Quando se preocupar com os jovens que não querem sair do quarto?

O confinamento e o uso exagerado da internet por crianças e adolescentes pode causar dor e inspirar atos de violência contra si e contra os outros

Camila Salmazio Publicado em 15.09.2023
Foto em preto e branco de um jovem de costas sentado em frente a um computador. A matéria é sobre a geração do quarto
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Resumo

Especialistas discutem caminhos para desemparedar a "geração do quarto": jovens que estão em isolamento social, com a saúde mental comprometida e usam muito a internet. Os riscos envolvem episódios de violência, como os ataques às escolas, automutilações e suicídio.

O quarto tem abrigado o isolamento de uma geração de jovens. São horas e horas confinados entre paredes para manter distância do mundo real. Do outro lado da porta, a apreensão de pais, professores e cuidadores que não sabem bem o que eles fazem, com quem falam e como estão usando o tempo. Às vezes, episódios de violência quebram o silêncio do emparedamento.

A situação, que não deve ser confundida com as mudanças da chegada da adolescência, virou tema de estudo para pesquisadores e chama atenção pelas consequências do confinamento. Elas vão desde sofrimento mental e automutilações até episódios de violência contra outras pessoas, como agressões físicas e os ataques às escolas.

“Fico mais tempo [no quarto] do que no resto da casa. Só saio para comer, saca? Tem dia que nem para comer. Ninguém me pergunta nada. Só ficaram mais preocupados, minha mãe e meu pai, quando a professora falou que me cortei, relata C., 17, que vive em Belo Horizonte, Minas Gerais. O depoimento do jovem, que teve seu nome preservado, é parte da pesquisa do professor Hugo Monteiro Ferreira, pós-doutor em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, em Portugal, especialista em neuropsicologia e psicologia cognitivo-comportamental e professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Ele entrevistou mais de três mil crianças e jovens de 11 a 18 anos por meio de um formulário. Em uma segunda etapa da pesquisa, 238 delas responderam às questões de maneira mais focada, junto de pais e responsáveis. Vem daí o nome “geração do quarto”, para identificar meninos e meninas, de diferentes etnias e classes sociais, que passam mais de seis horas do dia confinados, sem quase nenhuma interlocução com as pessoas que moram na mesma casa, usam a internet de forma excessiva e têm muita dificuldade de expressar sentimentos.

“O quarto é uma metáfora do isolamento. Porém, não é um isolamento da solidão, porque eles não se comunicam dentro de casa, mas estão abertos para a janela da internet. Só que não é uma comunicação saudável”, alerta Ferreira em seu livro “A geração do quarto: quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar”.

Embora não haja dados sobre a quantidade de jovens que se enquadram nessa condição, como demonstrou a pesquisa de Ferreira, a taxa de suicídio dessa faixa etária aumentou no Brasil, nos últimos anos. Entre meninos e meninas de 10 a 14 anos, o índice subiu em 45% entre 2006 e 2021. Já entre jovens de 15 a 19 anos o aumento foi de 49,3%. Os dados são do Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, e abrange a taxa de mortalidade por cem mil.

Quando a questão invade os muros da escola

O problema, que à primeira vista parece ser doméstico e particular, deságua na escola, um dos principais lugares de convivência social da maioria dos jovens. Nesse sentido, a educadora Aline Greb relata que presencia com frequência casos de automutilação entre meninos e meninas.

“Eles nos contam que têm uma dor intensa emocional e não sabem lidar com ela. Por isso, se cortam para que a dor física supere a emocional”, diz Greb, que tem experiência em escolas em periferias de São Paulo e hoje atua como educadora pedagógica da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, na região central da cidade. “Infelizmente, se tornou quase uma rotina na escola. Então, a gente foi criando estratégias para observar e identificar quando o adolescente usa muito manga longa ou cabelos escondendo o rosto, por exemplo.”

Outro dado que chama atenção na vivência de Greb é que nem sempre o sofrimento apresentado por esses jovens interfere no rendimento escolar. “Tem estudantes que deslancham e tem aqueles que vão mal”, conta a coordenadora. Isso coincide com a pesquisa de Ferreira, que mostra que muitos se esforçam para tirar notas boas e não chamar atenção para sua condição mental.

Muitas vezes, é nas escolas onde alguns experimentam a dor gerada por episódios de bullying, agressões e preconceitos. “Eu não quero mais ir à escola, porque não quero mais sofrer o que já sofri. Eu não aguento mais ser perseguida, ser xingada, ser agredida. Não consigo aprender. A única coisa que quero é ficar aqui, dentro do meu quarto, ouvindo Rihanna e seguindo minha vida. Foi assim que comecei a comer muito. Muito mesmo”, conta R., 15, à Ferreira. 

Embora Greb observe que o sofrimento desses jovens independe do formato da família, a socióloga Miriam Abramovay, especialista em violência escolar, lembra que é preciso analisar esse fenômeno levando em conta as múltiplas adolescências presentes no Brasil, de acordo com a região onde moram, costumes e condição social.

Abramovay, que atualmente coordena a área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), conta que a pandemia de covid-19 também agravou significativamente a saúde mental desse grupo. “Existe mais pressão e muito mais consequência para os adolescentes e jovens, porque eles têm características de serem muito gregários. Então, o isolamento é o pior que pode acontecer para eles.”

A violência como consequência

Por fim, outro componente dessa equação nada simples de resolver é o aumento da sensação de violência institucional no país nos últimos anos, como analisa Abramovay, com falas públicas de incentivo ou de anuência à violência, e a proibição e o cerceamento de diálogos importantes nas escolas.

“Não podia se falar em nada que fosse crítico, de política, do que estava acontecendo relacionado à militarização das escolas, de violência. E todos esses temas eclodiram nesse momento com muita força nas escolas e para esses jovens”, reflete a socióloga.

“No primeiro semestre deste ano e principalmente no ano passado, os alunos que têm entre 11 e 12 anos relataram que estavam achando os colegas muito violentos, que a violência aumentou na escola depois da pandemia”, diz Greb. “Se a gente parar para pensar, violências, conflitos, brigas sempre ocorreram na escola. Eu não vejo que tenha mudado muito. Eu acho que o que mudou bastante foi a capacidade de se relacionar em grupo.”

Além disso, o número de ataques às escolas também escalou. Entre 2022 e 2023, foram 18 ataques realizados por alunos e ex-alunos num universo de 32 ataques desde o ano de 2001, como aponta o grupo Ética, Diversidade e Democracia da Escola Pública, do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp. A maioria desses agressores planejou os crimes através da internet, se comunicando com outros envolvidos ou incentivadores, ou usando a rede para a compra de armas.

“Geralmente, o jovem está com a vitalidade baixa e vai para a internet à procura de alguma coisa que lhe faça bem, que o alimente. É como se você tivesse entregando um bezerro para o abatedouro quando não olha para um menino desse, uma menina dentro do quarto”, explica Ferreira.

Proteção na internet, não da internet

Os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que proibir o uso da internet não é o melhor caminho. “Ela é importantíssima na vida de todos nós, não só para se comunicar, mas para adquirir conhecimento. A internet mudou as nossas vidas. Mas depende do uso que se faz”, diz Abramovay. Por isso, a regulação de redes sociais é um dos mecanismos de proteção essencial para jovens no ambiente digital, e é um dos tópicos em discussão no projeto de lei 2630/2022, que prevê a instituição da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, já aprovado no Senado. Entre outras coisas, o PL quer que provedores de redes sociais como TikTok e Discord, amplamente utilizadas por esse público, tenham sede e representantes legais no Brasil, para assim, passar a cumprir as normas brasileiras.

Como desemparedar a geração do quarto

É no ambiente virtual que a “geração do quarto”, isolada, tem adquirido as experiências que deixam de ter presencialmente. Portanto, o convite para esses jovens deixarem o quarto também passa pela ampliação de políticas que tornem as cidades mais seguras para meninos e meninas. “Há um mundo de possibilidades de viver, de conviver. Se tenho segurança, posso brincar na praça, andar na rua, participar de festas e não necessariamente ter contato com bebida alcoólica, por exemplo”, defende Ferreira.

Mas as cidades ainda estão distantes de serem acolhedoras para esse público, como aponta Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Ele, que foi relator do premiado Plano Diretor da cidade de São Paulo, lei que orienta o crescimento da metrópole e estabelece normas para construções, explica que, assim como os currículos escolares, cidades como São Paulo foram construídas apenas para atender o desenvolvimento econômico e o trabalho.

Em julho, a Câmara dos Vereadores de São Paulo aprovou a revisão do Plano Diretor da Cidade sem levar em conta a ocupação das pessoas. Entre as medidas polêmicas aprovadas está a expansão de áreas onde é permitido a construção de prédios, o que na prática significa menos espaços para viver a juventude.

Ao perceber que seu filho ou sua filha faz parte da “geração do quarto”, é comum que pais e cuidadores tenham medo de não saber como ajudar. As preocupações geralmente vêm acompanhadas da culpa, sentimento que, segundo Ferreira, não contribui para a resolução do problema. “A culpa é imobilizadora. Muitas vezes, eles [pais] também estão adoecidos. Ao perceber os sinais, o primeiro passo é ‘entrar no quarto’.” Ou seja, a orientação é encarar a situação de frente e procurar ajuda especializada.

Responsabilizar o jovem por sua condição também vai na contramão de encontrar soluções. “Porque eles sempre foram culpados de tudo que acontece de mau na sociedade, inclusive pelas estatísticas: os jovens são os que mais morrem, mas também os que mais matam”, diz Abramovay.

A socióloga aponta o diálogo entre escola e família como a maneira mais eficaz de ajudar meninos e meninas que estão em isolamento e, consequentemente, em sofrimento mental. “Tem que ter um programa de convivência escolar, de capacitação dos professores e de possibilidade de abrir a escola para discutir temas sensíveis com as famílias.”

Na Desembargador Amorim Lima, Greb propõe “rodas de conversa”, para que as turmas se reúnem todos os dias para falar dos assuntos que desejarem. “É como um ritual. O intuito é que eles possam conversar entre eles, mediado por um educador, sobre qualquer assunto, seja da escola ou de fora”, conta a coordenadora. “É um espaço muito importante para eles construírem suas visões de mundo e seus repertórios. Quando a criança fala, ela materializa o pensamento na linguagem oral e traz questões cognitivas importantes.”

Segundo Greb, as rodas de conversa permitem identificar as angústias dos alunos, mas também trabalhar o conceito de cidadania. Nesses encontros, cada um pode exercer seu direito de se expressar e de ser ouvido. “É o que Paulo Freire diz: a criança não é um vir a ser. Ela já é uma pessoa e precisa ser respeitada como tal.”

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