Novas abordagens da disciplina ajudam a desconstruir preconceitos e priorizam atividades mistas
Aulas de educação física podem ser espaços para desconstrução de estereótipos e diálogos sobre igualdade de gênero. Conheça professores que apoiam e exercem essas abordagens.
“Meninos jogam futebol, meninas jogam queimada e vôlei.” Essa máxima, cheia de preconceitos, é posta à prova nas aulas de educação física da professora Ellen da Silva, na Escola de Tempo Integral Gianete Silva, em Caruaru (PE).
Ellen diz que, desde que iniciou os estágios na docência, há mais de oito anos, enfrenta questões de gênero nas práticas esportivas. Mas também afirma que a sua formação a deixou atenta para abordar o tema durante as aulas.
“Há vários casos em que meninas são excluídas por quererem jogar futebol. Ou ainda, meninos que são criticados por gostarem de dança ou ginástica”, conta. “Sempre que isso acontece, faço rodas de conversa para quebrar essa segregação e percebo que os comentários não se repetem depois.”
Quando inicia uma modalidade esportiva com a turma, a professora apresenta atletas masculinos e femininos, como as jogadoras de futebol e os ginastas, por exemplo. Dessa maneira, abre espaço para o debate, buscando minimizar preconceitos e resistências. “É uma geração de meninas mais empoderadas, que se colocam e dizem o que querem. Mas, no contexto geral, até pela questão corporal, os meninos são mais expansivos”, observa.
Na zona leste de São Paulo, a diretora Jussanea Silva, da Escola Estadual Anna Teixeira Prado Zacharias, também está tentando desconstruir estereótipos nas aulas de educação física. A escola usa o rugby como aliado, em parceria com o Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador (CERET), que atende meninos e meninas.
Por isso, há tanto uma equipe mista, quanto as equipes masculina e feminina. “O professor diz que o time das meninas é o melhor, que elas se destacam por serem mais dedicadas e estrategistas”, revela Jussanea.
A formação de times mistos é considerada uma boa alternativa para integrar meninos e meninas e já levou a escola a campeonatos internos e externos. Embora o objetivo das aulas não seja o de promover a “guerra dos sexos”, a disputa às vezes aparece.
“Já foi pior no passado, quando os meninos reclamavam que elas eram mais fracas ou frágeis. Hoje, é bem menos, até por conta dos times mistos”, conta a diretora.
“Trabalhamos para que haja respeito e equidade. Elas jogam futebol e não tem mais diferenciação”, completa.
As abordagens dessas escolas confirmam a percepção de duas pesquisas realizadas na Universidade de São Paulo (USP): as aulas de educação física podem ajudar a mudar as impressões dos estudantes sobre gênero. A oportunidade é relevante, considerando que esse é umcomponente curricular obrigatório nas escolas brasileiras.
Conforme as conclusões dos estudos, um dos entraves para a disseminação dessas práticas é a formação de professores, que não fomenta discussões e proporciona experiências aplicáveis em outras escolas. Anita Franco Vilardaga e Gabriela Canuto dos Reis foram autoras das pesquisas, sob orientação do professor Sérgio Roberto Silveira, da Escola de Educação Física e Esporte, da Universidade de São Paulo (EEFE-USP).
Silveira diz que expressões corporais como brincadeiras, jogos, esportes, danças, ginástica e lutas podem ajudar a desmistificar estereótipos. Dentre os exemplos estão o de que os alunos mais fortes são mais belos ou, ainda, a supervalorização dos vencedores. “[Esses são] fatores que devem ser transformados em nome da inclusão social, equidade na aprendizagem e práticas ressignificadas para garantir permanência e pertencimento”, defende o professor.
Para Carolina Sperandio, diretora da Unidade Granja Vianna do Colégio Rio Branco, da rede particular de São Paulo, é preciso que a educação física represente um espaço seguro, onde meninos e meninas possam explorar seus potenciais e desenvolver suas habilidades sem medo de discriminação.
“O preconceito de gênero é resultado de oportunidades desiguais para ambos os sexos. E é responsabilidade dos professores a criação de um ambiente inclusivo e respeitoso”, defende Sperangio.
A diretora ainda afirma que “esse ambiente deve transcender barreiras de gênero, respeitar a diversidade e promover uma experiência saudável e igualitária para todos os estudantes.”
Ela percebe que é comum as diferenciações em regras e materiais esportivos. Um exemplo disso é a altura de redes e cestas ou o tamanho e peso das bolas, em função das diferenças físicas e biológicas. Porém, elas não podem perpetuar um viés de gênero. “Pelo contrário, elas devem ser respeitadas e valorizadas para que a prática esportiva seja um espaço de integração, não de segregação”, diz Sperangio.
Na Escola Gracinha, em São Paulo, sempre que há qualquer comentário ou “brincadeira” por causa do gênero de um estudante, o professor intervém. Mas o ambiente também conta com a vigilância do coletivo de alunas “Eu não sou uma gracinha”, criado em 2015 para discutir e defender pautas feministas.
Luiza, de 16 anos, aluna do 2º ano do Ensino Médio e integrante do coletivo, diz que as aulas de educação física são bem diversas. Isso porque inclui diferentes modalidades e, sempre que há formação de times para as práticas coletivas, a preferência é de que sejam times mistos. Além disso, há competições de futebol durante o recreio.
“A gente não tem essa relação de se limitar por gênero, pois as relações são mais tranquilas. Temos uma formação mais humanista“, afirma Luiza. Ela conta que, às vezes, “nas rodas de desabafo” entre as meninas, aparecem questões do contexto esportivo, mas que “não é algo recorrente ou muito grande”.
A participação esportiva na juventude está diretamente ligada ao desenvolvimento de habilidades de liderança na vida adulta, segundo a pesquisa “Jogue para liderar: o impacto geracional do esporte na liderança das mulheres”. O levantamento é da Women’s Sports Foundation, uma iniciativa que apoia a prática de esportes e atividades físicas entre meninas e mulheres. A análise mostrou que quanto mais tempo elas permanecem no esporte, maior a probabilidade de conquistarem cargos de líderes no mundo do trabalho.
Dois terços das mulheres entrevistadas (67%) acreditam que as habilidades adquiridas no esporte foram essenciais para sua trajetória profissional e pessoal. Entre elas, 73% apontaram o trabalho em equipe como a principal habilidade desenvolvida, seguido por aprendizado com erros (52%) e lidar com pressão (50%).
No Colégio Rio Branco, Catarina, de 15 anos, aluna do 1º ano do Ensino Médio, tornou-se a capitã do time feminino de handebol. Para ela, o esporte aconteceu por influência das amigas, mas não imaginava que pudesse receber esse título.
As dificuldades iniciais foram as mesmas de qualquer aluno: entender o esporte, as regras e desenvolver habilidades. “Mas, com o tempo, ganhei autoconfiança, habilidade e confiança do time. Dessa forma, pude me destacar, o que não seria possível sem a união da equipe”, diz a aluna. Ela reforça que a liderança também está relacionada à empatia, respeito, apoio e resiliência.
Catarina conta que descobriu, recentemente, que as alunas mais novas da escola a conhecem por sua atuação no handebol. Isso a surpreendeu, ao mesmo tempo que a motivou a seguir com a “influência positiva”.
Para ela, o colégio encoraja tanto meninos quanto meninas a se desafiarem e se superarem nas práticas esportivas.
“Por mais que essas as oportunidades sejam melhor utilizadas e bem recebidas pelos meninos, as meninas que se permitem sair da zona de conforto recebem as mesmas possibilidades de desenvolvimento”, diz Catarina.