‘É na escola que acontecem as primeiras experiências de racismo’

'É preciso nos engajarmos na luta política para oferecer uma educação que ensine a não se envergonhar por ter no corpo a pele negra', diz Ana Cristina Juvenal

Mayara Penina Publicado em 17.11.2016 Atualizado em 30.05.2023
Racismo na escola: foto em preto e branco de uma criança negra, chorando, abraçada por um adulto

Resumo

A pesquisadora Ana Cristina Juvenal da Cruz defende que o trabalho sobre as relações raciais deve fazer parte do planejamento do ano letivo da escola. Para ela, as brincadeiras e piadas de cunho racista são um modo de expressão do racismo brasileiro.

“Não somos todos iguais”. Se pensarmos nas oportunidades de acesso e possibilidades das populações branca e negra no Brasil, veremos que, comparativamente, não somos todos iguais. Ou melhor, não estamos todos iguais. A afirmação é da historiadora Ana Cristina Juvenal da Cruz, docente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas, atuando no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Para reforçar a importância do combate ao racismo na escola, convidamos a professora para conversar sobre os caminhos de uma educação que olhe para as questões étnico raciais.

“É preciso nos engajarmos na luta política para oferecer uma educação às crianças e jovens. Precisamos ensinar que eles não têm que sentir vergonha e nem sofrerem por ter no corpo a pele negra”

Ana explicou ao Lunetas porque, em sua opinião, as expressões “somos todos iguais” ou “somos todos da raça humana” ocupam funções nocivas no debate. “Em primeiro lugar, por se constituírem como expressões que, ao dizê-las, podem parecer que estamos nos assegurando em algo que nos caracteriza como humanos e, em segundo lugar, por levarem ao silenciamento do debate.”

“A população negra não é tratada de forma igualitária. Basta olhar os índices de acesso à educação, saúde e outros serviços públicos entre os grupos étnico-raciais”

Como as crianças entram nesse debate?

“No caso das crianças é importante reconhecer que elas enxergam sim as diferenças e que sabem verbalizá-las. Muitas pesquisas apontam que a maior parte das primeiras experiências de racismo ocorrem no espaço da escola e da educação infantil”, explica.

“Precisamos saber que não há problema em ser diferentes, as pessoas são diferentes umas das outras. Temos tamanho, cabelos e cores de pele diferente e que isso não deve ser um problema, as diferenças devem ser valorizadas.”

“O impacto sobre a construção identitária das crianças negras é distorcido, causando efeitos danosos na maneira como eles se relacionam com a sua pertença étnico-racial”

Leia a entrevista completa

Lunetas – No Brasil, a lei 10.639/03 obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Como garantir a aplicação da lei e estimular que a infância esteja conectada com sua cultura e suas raízes?

Ana Cristina – A temática das relações étnico-raciais deve ser construída organicamente na escola. Não basta deixar que o tema apareça apenas em datas comemorativas, festas e eventos em que as comidas da cozinha africana e afro-brasileira são interessantes, mas não podem ser a centralidade da prática pedagógica.

O trabalho sobre as relações étnico-raciais deve estar presente no planejamento do ano letivo da escola, relacionado entre as áreas de conhecimento. Quando lemos histórias para as crianças, quantas delas têm personagens negros? As políticas voltadas à elaboração de materiais didáticos específicos e o desenvolvimento de cursos de formação direcionados ao tema são muito positivos e devem ser estimulados. Os professores precisam ser motivados a participar desses cursos de formação e devem compartilhar os debates nas reuniões pedagógicas da escola. Estar atento às legislações sobre a educação das relações étnico-raciais também é essencial e fundamental para que o racismo seja denunciado.

Gostaria que você comentasse sobre caminhos para mediar conflitos envolvendo questões de raça entre as crianças tanto na família quanto na escola.
AC – Professoras e professores não podem ensinar sobre a história dos povos africanos e da diáspora negra sem compreender as experiências vividas por estes grupos.

Não se deve ignorar a estrutura e a funcionalidade do racismo brasileiro e de sua perpetuação no ambiente escolar: tal postura exige que tenhamos uma compreensão da importância de considerar também as experiências individuais que os alunos trazem para a escola. Pesquisas apontam que piadas, brincadeiras, xingamentos e apelidos pejorativos de cunho racial são os casos de racismo mais presentes no ambiente escolar.

O papel da professora e do professor é fundamental nesse processo. Infelizmente, casos de racismo ainda ocorrem em salas de aula em que muitas vezes o professor se cala diante do ocorrido. Devemos aprender a identificar esse esse tipo de racismo e nos questionar, seja como cidadãos ou professores: “o que fazemos quando vemos entre crianças e jovens piadas e expressões racistas?”

“A atitude deve ser imediata, não se pode permitir atos racistas na escola! Silenciar-se diante de uma brincadeira racista é uma escolha que reflete não apenas a comprovação de um total despreparo para a prática docente, mas sobretudo mostra uma conivência com o racismo, o que é intolerável”

É evidente que o racismo tem impactos significativos no abandono escolar. Você pode citar boas práticas de escolas e comunidades que conseguiram diminuir esses números?
AC – É fundamental que todos que habitam o espaço escolar estejam atentos às especificidades do racismo brasileiro. As professoras e os professores precisam compreender o contexto da escola em que trabalham e os alunos que atendem. A escola deve ser construída como um espaço onde a comunidade em seu entorno possa frequentar. Ter a possibilidade de que pessoas da comunidade convivam na escola para falar do racismo pode ser estimulante para os estudantes. O baixo rendimento é reflexo direto de um racismo estrutural no interior da escola.

“Uma escola e um professor que não valorizam o pertencimento étnico-racial dos estudantes criam um desinteresse pela educação”

Algumas pesquisas apontam que quando uma criança negra vai mal na escola o professor a abandona deixando de ensiná-la mais rapidamente do que a uma criança branca, ou seja, há uma baixa expectativa em relação à criança negra. Como recursos de trabalho, os professores podem selecionar temas específicos a partir da produção cultural das populações negras, como contos, músicas e outras expressões culturais africanas e afro-brasileiras e relacioná-las com o que as crianças e jovens gostam de ler e ouvir. A produção literária sempre foi um caminho de expressão intelectual do pensamento, luta e resistência da população negra. As trocas culturais entre escritoras e escritores tanto africanos como brasileiros trazem especificidades a ambas as produções. O professor pode incentivar os alunos a expor suas produções culturais. É preciso construir em nossa prática elementos criativos que valorizem as diferenças.

Além do abandono escolar, quais outros prejuízos têm as crianças que sofrem situações de racismo?
AC – Inicialmente os docentes devem saber identificar as práticas que expressam estereótipos, preconceitos e discriminações, isto está diretamente associado com a criação de metodologias de trabalho pautadas na erradicação do racismo. Este tem sido um dos maiores desafios que encontramos no campo da formação docente em educação das relações étnico-raciais.

Percebemos que entre as maiores dificuldades dos professores se destaca a questão de como abordar a temática. Fundamentalmente, é preciso uma postura política de enfrentamento do racismo, não basta apenas reconhecer sua existência, mas se dedicar para compreender sua complexidade como estruturante das relações sociais.

Outra medida essencial é a quebra dos estereótipos que os professores possuem. Uma das questões mais complexas em torno das relações étnico-raciais nas escolas e espaços de educação infantil se refere à religiosidade. Muitas crianças e jovens pertencentes às religiões de matriz africana são alvo constante de perseguição e ataques tanto de colegas quanto de professores. Suas crenças são desqualificadas em relação a outras e isto tem criado conflitos sérios. É essencial que todos que possuem uma religiosidade possam vivê-la de forma plena, essa condição é fundamental para qualquer relação respeitosa.

“A maneira como nos referimos às crianças e jovens negros é também fundamental. Apelidos e modos de referenciar as crianças pela cor da pele, pelo tipo de cabelo ou pelo tipo de corpo é um comportamento inadmissível”

Como a mídia, a publicidade e a comunicação podem contribuir para a mudança deste cenário e, ao mesmo tempo, serem danosas?
AC – As brincadeiras e piadas de cunho racista são um modo de expressão do racismo brasileiro. A crença da existência de um “racismo à brasileira” pode ser caracterizada pela ideia propagada de que o racismo no Brasil se manifesta de forma “sutil e velada”.  Essas expressões nos ensinam a naturalizar e sermos cotidianamente racistas. No caso da sociedade brasileira, esse processo é possível de ser compreendido ao analisarmos as experiências da escravidão negra que imprimiram uma marca racial em nossas relações sociais.

A piada ao ser colocada no lugar do “ah, é só uma brincadeira” pretende retirar a sua carga racista, pois o ecoar do som da risada forja um ambiente desarmado deixando apenas para aquele que se sente ofendido (aquele que não participa do riso), a marca de uma “pessoa que não tem senso de humor”.

As maneiras pelas quais as imagens racistas estão presentes em filmes, músicas e em imagens intensamente veiculadas pela televisão e mídia estão a serviço do racismo e seus efeitos são desastrosos na vida de crianças e jovens negros, que muitas vezes se submetem a mudar seu próprio corpo para escapar desse lugar inferiorizado.

A denúncia em relação à veiculação dessas imagens é colocada no lugar da “ditadura do politicamente correto”, que tem se tornado sinônimo daquele “sem senso de humor”. Esse qualificativo de politicamente correto desvia o tema, pois ele inscreve o racismo como algo pessoal, desqualificando o debate e impedindo a possibilidade de verificar que brincadeiras e piadas de cunho racial são parte do racismo estrutural da sociedade brasileira, de modo que atinge todas as pessoas. 

Pode citar pequenas situações de racismo que praticamos no dia dia da escola e que muitas vezes nem percebemos?
AC – É especialmente importante se manter alerta para evitar que as falas sobre o racismo caiam no senso comum. Muitas vezes o debate reside em uma comparação banal que relaciona o preconceito racial a outros tipos de preconceito existentes no campo social, como com as pessoas que possuem um determinado corpo fora de uma norma (como estatura, peso) ou ainda com relação às condições socioeconômicas que confundem a questão do racismo e das discriminações.  Existem variados tipos de preconceito e é preciso separá-los, ainda que todos levem a diferentes tipos de discriminação.

“É preciso ter em conta que a escola brasileira é parte de uma história secular de uma sociedade em que as diferenças são pouco valorizadas”

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