Apesar de crescimento nas decisões judiciais pela guarda compartilhada, na maioria dos casos, mulheres ainda são as principais responsáveis pelas crianças
Embora os dados do IBGE mostrem um crescimento exponencial nas decisões judiciais pela guarda compartilhada, o modelo não tem refletido na participação do homem no trabalho do cuidado como esperado.
O Brasil tem registrado crescimento constante da guarda compartilhada em casos de divórcio de casais com filhos. Enquanto as decisões judiciais favoráveis a esse regime eram de apenas 7,5%, em 2014, hoje, já são 37,8% dos casos, segundo dados do IBGE.
A proposta que visa garantir o convívio da criança com ambos os genitores de forma equilibrada também é uma forma de dividir o trabalho do cuidado entre a mãe e o pai. Porém, na prática, esse modelo não tem refletido em equiparação e nem impulsionado a entrada do homem na chamada economia do cuidado.
A advogada Ana Lucia Dias, criadora do perfil de Instagram “O direito das mães“, explica que, apesar do crescimento das estatísticas, boa parte dessas decisões judiciais não determina que a criança permaneça por tempo equivalente na casa de cada um dos genitores. O que muda nesse regime de guarda é que “o casal toma decisões em conjunto sobre tudo, além das questões sobre saúde, educação e moradia. Mas não faz com que o homem cuide mais e melhor, na maioria dos casos”, afirma.
A experiência de Julia*, 44, ilustra bem essa realidade. Ela atendeu a reportagem no carro, enquanto levava seus filhos para as atividades esportivas. “O pai se recusou a levar. Então, fui à justiça pedir que ele dividisse os custos do transporte. Agora, ele disse que vai dividir essa função para não ter que pagar.”
Desde que se separou, há quatro anos, os três filhos dela moram na casa do pai por uma semana, na chamada residência alternada. Mas ela alega que o gerenciamento da vida das crianças permanece com ela. “Ele alimenta e manda para a escola. O médico, as vacinas, a matrícula dos cursos extras, a educação, quem vê sou eu. Na escola, eu sou a responsável pedagógica e ele é o responsável financeiro”, afirma.
Para a advogada, a lei 13.058 da guarda compartilhada sancionada em 2014 acabou sendo usada, em muitos casos, para “prejudicar a mulher e não pagar pensão, com a alegação de que o homem já leva a criança parte dos dias”.
Em seus processos, Ana Lucia tem usado a estratégia de incluir o trabalho do cuidado no cálculo da pensão, garantindo a indenização da mãe. “As leis são voltadas para a masculinidade e com a lei da guarda compartilhada não foi diferente. Mas tenho tido resultados positivos como retorno da justiça”, diz.
Em novembro de 2023, entrou em vigor a Lei 14.713, que impede a concessão da guarda compartilhada de crianças e adolescentes quando há risco de violência doméstica ou familiar praticada por um dos genitores.
Quando a família conjugal se dissolve, a família parental deveria permanecer colocando a criança como prioridade absoluta, defende Ana Lucia.
“É como um triângulo isósceles. O pai e a mãe estão na base e a criança deve estar no topo, como detentora dos direitos”
O desejo da criança diante de uma separação também deve ser levado em conta. Mas muitas vezes encontra obstáculos. “A minha filha mais velha, de 15 anos, não quer mais ir morar com o pai nas semanas alternadas”, conta Julia. “Mas ao invés do pai dela conversar, ele tirou a própria filha das redes sociais dele como represália.”
Leandro Ziotto, fundador da 4Daddy, uma plataforma de conteúdo sobre parentalidade, masculinidades e economia do cuidado, aponta as políticas públicas como caminho para melhorar a paternidade.
Ele cita como exemplo a estratégia Pré-natal do parceiro, que já existe desde a década de 1990, mas ainda tem uma implementação tímida no país. “A principal porta de doenças para a gestante e o bebê é via pai que não se cuida. Além do objetivo prático, cria também um repertório de autocuidado nos homens”, avalia.
Em seu trabalho como consultor para a equidade de gênero percebe que as empresas são peças fundamentais nessa equação e que podem contribuir de maneira efetiva para redefinir o futuro do trabalho, em que homens e mulheres tenham tempo para a família e continuem sendo bons profissionais.
Uma das cofundadoras da Coalizão Licença Paternidade (CoPai), Carolina Caputo, entende que, para cuidar, é preciso tempo, especialmente para criar vínculos. É por isso que a CoPai, formada por diversas entidades da sociedade civil, atua pela ampliação da licença-paternidade, que atualmente é de cinco dias.
Para que esse redimensionamento do trabalho do cuidado realmente aconteça, a advogada enfatiza que a licença estendida deve ser obrigatória e remunerada “que é para de fato os pais poderem ter essa chance”.
A proposta de aumentar a licença paternidade está em processo de regulamentação no Congresso, depois de o STF determinar a medida em dezembro de 2023. Um dos pontos que enfrenta resistência por parte de alguns parlamentares e de empresas é o receio de que a licença para o homem tenha impacto no mercado e nos lucros.
“Acredito que vamos nos afastar dessas preocupações com muita rapidez, porque já há muitos estudos que comprovam que o pai volta da licença estendida mais comprometido e engajado em seu trabalho” explica Carolina. Ela defende que “é como se funcionasse como um grande investimento”.
Além de propostas como a redução de horas trabalhadas para cuidadores sem desconto de salário e a ampliação da licença-maternidade e paternidade, Leandro explica que é necessário chamar os homens para ações práticas. “A empresa vai empoderar essa mulher, mas o colega de trabalho homem continua praticando pequenas violências cotidianas contra ela”, observa.
Atualmente, cerca de 50% das mulheres perdem o emprego após a maternidade, de acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, realizada em 2023. A saída do mercado independe do grau de instrução dela.
Para garantir que as mães deixem de perder os empregos ao retornar da licença e que tenham oportunidades iguais de alcançar cargos de liderança, o especialista entende que é necessário uma atuação firme do Estado, com sanções e multas para empresas que não se enquadrarem.
A licença parental, na qual ambos os responsáveis podem escolher como dividir o trabalho do cuidado nos primeiros meses de vida do bebê é uma parceria entre o setor público e privado que também pode trazer bons resultados, na avaliação de Ana Lucia.
“O mundo ideal seria ter remuneração e licença parentalidade para escolher quem fica com a criança sem a perda do trabalho”, diz Ana Lucia.
De acordo com os especialistas, a guarda compartilhada pode ser uma solução positiva para a divisão do trabalho de cuidado se outros fatores como a violência doméstica e psicológica também forem mitigados. Na contramão disso, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a violência não só aumentou para mulheres e meninas como é praticada, na maioria dos casos, por parentes próximos, como o pai, tio e irmãos. O número de estupro cresceu 6,5% e bateu novo recorde em 2023. As principais vítimas são meninas de 0 a 13 anos que são violentadas dentro de casa.
Na perspectiva da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o trabalho do cuidado se divide em três partes: o cuidado direto, que é dar comida, banho entre outras ações práticas; o cuidado indireto, que compreende a gestão do ambiente, como cozinhar e limpar, por exemplo; e, por último, a carga mental, pensada por alguém para que todos os outros cuidados aconteçam, como marcar consultas e fazer a lista do mercado.
“O homem nesses últimos anos avançou no cuidado direto. Ele está levando mais na escola e dando almoço. Mas lavar a roupa, marcar a consulta e fazer a gestão toda ainda é da mulher”, aponta Leandro Ziotto.
Depois de anos de experiência em orientação sobre equidade de gênero, Leandro acredita que “a falta de letramento sobre o que é cuidar faz com que os homens pensem que o que eles já estão fazendo é suficiente”. A escola, segundo ele, poderia ser um ambiente de estímulo a essas habilidades.
“O cuidado não tem relação com afeto, o cuidado é tecnologia a ser aprendida. É um conjunto de práticas que nos permite ser bons em algo.”
Em muitos casos, ainda, o divórcio acaba incluindo outras mulheres no trabalho de cuidado. Avós das crianças, a nova companheira do pai ou uma empregada doméstica, por exemplo, isentando o homem novamente de ser o principal responsável pelo cuidado.
“Os homens tinham que ser educados para a parentalidade, assim como as mulheres são para a maternidade”, afirma a advogada Ana Lucia. Ela acredita que além de medidas práticas, a mudança também precisa acontecer no âmbito cultural.
Nos casos em que a advogada atuou e que a guarda compartilhada foi realmente efetiva, Ana Lucia percebe o envolvimento do pai com a criança. “O homem que quer cuidar do filho entende que para a criança estar bem, a mãe tem que estar bem”, diz.
* A reportagem usou um nome fictício para proteger a identidade da fonte.