Como famílias brancas podem promover uma educação antirracista?

Pais e mães brancos mostram aos filhos como podem fazer parte da questão racial, estudar outras histórias e praticar um jeito mais diverso de estar no mundo

Carla Bittencourt Publicado em 28.11.2024
Imagem de capa para matéria sobre educação antirracista mostra uma família composta de homem, mulher e menina brancos, sentados no sofá lendo livros.
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Resumo

Famílias brancas estão se educando e educando crianças desde a primeira infância para combater o racismo na escola, em casa e em todos os lugares.

Pensar a educação antirracista a partir de famílias brancas é rever a história do Brasil. Isso porque somos um país de maioria negra, mas onde a população branca tem maior acesso à educação, saúde, emprego e segurança, conforme o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE).

Em vez de falar sobre isso, Talita, de 5 anos, quis cantar o que aprendeu na escola: “Quando eu preciso de força plena, peço aos ventos de Bamburucema”. A voz é de quem ainda está descobrindo as palavras e, mesmo assim, já conhece a divindade da cosmologia bantu africana. Talita é uma criança branca, filha de pai e mãe brancos, e vivencia desde muito cedo uma educação antirracista e afrocentrada.

A prática começou na creche da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, onde ficou até os quatro anos. “Na UFBA, ela conviveu desde muito pequena com crianças de diversas origens sociais, negras e indígenas, aprendendo a valorizar a diversidade da nossa cultura”, lembra o pai, Vitor Bemvindo. Na Escola Maria Felipa, também na capital baiana, a menina continua fazendo laços com colegas que não se parecem com ela. “A Júlia é negra, o Felipe também. E é massa ser amiga deles”, diz.

Bamburucema é uma divindade da cosmologia bantu, cultuada principalmente nas nações de Angola e Congo. Nesse contexto, as nações não são países, mas grupos culturais e espirituais ligados às religiões de matriz africana. Também chamada de “Matamba”, essa divindade é associada aos ventos, raios e tempestades, e faz referência ao reino de mesmo nome. No lugar onde hoje é Angola viveu a rainha Nzinga, que liderou a guerra contra a invasão dos portugueses, no século 17.

A origem da família, na zona norte do Rio de Janeiro, colocou na bagagem as religiões de matriz africana e o samba. Por isso, “Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Candeia, Cartola, D. Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Todos esses nomes sempre nos trouxeram valores com os quais nos identificamos”, lista a mãe, Ana Carolina Souza.

“Entendemos a contribuição do povo negro não só nas artes, mas nas ciências, na filosofia e em toda a sociedade”

Nesse sentido, Ana e Vitor também aprendem muito no processo de educar. Para eles, valorizar a cultura do povo negro ajuda a enfrentar o racismo. “Esperamos que a nossa filha possa conhecer essa história de resistência e entender a importância de viver em um mundo sem racismo”, afirma a mãe.

Uma mulher branca de cabelos cacheados e blusa florida sorri em primeiro plano. Um homem branco careca e de barba está sentado a seu lado em uma cadeira. No colo do homem uma menina branca de cabelos claros sorri e segura pelo pescoço uma boneca negra de pano, com roupa de bailarina e de olhos fechados.
Em casa, é Talita, 5, que ensina os pais, Ana e Vitor, as brincadeiras, músicas e danças dos orixás, tema pelo qual “é fascinada”, conta o pai. A boneca Dandara está sempre ao lado e a leitura de “Amoras”, livro de Emicida, é um pedido constante na hora de dormir.

Estudar para romper o “pacto da branquitude”

Ao escolherem educar os filhos para a diversidade, as famílias brancas podem, nesse sentido, romper com aquilo que a psicóloga Cida Bento denomina “pacto da branquitude”. “Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras. Mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas”, escreveu a autora em “O Pacto da Branquitude” (Companhia das Letras).

Esses acordos disfarçados de normalidade, como explica Cida, são consequência do silêncio das pessoas brancas sobre atos vergonhosos e violentos de seus antepassados, como, por exemplo, escravizar. Isso se prolonga até acreditarem que seus privilégios são apenas mérito. Ou seja, um merecimento que nada tem a ver com os atos contra a humanidade cometidos durante a escravidão.

“É urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança marcada por expropriação, violência e brutalidade”

Não por acaso, o livro de Cida Bento marcou o primeiro encontro do grupo Diálogos sobre educação antirracista”, formado por uma maioria de mães brancas da escola Kurumi, em Salvador. Motivadas por um episódio entre as crianças na escola, as famílias decidiram criar um espaço só delas, para estudos e conversas sobre educação afrocentrada.

“O que aconteceu entre as crianças, que têm menos de seis anos, fez a gente pensar como isso acontece tão cedo. Percebemos, então, que era desde cedo mesmo que precisávamos nos mobilizar”, conta Camila Veiga, mãe dos gêmeos Nino e Gael, 4 anos.

Apesar de ser um projeto independente, a escola tem sido parceira. “Foi muito importante escutar de uma educadora negra que o antirracismo não pode se tornar um discurso confortável”, diz Isabel Aquino, mãe de João Moreno, 3 anos. Mas, que ele tem que ser diário e, para isso, “a gente precisa estudar a branquitude, precisa se racializar para entender o que são privilégios, abrir espaços de reflexão para saber o lugar onde a gente está e como podemos contribuir”, complementa.

Mobilizar pela diversidade

Nas conversas iniciais, as famílias levantaram uma dúvida: como abordar o racismo com crianças tão pequenas? A educadora social Caroline Santana respondeu com uma verdade incômoda: “As crianças negras não são perguntadas com que idade terão o primeiro contato com o racismo, elas não têm essa escolha”.

“Foi um choque de realidade porque a gente entendeu que nosso trabalho é um esforço contínuo para garantir que as crianças cresçam mais conscientes, inclusivas e empáticas”, confessa Camila. Para organizar os encontros mensais, as mães da escola Kurumi mantém um grupo de WhatsApp ativo com quem já participou de pelo menos uma reunião. Então, elas se dividem para elaborar os materiais de mobilização, como cartazes e relatos.

Assim, em pouco tempo, ampliaram a rede com a chegada da mãe de uma criança negra, o que inspirou um novo movimento. Uma das mães uniu-se à outra e, atualmente, se mobilizam para a escola oferecer bolsas e aumentar a diversidade no perfil das crianças, que ainda é de maioria branca. Em paralelo, a escola também está se organizando para isso.

Além disso, cada mãe investe em apresentar a cultura afro-brasileira aos filhos. Essas ações complementam as atividades da própria escola, que já levou os alunos a uma visita ao Ilê Ayê, em comemoração aos 50 anos do bloco afro.

O papel da escola na educação antirracista

Quando a escola não tiver uma pedagogia afrocentrada ou não garantir o ensino da história e cultura afro-brasileira, a iniciativa pode partir das famílias. Desse modo, as instituições são provocadas a repensarem seus projetos político-pedagógicos. No entanto, é importante que educadores brancos e famílias brancas se racializem, como defende a professora, escritora e arte educadora Regina Luz. “Os adultos precisam estudar a cultura afrodescendente e compreendê-la para depois ensinar às crianças.”

Está na lei, mas ainda não está na prática

Desde 2003, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira na educação básica. Em 2008 a Lei 11.645 passou a incluir a história e cultura dos povos indígenas. Os textos são marcos na revisão da história do país, embora ainda enfrentem desafios para serem postas em prática, 20 anos depois.

O fato de muitas pessoas brancas ainda não se perceberem como raça dificulta a prática antirracista, observa Regina. De acordo com um estudo do Equidade.Info, em parceria com a Fundação Itaú, 54% dos professores já presenciaram casos de racismo em escolas públicas e particulares do país. Apesar disso, 21% dos professores brancos não souberam como enfrentar essa questão, o que foi desafiador para apenas 9% dos educadores negros. Com os estudantes, também há diferenças: enquanto 84% dos alunos brancos se sentem acolhidos na escola, o mesmo só acontece com 78% dos negros.

Autora de livros infantis com protagonistas negras como ela, Regina sugere que famílias brancas invistam em um projeto de educação literária para as crianças. Em “Eva” (Tear Editora), ela apresenta Maria Firmina dos Reis, primeira romancista negra do Brasil. Já em “Alika” (Editora Caramurê), conta a história do advogado e abolicionista Luiz Gama. “As famílias podem se perguntar quantos autores negros têm em sua memória literária e verão que falta essa referência”, diz. Depois, “é preciso transformar isso em um projeto: comprar livros, ler em grupo, conversar”.

Família, a primeira escola da existência

A dificuldade que muitas crianças brancas têm de enxergar seus privilégios está na origem da educação familiar, afirma Regina Luz. Os adultos não vêem como algo natural e passam isso para as crianças, que crescem sem enfrentar preconceitos pela cor da pele ou questionar as desigualdades. Para a professora, famílias brancas precisam contar a seus filhos e filhas histórias de um país formado por brancos, mas também por negros e indígenas. “Isso é letramento racial”, ensina.

“A família é a primeira escola da existência e ela precisa abordar a origem africana do Brasil desde a infância. É importante parar e conversar, ouvir música, ver filmes e tentar fazer isso como parte do cotidiano. Sem forçar, mas uma prática do dia a dia.”

Neste semestre, a professora chegou às escolas e festas literárias com a antologia de contos “Pretinhas e Pretinhos Incríveis” (Themba Editora), onde publicou “Kianda”. No livro, os orixás são a natureza, fazem parte da cultura e não podem ser apagados. “Conhecer elementos afro-brasileiros na essência faz parte da construção de um mundo diferente, um mundo amoroso. Cada dia estou mais convicta de que o amor é uma ação transformadora”, acredita Regina. Segundo ela, o texto literário é uma base para que a criança seja sensível e veja o mundo com coragem.

Foi com essa base que Regina educou a filha, a cantora e atriz Larissa Luz. “Essa prática leva a uma reflexão, e assim as pessoas vão trilhar caminhos diferentes”, afirma. Este ano Regina foi uma das autoras citadas por estudantes e professores na redação do ENEM, com o tema “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. “Ver que a minha história está servindo de patrimônio ao coletivo só me fortalece para seguir fazendo mais e melhor”, diz.

Falar para que não se repita

A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz também quis produzir um texto para crianças e jovens sobre o desconhecimento que pessoas brancas como ela têm da própria história e da história do Brasil. Então, se juntou à ilustradora, designer e artista visual Suzane Lopes para publicar “Óculos de Cor – Ver e não Enxergar” (Companhia das Letrinhas), um livro que fala sobre a branquitude.

A história mostra o encontro de Alvo, menino branco que enxerga o mundo da cor da sua pele, e Ebony, menina negra e das tranças coloridas que conhece muitas histórias. Juntos, eles vão realizar o projeto escolar “Somos todos diferentes”. O livro venceu o Prêmio Jabuti na categoria Juvenil, em 2023.

“Pensar sobre isso nos leva a uma educação de nós, o que tem um impacto muito grande neste país que ainda não enfrentou traumas como a escravidão e o racismo”, afirmou a autora. Para ela, a melhor maneira de elaborar algo tão difícil é falar, para que não se repita. “Confesso que esse foi um dos livros mais difíceis que escrevi.”

Reconhecer a dívida histórica  

No mês da Consciência Negra, o Estado brasileiro pediu publicamente desculpas à população negra pela escravização e seus efeitos. O ato histórico faz parte de um acordo entre a União e a Fundação Educafro Brasil que, em 2022, reconheceu na Justiça a condenação do Estado por ações e omissões que fortaleceram o racismo no país. Desse modo, o pedido público de perdão foi verbalizado pelo advogado-geral da União, ministro Jorge Messias, em uma cerimônia com as ministras dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, e da Igualdade Racial, Anielle Franco. Os próximos passos do acordo são a criação de um Fundo Nacional para financiar políticas de igualdade racial e outros atos de reparação à população afro-brasileira.  

Como artista negra, Suzana Lopes acredita que falar sobre branquitude e os seus privilégios para crianças e jovens tem a função de despertar para a diversidade, fazendo com que redescubram a própria história.

Diante disso, ela chama atenção também para o glossário ao final de “Óculos de cor”, mostrando que “palavras não são inocentes”. Além disso, resume a importância de ações após a leitura como o objetivo principal. “Depois de ler e entender, é preciso agir. Quebrar o silêncio é muito importante, mas não é suficiente. É na prática que você muda as engrenagens do sistema”, defende Suzana.

Além de propor uma história diferente daquela contada pelo colonizador, Lilia também se apoiou na antropologia como uma ciência da diferença. “A gente não estuda a diferença para entender apenas os outros, mas para nos familiarizarmos com o outro e nos estranharmos. Esse é o processo vivenciado por Alvo e Ebony”, explica. Apesar de trazer muitas passagens desconfortáveis, que fazem os leitores verem e, mais do que isso, enxergarem uma história tão dolorosa, a história leva ao que a autora chama de “utopia afetiva”.

“Eu acredito muito no conceito de utopia (…) Digo que é afetiva porque muitas vezes usamos só critérios racionais, mas o afeto é uma linguagem fundamental. As crianças praticam a utopia com as fantasias que criam e praticam o afeto porque elas são muito mais desarmadas do que os adultos” – Lilia Schwarcz.

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Divulgação / ilustração Suzane Lopes

Vencedor na categoria Juvenil do prêmio Jabuti de 2023, o livro “Óculos de Cor”, de Lilia Schwarcz, é para todas as idades, como defende a ilustradora Suzane Lopes. Leitores e leitoras pequenos ou grandes vão acessar um tema difícil que as autoras não tornaram mais “macio” para ser aceito. “É um livro provocativo e que vai tensionar as habilidades dos dois personagens em uma narrativa lúdica”, diz Suzane.

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Divulgação / ilustração Suzane Lopes

O personagem Alvo é cercado de privilégios e acha que sabe tudo sobre tudo. Mas, de repente, percebe que não conhece outras realidades. Já a menina Ebony sabe suas origens e tradições. Nessa troca de universos, as duas crianças vão entendendo muita coisa. “O livro não dá respostas, mas expõe questões da sociedade, que estão surgindo sempre, a todo momento e que riscam ali alguma coisa que precisamos, sobretudo, enxergar”, diz Suzane.

Como garantir um olhar antirracista às crianças?

A sociedade brasileira está cheia de pessoas como Alvo, o menino que vê, mas não enxerga o mundo além da cor branca, observa Lilia Schwarcz. A pedido de Lunetas, ela listou uma série de sugestões para as famílias brancas que desejam garantir um olhar antirracista às crianças. O segredo, diz Lilia, é conversar abertamente, dar exemplos e valorizar as diferenças.

  • Façam releituras

Crianças podem observar com um olhar questionador livros e filmes que já conhecem. Portanto, perguntem quem são os personagens negros em histórias muito conhecidas, como, por exemplo, as do escritor Hans Christian Andersen? Por que as revistas sociais mostram um mundo que é sempre branco? Leiam juntos notícias que falem de discriminação e sempre se posicionem contra o racismo.

  • Saiam pela cidade com Óculos de Cor

Convidem as crianças para observar quem são as pessoas que estão nos lugares onde vão. Peçam que observem quem está passeando e quem está trabalhando. Nas ruas, parem nos monumentos e vejam quem são os heróis do Brasil ali representados, por exemplo, quantos são brancos, homens e europeus?

  • Expliquem que o racismo é estrutural

O racismo ainda está na base da nossa sociedade, edificando a linguagem, o imaginário, os livros didáticos e as conversas em família. É importante que as crianças (re)aprendam a ler o mundo.

  • A responsabilidade do estudo é de vocês

Pessoas negras não têm que educar pessoas brancas. No livro, Ebony não faz isso para Alvo, mas ele mesmo tem que buscar suas descobertas. A filósofa Sueli Carneiro ensina: as pessoas brancas devem apostar nesse processo e atuar como aliadas da causa antirracista.

  • Incentivem a valorização das diferenças

A ancestralidade brasileira é múltipla, feita por pessoas europeias, africanas, indígenas e asiáticas. É preciso, então, falar e não mais apagar ou silenciar os assuntos.

  • Garantam diálogo com a escola

As famílias podem levar suas experiências para o ambiente escolar e as escolas, o material, repertório e informação. Essas conversas podem resultar em experiências bem distintas para as crianças. Assim, as diferenças serão vistas não como defeito, mas como qualidade.

  • Aprendam com as crianças

Inspirem-se nas práticas e experiências antirracistas das crianças. Busquem outros ambientes e outras relações, para, enfim, tirarem os óculos da cultura.

  • Façam tudo com honestidade

Pais e mães brancos devem enfrentar a educação que receberam e conversar abertamente com suas crianças. Isso porque é muito importante em um contexto de pais brancos e crianças, negras. Durante muito tempo, houve a tentativa de “branqueá-las”, ou seja, não apresentar a elas a sua ancestralidade, sobretudo de forma positiva.

*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.

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