limite da privacidade também foi um ponto importante, pois, dentre tantas perguntas que ficam no ar, uma delas pode se destacar: o que teria acontecido com Jamie, o protagonista de 13 anos, se tivesse conversado mais com a família sobre o que estava vivendo na escola e nas redes sociais?

Diante disso, o Lunetas conversou com especialistas para compreender quais os limites da privacidade de crianças e adolescentes, e também as implicações da regulação na internet. Todos os entrevistados afirmam que o principal ponto do debate é o diálogo. Isso porque a conversa com uma escuta sensível fortalece os vínculos familiares e incentiva a autonomia necessária à vida privada.

Portanto, mais do que vigiar ou espionar, é preciso construir uma relação de confiança com crianças e adolescentes. “Seja qual for o tamanho do vacilo, conte comigo”. Essa é uma das frases mais poderosas que um jovem pode ouvir, segundo o psicólogo Rodrigo Nejm, especialista em educação digital do Instituto Alana.

Ele afirma a importância de combinar regras, conversar sobre riscos reais e, por um tempo, acompanhar juntos o que é postado. A presença dos adultos, com escuta aberta e apoio, é mais eficaz do que qualquer ferramenta de controle das redes sociais. Para Nejm, o ponto de partida não deve ser o domínio da tecnologia, mas o vínculo entre quem cuida e quem está crescendo.

“Você viu essa criança nascer, sabe do que ela é capaz, do que ainda não é. E é com base nisso que se negocia autonomia, responsabilidade e privacidade — não no tudo ou nada, mas em níveis”, ensina.

Não basta supervisionar sem dialogar

A privacidade é um direito de crianças e adolescentes, mas isso não significa que eles estarão soltos, sem qualquer tipo de mediação, checagem ou cuidado, pontua Ligia Moreiras, professora e pesquisadora de maternidade e infâncias. Conhecida como “A Cientista que Virou Mãe”, ela indica que um dos melhores caminhos para garantir essa privacidade envolve segurança emocional. “Se o adolescente não se sente confortável para dizer ao adulto qualquer problema que encontrar no ambiente digital, sua privacidade é potencialmente arriscada”, diz.

Portanto, falar sobre confiança e privacidade é um desafio em uma sociedade que rotula a adolescência como “fase problemática”, observa a pesquisadora. “A sociedade não gosta de adolescentes, talvez porque eles começam a questionar, a criar sua individualidade e a se opor à autoridade”, aponta. “Isso incomoda adultos acostumados a relações hierárquicas baseadas em obediência”. Para Ligia, criar vínculos de confiança desde a infância é o que garante relações mais horizontais e honestas.

“É na conversa que eles [adolescentes] vão dizer se está tudo bem ou se têm um problema e serão sinceros porque confiam na família. Essa necessidade de o adulto invadir e-mail, WhatsApp ou um perfil em rede social do adolescente mostra um problema de confiança.”

Integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável (CDESS) do governo federal, Ligia se debruça sobre esses desafios em seu novo livro, “Adolescência com amor – Construindo relações gentis, seguras e saudáveis com nossos adolescentes”. No livro, ela questiona os riscos das generalizações e lembra que “uma porta fechada pode esconder silêncios não nomeados”. Também defende que é preciso evitar a depreciação dessa fase da vida, apostando no diálogo e construindo argumentos que convoquem adolescentes à co-responsabilidade e à vida coletiva.

A vivência como mãe solo de Clara, 14 anos, atravessa sua escuta, seu olhar e também sua escrita. Pesquisadora de vínculos e relações, ela transformou os desafios do cuidado compartilhado e da construção de uma parceria baseada em confiança. “Quando a gente demanda isso do adolescente: olha, eu também sofro, eu também preciso do seu amor, eu também preciso que você confie em mim; a gente o traz para a dimensão da parceria. Saímos desse lugar de suposta superioridade e nos colocamos no mesmo nível, para caminharmos juntos”.

Dica de leitura:

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“Adolescência com amor – Construindo relações gentis, seguras e saudáveis com nossos adolescentes”, de Ligia Moreiras (Livro Digital)

A experiência como mãe de adolescente e pesquisadora sobre maternidade e infância inspirou a professora Ligia Moreiras neste livro digital em pré-lançamento. Ela aborda de maneira verdadeira mas sensível questões como bullying, saúde mental, uso de redes sociais e sexualidade.  

Proteção deve vir do amor e do cuidado, não do medo

Do mesmo lado de Ligia Moreiras, a neuropsicóloga Lilian Vendrame defende que respeitar a privacidade dos filhos é essencial para formar vínculos fortes. Mas tudo isso é uma construção, não uma moeda de troca. Especialista em adolescência, Lilian é autora do livro “Orientação construtiva: fortalecendo conexões entre mães e adolescentes” (Editora Legado), onde aborda um método que propõe a relação com os filhos como uma construção mútua, de escuta, autorreflexão e limites respeitosos.

Ela enfatiza que nesse percurso o desafio é evitar os extremos: nem vigilância constante, nem liberdade total. “Adolescente não é criança nem adulto. Ele precisa de limites, mas também de respeito e de espaço para desenvolver autonomia”, explica. Essa postura exige que os adultos olhem também para si mesmos: por que estão reagindo de determinada forma? O que esperam da relação com seus filhos?

A neuropsicóloga lembra que muitos pais e mães agem movidos pelo medo. Desse modo, é o medo e não o amor que, segundo ela, leva ao controle excessivo.

“Quando a gente fala de privacidade, os pais entram em pânico. Costumo dizer que o contrário do amor é o medo. E quando os pais veem a adolescência como algo problemático, se afastam e tentam controlar. Pegam o celular escondido, olham tudo. O adolescente se irrita, se distancia e para de falar sobre o que está vivendo.”

Ao invés de reações impulsivas ou sermões, ela sugere escuta e tempo. Isso porque, a melhor orientação pode vir após uma reflexão, quando o adulto está mais calmo. “A gente não nasce pronto como pai ou mãe”, pontua. “A relação com os filhos também é um processo de autoconhecimento. Precisamos estar conscientes dos nossos comportamentos e intenções. Para que estou falando assim? Isso está ajudando ou atrapalhando o que quero construir com meu filho?”

Dica de leitura:

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“Orientação construtiva: fortalecendo conexões entre mães e adolescentes”, de Lilian Vendrame (Editora Legado)

Com ferramentas práticas para fortalecer conexões com os adolescentes, a neuropsicóloga Lilian Vendrame propõe uma abordagem eficiente e humana para pais e mães que estão descobrindo os filhos na adolescência. A leitura enfatiza a construção contínua de uma relação baseada na escuta, autorreflexão e limites respeitosos.

Fechar a porta do quarto pode ser um risco?

Quando meninos e meninas começam a se fechar em seus quartos, isso costuma marcar a chegada da adolescência. É possível que seja apenas a busca por privacidade, mas também acende um alerta sobre o que se passa ali dentro. No livro “Enfurnados – como tirar seu adolescente do quarto” (Latitude Editora), a educadora parental Anita Cleare explica quando esse isolamento é esperado para a idade e quando pode indicar riscos, incluindo o uso não mediado ou excessivo da internet.

O desafio está em equilibrar privacidade e presença, diz a educadora. Para ela, adolescentes precisam de espaço, mas também de adultos atentos, que saibam observar sem invadir. A autora pondera que monitorar não é vigiar, mas cultivar confiança. “Nosso papel como família é nos manter próximos dos nossos adolescentes e preservar uma boa relação, para que possamos notar mudanças em seu comportamento ou humor.”

Também é importante considerar que, depois da internet, ficar em casa nem sempre é sinônimo de estar protegido. O acesso às telas nos quartos fechados pode dar uma falsa sensação de segurança aos adultos. Porém, sem mediação os jovens podem ser alvos de bullying, assédio ou expostos a grupos que incentivam ataques violentos às escolas.

“Queremos que os adolescentes vejam seus quartos como refúgios seguros. Mas, com acesso à internet, também precisam desenvolver habilidades para reconhecer riscos, evitar situações de exploração e saber quando buscar ajuda”, alerta a autora.

Dica de leitura:

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“Enfurnados – como tirar seu adolescente do quarto”, de Anita Cleare (Latitude Editora)

Como saber se o adolescente está fechado no quarto porque quer ficar um pouco sozinho ou porque está escondendo algo? Como entender o direito à privacidade sem quebrar a confiança entre pais e filhos? Neste livro, a educadora parental Anita Claire sugere caminhos para que os adultos encontrem meios de se conectar aos adolescentes, exercendo uma parentalidade atenciosa e empática a essa fase da vida. 

Privacidade requer observar as armadilhas digitais

Para garantir o direito à privacidade com segurança, pais e filhos devem entender que esse processo é gradual. Especialmente os adultos são os que devem estar atentos aos momentos certos ou não de dar mais liberdade para crianças e adolescentes no ambiente digital. Segundo Rodrigo Nejm, essas certezas passam por saber identificar “armadilhas” sociais e digitais para entender a privacidade online dos filhos.

Um exemplo é a ideia de que crianças e adolescentes são “nativos digitais” e os adultos não. Nejm explica que todos estão aprendendo a viver no digital e as famílias, por mais analógicas que sejam, já têm um conhecimento fundamental que é saber cuidar de uma criança em processo de crescimento.

“A privacidade é proporcional aos níveis de desenvolvimento daquela criança — capacidade de discernimento, maturidade emocional, habilidade nas interações sociais. E isso os pais sabem avaliar”, afirma. Outra armadilha é a separação entre mundo real e mundo virtual. “Nunca existiu essa oposição. É um mundo só, que se manifesta em vários ambientes — e o digital é mais um deles”, aponta o psicólogo.

Portanto, assim como os jovens circulam pela escola, casa, igreja, praça e outros lugares, também habitam os espaços digitais. Da mesma forma, esses espaços devem ter regras, supervisão e proteção. A dica é pensar offline: “Nenhum adolescente pode fazer check-in num hotel ou embarcar num voo desacompanhado sem autorização. Esses ambientes têm regras, classificações e fiscalização. O mesmo deveria valer para os espaços online”, defende Nejm.

No entanto, no que diz respeito às plataformas da indústria digital, ainda há lacunas importantes para garantir a segurança dos jovens que acessam com ou sem supervisão. Segundo Nejm:

“As plataformas investem mais em facilitar o acesso dos jovens do que em apoiar as famílias na mediação. É preciso que as empresas tenham mais compromisso e sejam proativas em tornar esses recursos mais acessíveis, intuitivos e didáticos para os adultos responsáveis.”

Regulação pela proteção das crianças na internet

A regulação das redes digitais no Brasil é urgente para proteger a infância e a adolescência de conteúdos tóxicos, afirma Nejm. Além disso, para garantir que as famílias tenham meios acessíveis para configurar um uso mais seguro da tecnologia. Tudo passa pelas grandes empresas do setor, que deveriam ser responsáveis pela criação de ambientes digitais mais saudáveis.
“A gente precisa de uma regulação forte no Brasil para que as plataformas ofereçam informações claras, mecanismos acessíveis e não continuem entregando, por meio dos algoritmos, conteúdos violentos, misóginos e extremistas para adolescentes. Hoje, muitos estão sendo alimentados digitalmente com verdadeiras drogas e os efeitos colaterais disso são devastadores.”
No início de abril, o Brasil avançou com a aprovação da Resolução 245 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O documento prevê a criação de uma Política Nacional para regulamentar o uso da internet. Já o Projeto de Lei 2630/20, conhecido como PL das Fake News, está em tramitação desde 2020. Ele propõe regras para aumentar a responsabilidade de redes sociais e serviços de mensagens com mais de 10 milhões de usuários.

Ideias convencionais também podem ser armadilhas

No desejo de proteger, adultos tendem a seguir comportamentos mais tradicionais como banir os eletrônicos, pôr de castigo ou exigir muito de um adolescente só porque a idade mudou. O psicólogo Rodrigo Nejm sugere as seguintes orientações:

  • Maturidade X idade: A maturidade não tem a ver com a idade, pois é algo muito particular e considera, por exemplo, crianças e adolescentes com deficiências, com algum tipo de atraso de desenvolvimento ou mesmo com alguma psicopatologia.
  • Fugir da ideia de “ou tudo ou nada”: Da mesma forma que é perigoso permitir o acesso sem diálogo ou mediação, não adianta a criança não ter celular, tablet ou computador e as famílias não conversarem sobre o assunto. Portanto, o exercício é pensar fora da internet, pois o parâmetro é compreender que nível de autonomia é possível favorecer à criança.
  • Castigos podem afastar: Julgar, castigar ou bloquear o celular pode até parecer uma solução, mas fecha as portas da confiança com os filhos. Isso porque eles podem deixar de procurar os adultos quando mais precisam por medo da punição. Por isso, é fundamental acolher, escutar e ser um ponto de apoio.

Antes da privacidade, todos devem refletir sobre o ambiente digital

“O cuidado verdadeiro precisa evoluir da vigilância para a presença”, defende Rafael Terra, professor, escritor e especialista em bem-estar digital. Ele explica que, quando a criança ou adolescente percebe que está sendo controlado, deixa de experimentar a autonomia. Além disso, pode deixar de confiar.

A postura vigilante da família evidencia a ideia de que a privacidade só é válida para adultos. Nesse sentido, muitos pais, na tentativa de educar, ultrapassam os limites da individualidade dos filhos (lendo diários, mensagens ou fazendo perguntas invasivas sobre amizades).

O professor aponta algumas estratégias para formar essa confiança, como por exemplo, explicar por que certos aplicativos são usados, dar espaço para que o adolescente também opine e, acima de tudo, construir uma relação onde o jovem se sinta seguro para contar o que vive online. “A privacidade não é a ausência de cuidado, é a maturidade do vínculo”.

Outro ponto importante é compreender que educar sobre privacidade não pode ser uma aula apenas sobre perigos, mas um convite à reflexão. “Uma abordagem eficaz começa perguntando: por que você quer postar isso? O que quer que os outros sintam ou pensem? Como você se sentiria se isso fosse visto fora do seu círculo de amigos? A consciência nasce do diálogo”.

Mostrar que o digital tem memória — e que muitas vezes lembra aquilo que gostaríamos de esquecer — é outro ponto importante. Terra também reforça que a privacidade não é anti social, mas uma forma de preservar o que é valioso. “Nem tudo precisa virar conteúdo e esse é um valor que precisa ser reeducado — não com medo, mas com amor próprio e consciência crítica”.

Ele lista algumas práticas para famílias e professores se reconhecerem como educadores digitais, não especialistas em tecnologia, mas em humanidade:

  • Criar momentos regulares de conversa sobre o que cada um está vendo, curtindo, lendo ou se preocupando no digital, pois isso constrói pontes e diminui o estranhamento.
  • Estabelecer pactos claros sobre horários, uso de redes sociais, limites de exposição. Acordos tendem a ser mais respeitados do que regras impostas.
  • Ser coerentes com os acordos porque, se pais e professores pedem moderação, devem ser moderados(as). Se pedem privacidade, devem respeitar.
  • Ouvir mais o adolescente, pois além de saber o que ele acessa, é essencial perguntar como se sente, já que o impacto digital é emocional antes de ser técnico.
  • Mostrar exemplos reais (positivos e negativos) do que a superexposição pode causar ajuda na compreensão de como a imagem pública se forma com a presença digital.

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