Preconceito contra nordestinos dentro e fora das redes sociais afeta crianças e reforça a importância do debate para não perpetuar estereótipos e discriminações
Discurso de ódio contra nordestinos é tema de debate em salas de aula Nordeste. Especialistas explicam as raízes do problema, comentam o papel da escola e falam sobre democracia dentro e fora das redes digitais.
“Somos muito importantes para a história brasileira e não somos o que acham de nós”. É o que afirma o estudante Felipe, 11, sobre o Nordeste brasileiro e a xenofobia contra seu povo. “O nordestino se sente afetado negativamente por vários motivos. Um deles é o preconceito em relação ao sotaque. Outro é sempre definir o nordestino como um povo pobre, burro e sem cultura”, completa o menino.
Felipe mora em Irecê, um município do semiárido baiano que fica na região da Chapada Diamantina. Apesar de ser eleita muitas vezes um dos principais destinos de turismo do país, problemas sociais, como o discurso de ódio contra nordestinos, volta e meia se sobrepõem a essa riqueza ambiental e cultural. O debate sobre o preconceito contra nordestino nas eleições inclusive virou assunto do programa jornalístico Coperil On. O projeto é de um grupo de estudantes da Cooperativa de Trabalho Educacional do Irecê (Coperil), onde Felipe estuda no sexto ano.
“Nós crianças brincamos e respeitamos nossos colegas, mesmo quando eles pensam diferente, sem atrapalhar as nossas brincadeiras. Poderíamos gravar vídeos ensinando os adultos a fazerem o mesmo”, diz Anne Beatriz, 12, que estuda na mesma escola. Assim como seu pai, que é sanfoneiro, ela acredita que forró e cuscuz são a cara da região. A música, a comida, os artistas e as praias da região também estão entre as melhores do Brasil.
Na Escola Estadual Santos Dumont, localizada no município de Parnamirim, no Rio Grande Norte, o tema aparece em rodas de conversa, palestras e atividades interativas. Ali, os próprios alunos questionam a razão do ódio entre pessoas de outras regiões contra os nordestinos.
“A grande maioria das crianças já chega na escola sensibilizada por esses temas, pois sabemos que a rede social é uma rede de informações. Como professores, não devemos fugir do assunto. E, sim, colocá-los em questão. Mesmo em contexto de eleições, quando pode ser ainda mais desafiador”, avalia a docente Hosana Costa. Ela recomenda ainda cuidado em relação à política, “pois sabemos o quanto é complicado, hoje em dia, expor algum posicionamento sobre partidos políticos”, observa.
Coordenadora de comunicação do Palavra Aberta, uma organização defensora da liberdade de expressão e da informação, Mariana Mandelli acredita que, se não trabalharmos esse tema de forma contínua, a onda de xenofobia tende a se repetir sistematicamente. E não apenas durante as eleições. “Trazer esse debate para a sala de aula, inclusive explorando formatos e a linguagem desses conteúdos usados pelos jovens no dia a dia, é uma questão de cidadania”, destaca.
“Crianças e jovens precisam ter responsabilidade ao usar ferramentas digitais. Disseminar posts, figurinhas e memes discriminatórios é disseminar ódio e preconceito. E isso agride e ofende pessoas e determinados grupos.”
Sobre a função social da escola, a área de Educação em Direitos Humanos do Instituto Vladimir Herzog postou uma nota em suas redes sociais em que destaca que “toda escola tem a responsabilidade, amparada na Constituição e na legislação, de comprometer-se com uma formação política em valores democráticos”. Ainda segundo o posicionamento da instituição, a escola, seja pública ou particular, deve fazer frente ao crescimento de ideias xenófobas e extremistas cotidianamente.
O professor Ueslley Cavalcante ensina Geografia do 6º ao 9º ano na Coperil e compartilha com seus alunos a visão dos processos históricos que levaram ao atual preconceito contra a região. Para que entendam a discriminação de acordo com o espaço e o tempo. “Traçamos o século XVIII, desde a ideia de eugenia na Europa, de raça superior, justificando a exploração da população negra dentro dos processos de estruturação do capitalismo. Sobretudo quando foram escravizados em lavouras de cana de açúcar no atual Nordeste”, coloca.
Após acontecimentos políticos do período do Brasil Colônia, a região deixou de ser a principal fonte de riqueza para os colonizadores portugueses. “Essa inferiorização começa na perda de representação política e econômica das oligarquias do atual Nordeste para as oligarquias do café e do leite da região sul”, acrescenta Cavalcante.
De acordo com a pesquisadora Nina Santos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, discursos de ódio contra nordestinos são históricos e ganham repercussão e visibilidade maiores nas redes digitais. “Isso é fruto de uma grande desigualdade social e de renda em nosso país. Quem está de fora percebe o Nordeste como uma terra onde reina a miséria absoluta, inclusive a miséria intelectual”, pontua.
Para Santos, educar sobre o perigo desse tipo de comportamento tanto nas redes quanto fora delas é essencial. “Discursos de ódio acabam impedindo o exercício pleno da cidadania, no qual todos os cidadãos são considerados iguais e têm direitos iguais de viver em sociedade, de fazer as suas escolhas”, reflete. Segundo ela, esse tipo de discurso repercute negativamente, especialmente para as crianças, pois “também estão formando suas visões de mundo e suas opiniões a partir dos ambientes digitais. As ideias acabam se reproduzindo e incentivando um posicionamento preconceituoso e divisionista do país, o que é muito ruim”, opina.
A educação midiática é apontada como um caminho para a cidadania. Conforme explica Mandelli, o termo envolve práticas para apoiar o desenvolvimento de crianças e jovens no aprendizado com autonomia e pensamento crítico.Em um contexto em que a informação e a desinformação são abundantes.
“A desconstrução de estereótipos raciais e a exploração das ferramentas digitais em prol da diversidade são muito relevantes nesse sentido. Pois criam debates sobre representação e representatividade dentro e fora das mídias”, conclui. “É preciso mostrar às crianças que elas devem interrogar o que consomem como informação e conteúdo. Refletindo, por exemplo, sobre por que certas pessoas estão presentes ou ausentes de determinados produtos culturais”, considera.
Exatamente como avaliou a estudante Maria Fernanda, 12, ao se deparar com os ataques a nordestinos no noticiário: “com inteligência, as crianças podem ajudar, e muito, os adultos.”
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A Constituição Brasileira condena a xenofobia e a enquadra no crime de racismo. Os artigos 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, dizem: Artigo 1 – “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O Artigo 20, por sua vez, detalha o crime, cuja pena é a reclusão de um a três anos e multa. “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”