De cientistas à estrelas da música, meninas e mulheres contam como esse movimento legitima a força feminina ancestral e do futuro
Na continuação da série sobre afrofuturismo, Lunetas ouviu o que as meninas pretas dizem sobre suas potências, sonhos para o futuro e as referências às mulheres que vieram antes delas.
Carros voadores, robôs e ETs logo vêm à mente quando a cantora Lilica Rocha, 10, imagina como será o futuro, assim como toda criança. Para ela, talvez haja “briga do ser humano com a máquina”, mas diz ter esperança. “Apesar de tudo o que pode acontecer, as coisas vão dar certo! Por isso eu digo para as pessoas que não desistam, pois vão conseguir. Eu sempre imagino que a gente vai ter um final feliz“.
Essa esperança se traduz no disco “Baba Yaga: O futuro é agora”, o segundo gravado profissionalmente por Lilica. Além disso, o álbum tem o mesmo nome da exposição de fotografias e pinturas feitas por ela, e que está em cartaz no Espaço Xisto Bahia, em Salvador. A menina conta que conheceu “a ideia de futuro” ainda pequenininha, quando começou a tocar teclado e seus pais ajustavam a altura do instrumento à medida em que crescia.
Na faixa autoral “Black Power eu Sou”, ainda do primeiro disco, ela anunciava esse futuro e todo o poder da menina preta: “Não preciso de coroa para ser princesa / Black Power eu sou / Sou membro da realeza”. O clipe foi indicado ao Los Angeles International Music Video Festival (LAMV).
Para Lilica, o afrofuturismo nasce da imaginação e também do presente, com reflexões de temas urgentes. “Eu tenho uma música chamada ‘Para de Queimar Minha Floresta’, que retrata questões ambientais. Muita gente está falando que vai faltar água no futuro, mas já está faltando agora! Isso também acontece com a questão infantil, quando dizem ‘você vai ser isso no futuro’, ‘você vai ser aquilo no futuro’, sendo que a gente está vivendo no agora e pode ser tudo isso já”.
“Chega, isso tem que acabar
Tanta ganância, onde a gente vai parar?Abra seus olhos, é chegada a hora
Aprenda com os indígenas, os povos quilombolas”Trecho da música “Para de Queimar Minha Floresta”, de Lilica Rocha, em parceria com Adrian Estrela e Léo Rocha
Para o novo álbum, além de passar do teclado para o piano, Lilica ganhou outras referências femininas na parceria com as cantoras Liniker e Larissa Luz. O repertório cultural da cantora mirim já tinha ídolos consagrados como Nina Simone e Gilberto Gil. A admiração por Nina, por exemplo, rendeu dois momentos com outra artista, a cantora norte-americana Alicia Keys.
Primeiro, Alicia repostou em 2022 nas redes sociais um vídeo de Lilica cantando “Ain’t Got No, I Got Life”, sucesso de Nina Simone, e escreveu: “Olhem para essa linda e incrível pequena rainha arrasando”. Então, no ano seguinte, as duas se encontraram no Rio de Janeiro, onde puderam conversar e trocar elogios.
Sobre Gilberto Gil, outro ícone afrofuturista de Lilica, a história começou quando a mãe, Donminique dos Santos, sugeriu que a menina gravasse um vídeo em comemoração ao aniversário do cantor. Aos seis anos, ela deu os parabéns a Gil e comentou: “Eu admiro a paisagem dele”.
Enquanto Lilica diz ser divertido conhecer essas pessoas, “porque aprendo muito com elas e elas também comigo”, Donminique lembra da própria infância vendo a filha conhecer o mundo. Segundo a mãe, naquela época não se falava de afrofuturismo porém, de alguma forma, essas ideias estavam presentes. “Hoje, o tema está em alta, com vários conceitos e formulações, mas eu vejo que minha mãe e minha avó já faziam afrofuturismo lá atrás”, conta. “São passos que vêm de longe porque nossa tecnologia é ancestral”.
“Atriz e arteira” é como se define Aíça Alcântara, 11, a Cicinha. Ela pegou emprestada a frase “o futuro é ancestral”, de Ailton Krenak, para o seu perfil no Instagram e explica que o afrofuturismo é “quando a gente mistura a visão de futuro, a cultura e a história do povo africano.”
Cicinha interpreta a personagem Diana, na série “Pensão Ludovico”, que ainda não tem data de estreia, mas conta as aventuras de três crianças e uma cachorrinha que tentam evitar o fechamento da pensão. O roteiro é de Carollini Assis e direção de Ceci Alves, e foi filmado na cidade histórica de Cachoeira, no Recôncavo baiano.
Já no videoclipe “Odara”, Cicinha gravou cenas de dança que marcam o passado, o presente e o futuro ao lado da cantora e compositora Savannah Lima e da turbancista, trancista e multiartista Negra Jhô. “Estar naquela energia, junto dessas mulheres, valeu a pena!”, lembra. Com direção de Adriano Zatara, o clipe mostra a paisagem de Baiacu, vila de pescadores na Ilha de Itaparica (BA), onde as ruínas de uma das primeiras igrejas do Brasil resistem, sustentadas por gameleiras, árvores sagradas do candomblé.
Nesse sentido de contato frequente com a arte, a menina tem uma lista de referências femininas que a inspira e que diz ser “aquelas que vieram antes de mim”. Entre os nomes, estão as atrizes Zezé Motta, Sharon Menezes, Taís Araújo e, “a maioral”, segundo ela, a norte-americana Viola Davis, protagonista do filme “A Mulher Rei”. Aliás, é o filme que a pequena atriz baiana já perdeu as contas de quantas vezes assistiu. Lílian Alcântara, mãe de Cicinha, é quem apresenta essas fontes e conversa com ela sobre história, memória, empoderamento e racismo – que não poupa nem as crianças.
Lilian decidiu criar um perfil no Instagram para Cicinha registrar esses momentos como atriz e também para que a própria filha não duvidasse de si. “Sempre me preocupei em blindar o coraçãozinho e a mente dela, mostrando que o problema não estava nela e sim em quem falava. É uma consciência que eu não tive quando criança”, conta. Atualmente, o perfil tem quase 35 mil seguidores. “Foi a gente abrir a página e Cicinha viu que não era só eu quem acreditava nela.”
Cada vez mais consciente da importância em ocupar lugares e construir referências para as meninas pretas, Cicinha afirma o que pretende deixar como legado: empoderar pessoas com uma linguagem antirracista. “Os nossos antepassados abriram o caminho e a gente vai alargar ainda mais, para que as futuras gerações possam percorrer e dizer ‘Olhe, eu sou importante, eu posso estar aqui e vou fazer com que esse legado continue´”.
“Sei que ainda existe quem quer ver a nossa história enterrada no passado, mas a gente vai continuar lutando e persistindo”
Ela explica que a escolha da frase de Krenak não foi à toa. “O futuro ancestral quer dizer que alguém lutou e resistiu antes de nós para que a gente pudesse estar aqui. E olhe que ainda nem alcançamos todos os lugares como deveríamos, viu?”, ressalta. Cicinha também espera que tenha mais desenhos, revistas, filmes e livros com pessoas pretas em lugar de destaque. “As princesas da Disney mesmo, só tem duas pretas, as outras são brancas”, aponta.
“O futuro nada mais é do que uma criança”, defende a professora Zaika dos Santos, multiartista, cientista de dados e especialista em inteligência artificial. Segundo ela, há diversos movimentos especulativos de futuro e o afrofuturismo é um deles. O movimento, portanto, tem relação direta com as infâncias. “Quando a gente tenta pensar, imaginar e projetar futuros, geralmente estamos falando dessa fase da vida”, diz.
Zaika promoveu o afrofuturismo na primeira infância com seus alunos em uma escola municipal de Belo Horizonte, que acolhe filhos e filhas de catadores de papel. Ela conta: “Eu lia os quadrinhos do Pantera Negra para eles e apresentava cientistas brasileiras em ilustrações para colorir. Apostava que essa reimaginação lúdica do futuro tinha que incluir as crianças negras”.
A experiência serviu de base para seu trabalho de conclusão de curso em licenciatura em artes plásticas pela Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Desse modo, a professora produziu o “Mancala LAB”, projeto registrado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Plataforma Brasil. Esse sistema eletrônico foi criado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e está vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS). A ética, portanto, é um dos pilares da atuação de Zaika.
Inspirada no jogo africano que simula semear e colher, a brincadeira convida estudantes da educação infantil à universitária a vivenciarem processos pedagógicos em STEM – sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia, arte e matemática.
Nesse plantio milenar, a ideia é semear, distribuir e colher as sementes. Por isso, Zaika, que também se identifica como mancaleira, explica que há diferentes métodos de jogar a mesma Mancala e este é só um deles. “Não dá para firmar regras de forma fechada, justamente por não ser um jogo colonial. Cada rodada também é uma boa chance para debater sobre os sentidos de ganhar e perder”, diz a professora.
Número de jogadores:
Dois.
Materiais:
Tabuleiro de madeira com 14 casas, sendo duas fileiras de 6 e duas maiores em cada ponta, chamadas de “kalas”. 84 sementes distribuídas igualmente.
Dica:
É possível trocar sementes por outros elementos. Zaika usa miçangas de trançar cabelo. Também dá para fazer o tabuleiro com caixa de ovo e, em vez das sementes, usar bolinhas de papel reciclado. Crianças menores devem escolher os papeis e evitar sementes ou miçangas, sob o risco de colocarem na boca.
Objetivo: Encher a sua kala, que é a casa à direita do tabuleiro, com o maior número de sementes.
Como jogar:
Decidam quem vai começar e preencham as 12 casas com 7 sementes em cada uma. Na saída, deixe as kalas vazias, porque elas só serão preenchidas depois. Quem começar o plantio deve usar todas as sementes de uma casa e distribui-las sempre no sentido anti-horário. O jogo acaba quando nenhum dos jogadores puder fazer movimentos. Ganha quem tiver mais sementes em sua kala.
Algumas regras:
O jogo pode começar de qualquer fileira.
Cada jogador só pode colocar sementes em sua kala, nunca na do outro.
Se a última semente for colocada em sua kala, você pode jogar de novo.
Quem preenche uma casa vazia pode retirar todas as sementes na casa equivalente do outro jogador.
Fonte: www. https://afrofuturismo.tech
Um dos desdobramentos do Mancala LAB é o zine “Cientistas Afrofuturistas”, ambientado no ciberespaço e protagonizado por Kaila, personagem inspirada na sobrinha de Zaika. Aos 10 anos, Kaila adora visitar o ateliê da tia porque lá as paredes pintadas são como uma galáxia. Assim, o lugar incentivou o interesse da menina pelo espaço a ponto de “virar uma astronauta no enredo do zine”, conta Zaika,que chama a pequena de “oráculo”.
A partir da curiosidade da sobrinha, a professora criou uma história que mistura física, química, biologia e matemática. Além disso, tem computação, comunicação social e filosofia. Tudo usando a simbologia Adinkra nas ilustrações. Kaila conta que ficou muito feliz por participar do projeto e diz que ser astronauta é muito legal porque “você entra no foguete, viaja pelo espaço e vê as estrelas”. Para ela, “o afrofuturismo é um movimento que dá visibilidade a pessoas negras, o que é muito importante”.
Ter uma tia cientista e pesquisadora ajudou a escolha de Kaila para o futuro, pois decidiu que quer se tornar professora de geografia. “Minha tia é muito estudiosa e culta. Ela luta pelo espaço da pessoa negra na ciência e tecnologia e eu tenho muito orgulho de ser sobrinha dela”, diz.
Quando pensa no futuro para as meninas pretas como a sobrinha, Zaika defende que os conhecimentos do passado e os novos conceitos podem e devem coexistir: “É como jogar uma mancala porque, a cada dia, uma semente está em uma casa. Então, a cada dia, algo brota para mim quando leio um livro, vejo uma obra de arte, entendo que uma pesquisadora como Lélia Gonzalez não defendeu só o feminismo, mas foi professora de artes e buscou parte de sua história na África. Ela e Abdias do Nascimento são as minhas principais referências”.
Em uma entrevista ao jornal do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1991, a professora, filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez ampliou o sentido da educação. Na época, ela disse “Temos que nos voltar para dentro do quilombo e nos organizarmos melhor no sentido de dar um instrumental para esses que vão chegar e continuar o nosso trabalho”. A edição ficou mais conhecida depois que teve estampada na capa a frase “beije sua preta em praça pública”, da antropóloga.
Além disso, Lélia citou a importância da população negra estar atualizada com as novas tecnologias. “Isso é muito sério, essa ausência de instrumental que possibilite se colocar em pé de igualdade com as populações não-negras, que têm um acesso extraordinário à informação. Você percebe isso nas pequenas coisas, como esses videogames da vida. As nossas crianças nem sabem o que é isso, porque elas estão nas ruas, sem escola, vendendo balas”.
Zaika ainda era criança quando a entrevista foi publicada, mas afirma que a fala da antropóloga veio como uma “predição do futuro” dela. “Isso porque, quando me tornei adulta, fui discutir sobre o entrecampo entre arte, ciência e tecnologia. Além da possibilidade de as crianças negras crescerem pensando não apenas em se tornarem artistas famosos ou atores de novela, mas também cientistas ou trabalharem com tecnologia”, diz.
Sobre o afrofuturismo, a professora defende essa coexistência de tantos saberes e não nega ficção ou realidade dentro do movimento, aceitando as duas. Para explicar isso, inventou o conceito de afrofuturalidades. “E assim também é com a infância. Por isso, dedico este zine a Kaila e a todas as crianças africanas e afrodescendentes, para que sempre tenham referências emancipatórias”, conclui.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.
Disney afrofuturista
A maioria das princesas da Disney é branca, mas o afrofuturismo já começa a ganhar espaço no estúdio. Em abril, por exemplo, o canal Disney+ lançou a série infantil “Iwájú”, que mostra a amizade entre Tola, menina rica e muito sabida, e seu amigo Kole, garoto que conhece tudo de tecnologia. A história se passa em Lagos, na Nigéria, unindo tradição com Iwájú, palavra iorubá que significa “futuro”. Dirigida por Olufikayo Ziki Adeola, essa é a primeira produção da Disney em parceria com a empresa pan-africana Kugali Media. Na mesma plataforma, o documentário “Iwajú: Um Novo Dia”, mostra o processo criativo dos realizadores da série. Outra opção afrofuturista é a série “Kizazi Moto: Geração de Fogo”, uma antologia com dez curtas de diversos países e diretores africanos. As histórias passam por ficção científica com espíritos, monstros, alienígenas, ciborgues e realidades alternativas onde a colonização nunca aconteceu.