Entre postagens e vídeos de crianças e adolescentes nas redes sociais, especialistas questionam até onde é seguro compartilhar momentos de intimidade
Registrar memórias com as crianças em postagens e compartilhamentos nas redes sociais também pode ser arriscado se a internet não for segura. Entenda o que é o sharenting e até onde vai o direito de uso das imagens das crianças.
Todos os dias, vídeos de crianças e bebês viralizam nas redes sociais. Na maioria das vezes, são as famílias que compartilham momentos da infância de seus filhos, desde a primeira ultrassom. A prática é tão comum que ganhou uma expressão só para ela: “sharenting” – dos termos em inglês “to share” (compartilhar) e “parenting” (paternidade/maternidade). A palavra significa o comportamento de publicar vídeos, fotos e textos que expõem crianças com frequência no mundo digital.
No entanto, esses conteúdos que circulam mundialmente, mais tarde, se tornarão memórias importantes da infância de alguém. E mesmo que tenha boas intenções, a superexposição de crianças e adolescentes pode ser perigosa. Isso porque, dependendo da situação, gera constrangimento infantil, violação da privacidade das crianças, perda do controle das imagens postadas e até roubo de dados ou exposição a assediadores e outras violências virtuais.
Afinal, é possível dividir esses momentos de forma segura? A resposta não é tão simples e precisa levar em conta o contexto atual, de excesso de informação, exposição e consumo. Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos das Crianças do Instituto Alana, questionou, em um evento para influenciadores do Tik Tok, se é realmente necessário postar fotos de suas crianças. “Precisamos pensar porque a gente posta tanto e o que nos move nesse desenho persuasivo das redes sociais. Que reconhecimento ou senso de pertencimento é esse que queremos ter com tantos likes?”
A advogada especialista em direito da família, Laura Brito, confirma que crianças e adolescentes não têm capacidade jurídica para um consentimento livre e esclarecido. Mas as famílias podem observar a evolução desta capacidade com o tempo. Por isso, ela ressalta a conveniência de perguntar, especialmente a adolescentes, como eles se sentem em relação a uma exposição. “Trata-se de uma educação sobre direitos e sobre redes sociais”, pontua.
Brito também orienta que as pessoas preservem ao máximo as imagens de crianças e adolescentes nas redes sociais. Além disso, alguns casos pedem mais cuidado. “Fotos e vídeos em situações delicadas, como em momentos de crise ou com pouca roupa, não devem ser enviados nem por mensagem para pessoas próximas”, aconselha.
O que parece exagero tem contexto, pois o Brasil é o segundo no mundo com mais usuários no Instagram e o terceiro no Tik Tok. Apesar disso, o país ainda não aprovou uma regulamentação definitiva sobre o uso dessas plataformas. Ao mesmo tempo, 9 em cada 10 brasileiros acham que as empresas fazem menos do que o suficiente para proteger crianças e adolescentes na internet, conforme mostrou o Datafolha.
Laura Brito diz que as regulamentações como, por exemplo, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), farão mais sentido quando a sociedade compreender a proteção das infâncias como prioridade absoluta. Segundo ela, isso demanda educação constante e amplo debate.
“Essa discussão movimenta estudiosos desde sempre quando havia crianças em filmes, desfiles, na televisão, em reality shows e, atualmente, nas redes sociais”, explica a advogada. “A cada demanda, vamos construindo parâmetros sobre o que está na esfera do aceitável e o que não está. Por ora, na internet, esses parâmetros não estão prontos.”
“As pessoas devem ser confrontadas com a questão: como você imagina o diálogo com seu filho no futuro, quando ele compreender que a infância dele foi divulgada sem a sua autorização?”
Já faz 12 anos que o vídeo da menina Chloe, paralisada ao ouvir que viajaria à Disneylândia com a família, viralizou no mundo inteiro. Mesmo assim, ainda é possível ver memes e figurinhas do rosto dela que, na época, tinha apenas dois anos. A fama repentina fez a família ganhar com publicidade e pagar as contas de casa. Mas logo perceberam o outro lado de compartilhar um momento íntimo na internet. “Sinto uma culpa terrível. Chloe tinha dois anos e as pessoas vinham até ela, eram malucas. Tiraram fotos dela”, desabafou a mãe, Katie Clem, em entrevista recente à revista People.
Para Ana Cláudia Leite, consultora de Educação e Infância do Instituto Alana, debater sobre o sharenting não é, necessariamente, apontar uma culpa para as mães e pais. Porém, é uma forma de chamar a atenção sobre as escolhas responsáveis no mundo virtual, e defender os direitos das crianças. “Não é um problema a criança mostrar suas expressões, sua voz, sua cultura e o seu modo de ver o mundo na internet”, diz Leite. “O problema é quando as pessoas tornam isso banal, tratando as crianças não como sujeitos, mas como objetos.”
Nesse sentido, ela pontua as seguintes formas para as famílias pensarem melhor:
Na mesma linha, Pedro Hartung levanta a questão para quem não é pai ou mãe, mas consome imagens de crianças na internet. “Mesmo quem não tem criança, pode se perguntar quantas figurinhas de WhatsApp ou memes feitos a partir de crianças reais compartilha sem pensar?”
Por isso, ele ressalta que proteger a imagem das crianças e adolescentes na internet é uma tarefa coletiva, que envolve as famílias, as escolas, a sociedade civil, os governos e os donos de plataformas. “É preciso apoiar essas mães e famílias, garantindo que o ambiente digital tenha um design protetivo, de não violação de direitos.”
Em Salvador (BA), o Instituto Viva Infância, que acolhe crianças em sofrimento psíquico, iniciou a campanha “Curta seu filho, não compartilhe”. A iniciativa foi motivada pelos números da exposição de crianças e adolescentes a diversos riscos digitais. “Acompanhamos dados alarmantes e situações cada vez mais difíceis para esse público. Não só de constrangimento, mas de vulnerabilidade, inclusive em relação à integridade física”, contextualiza a psicanalista Cláudia Mascarenhas, fundadora do Instituto.
Segundo ela, apesar de ainda não existir uma segurança plena na internet, há formas de deixar as crianças mais protegidas. Ela cita, por exemplo, manter perfis fechados nas redes sociais ou usar emojis para esconder o rosto. Esta última prática é, inclusive, adotada por Mark Zuckerberg, dono da Meta, nas postagens de fotos com os filhos.
Além disso, Mascarenhas diz que é importante conversar com amigos, familiares, escolas e lugares que a criança frequenta, para que estejam todos na mesma página. Ela ressalta que é preciso pensar antes “se há realmente uma necessidade de compartilhar dados pessoais e imagens dos filhos com uma quantidade de pessoas que, muitas vezes, eles nem conhecem.”
A psicanalista sugere, portanto, que as famílias revejam o hábito de postar como sinônimo de viver. “Há situações em que a criança precisa ser acolhida pelos adultos. Mas em vez disso, eles estão filmando, rindo e postando, porque sabem que aquele tipo de conteúdo vai ter muitos likes”, aponta. “A sensação de abandono que a criança tem é muito grande.”
Apesar dos riscos do sharenting e da falta de regulamentação para a segurança total da imagem da criança dentro da internet, ainda há formas saudáveis de compartilhar a parentalidade. Assim, mães e pais usuários de redes sociais começam a buscar outros caminhos para mostrar a infância de seus filhos. Conheça algumas dessas histórias:
A escritora Daniela Arrais usa as redes sociais para falar sobre ser mãe. A ideia é contar menos sobre a criança e mais sobre a própria experiência. “A gente sabia que essas redes também podem ser de apoio. Quis fazer bancando a decisão de não mostrar o rosto do nosso filho nem citar muito o nome dele”, conta.
À frente do Coletivo Dupla Maternidade, que reúne mais de 1.200 mulheres do Brasil para dividir a experiência de famílias com duas mães, ela também mantém um perfil pessoal, com poucas fotos do filho, de três anos, e sempre preservando o rosto dele. Quando sente vontade de mostrar as conquistas e desafios do menino, manda fotos e vídeos para grupos de amigos no Whatsapp. Também já fez álbuns impressos para os avós e os primos. O menino adorou ver impresso no papel o seu rostinho de bebê. A cada reflexão e alternativa que encontra, Daniela se mostra segura do que escolheu. “Às vezes, me sinto tomando decisões que talvez, no futuro, mais gente vai tomar quando entender como esses mecanismos funcionam.”
A postura da jornalista Maria Karina nas redes sociais não segue exatamente a orientação de especialistas. Tudo porque ela optou por ter uma conta no instagram para compartilhar a infância da filha Antônia, 8 anos, e colher bons resultados com isso. Porém, longe de usar a imagem da menina, que tem síndrome de Langer-Giedion, autismo e epilepsia, para fazer publicidades ou viralizar, a escolha de Maria Karina foi política.
“É muito importante para nós ocuparmos aqueles quadradinhos, que não são a vida, mas ajudam a dar visibilidade ao que a sociedade ignora. Também não teria sentido eu lutar para que minha filha seja respeitada inteiramente e não mostrá-la.”
Ela defende que crianças com deficiência ocupem esses espaços, para que as famílias deixem de sentir vergonha, dúvida ou infelicidade, e passem a sentir orgulho. Por isso, ela mostra as brincadeiras e os desafios de Antônia, com cuidado e sensibilidade para preservar a intimidade da família. “Não é tudo o que eu posto, pois tem coisas que são extremamente pessoais ou dolorosas e guardo para mim”, conta.
Para Maria, a rede social foi o lugar onde superou o fato da filha não corresponder aos padrões dos bebês estampados nas fraldas e xampus. “A partir do momento que eu coloquei ela do jeitinho que é, me libertei. Hoje, as pessoas não têm mais aquele espanto, já acham minha filha linda, como eu acho.”
Tadeu França, ator e criador de conteúdo sobre paternidade, tenta priorizar a mensagem antes da exposição dos filhos. Ele conta que compartilha apenas quando os meninos estão confortáveis e apaga os vídeos quando não querem participar. “Como homem negro e pai, o meu propósito nas redes é mostrar que esses pais demonstram afeto, são sensíveis, sabem dar colo e estudam sobre coisas relacionadas”, explica. Além disso, pontua que “existem desafios que um pai branco não vai passar.”
Em novembro do ano passado, ele esteve no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Brasília, junto com outros influenciadores, para discutir sobre a proteção online de crianças e adolescentes. “Desde que as pessoas entenderam que vídeo com criança engaja, a internet virou terra de ninguém. Muitos pais, infelizmente, surfam nessa onda para ganhar dinheiro em cima da imagem dos filhos.”
Tadeu explica que faz uma curadoria cuidadosa ao criar conteúdos com seus filhos e que sempre há muita conversa. “Os dois sabem que vídeo nenhum é mais importante do que eles.”
A cada mês, a cantora e compositora Márcia Castro tenta produzir um álbum impresso com momentos juntos da esposa Fernanda Santana e da filha Maria Flor. Ela conta que ter um registro analógico do crescimento da filha é uma forma de sobreviver a um futuro incerto, pois as outras redes, como o Orkut e o Fotolog, fizeram sucesso mas acabaram.
Juntas, elas compartilham momentos descontraídos e de afeto, como um álbum de memórias, que a menina vai poder acessar no futuro. “Eu posto muito pensando no que ela vai gostar de ver lá na frente e então vou conversando sobre isso, à medida em que ela cria repertório para entender”, explica Márcia. Outra questão que ela defende é a representatividade política de afirmar uma família com dupla maternidade. “É a afirmação da nossa existência nesse lugar com muita naturalidade.”
Deu vontade de postar aquela foto fofa do bebê ou um vídeo engraçado da criança? Pense antes nesses três pontos:
1- Esse conteúdo vai gerar uma hiperexposição da criança?
Todas as postagens na internet permanecem online e assim geram um rastro digital, que poderá comprometer a criança no futuro. Mesmo depois de apagar, a imagem pode continuar compartilhada. Basta um print ou um download de terceiros sem que a família tenha controle sobre isso.
2 – Será uma exposição positiva para a criança? O que vai ficar disso para ela depois?
Essa pergunta é muito desafiadora pois a imagem da criança na internet será como uma caixinha de memórias, que ela poderá acessar no futuro. Portanto, com interações digitais permeadas por excessos de informação, de consumo e de exposição, é preciso pensar melhor se a imagem não vai cair em armadilhas de monetização ou situações vexatórias.
3- A criança está de acordo com a publicação?
Consentimento não é só perguntar. Tem ligação com o desenvolvimento progressivo da criança, de compreender a repercussão daquele vídeo ou foto sobre sua imagem. Por isso, conversar é muito importante. Mas, no caso de crianças menores e que ainda não entendem as redes sociais, pais e mães devem sempre lembrar que são os responsáveis legais e tomar decisões levando isso em conta.
Fonte: Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos das Crianças do Instituto Alana
Como a circulação de imagens de crianças na internet é intensa, o conteúdo pode chegar a bancos de dados sem autorização dos responsáveis. Ano passado, um relatório da organização de direitos humanos “Human Rights Watch (HRW)” mostrou que fotos de crianças e adolescentes brasileiros foram usadas para alimentar plataformas de Inteligência Artificial (IA) da Alemanha, sem qualquer conhecimento dos pais. Em entrevista ao Lunetas, a pesquisadora Hye Jung Han disse, na época, que as fotos mostravam meninas e meninos em situações cotidianas, como em aniversários, vestindo uniforme escolar, saindo da maternidade e até selfies.