Especialistas indicam caminhos para equilibrar a função de supervisionar a criança e incentivar a autonomia de forma acolhedora
Conversamos com especialistas para saber como é possível criar crianças equilibrando autonomia e supervisão, sem permitir que o medo dos riscos atrapalhem esse processo.
Em um piscar de olhos, a criança que mal podia alcançar a pia do banheiro torna-se um adolescente que quer explorar o mundo. No entanto, embora esse período de “dependência” passe rápido, alguns pais acabam se acostumando a fazer as coisas pelos filhos. A supervisão constante e o excesso de medo ajudam a explicar os “pais helicópteros” que relutam em “soltar a mão” da criança.
“Mais do que pensar em ‘liberdade’ e ‘autonomia’, gosto muito de pensar na ideia de emancipação. A minha ação como adulto emancipa ou confina essa criança?“, questiona Carol Padilha, pedagoga, coordenadora escolar e fundadora da ONG “Carona a pé”.
Ou seja, trata-se de dar as condições de modo seguro para que cada criança, passo a passo, encontre seu caminho. Afinal, correr riscos ou buscar soluções para os seus problemas mais imediatos é o que vai garantir à criança desenvolvimento pleno, com autoconfiança e resiliência.
“Esse termo [pais helicópteros] é uma maneira de se referir a pais onipresentes que, ainda que bem-intencionados, impedem (ou pelo menos inibem) os filhos de explorar o mundo e suas possibilidades de maneira adequada, mantendo-os mais dependentes do que deveriam ser”, explica a psicóloga clínica Mariuza Pregnolato. Por outro lado, também é difícil ir contra as expectativas quando se espera que pais sejam vigilantes o tempo todo.
No entanto, segundo ela, “a autonomia permite novas incursões no mundo, o que enriquece o repertório de experiências e comportamentos da criança”. Por isso, deixar as crianças tomarem decisões adequadas à faixa etária faz com que “se sintam seguras o suficiente para confiar em si mesmas e desenvolver a maturidade”.
Se os novos pais não têm memória de terem se arriscado mais, como passar para os filhos que eles são capazes de se virar sozinhos? Explorar o mundo pode ser subir em árvore, brincar na chuva ou fazer a própria comida.
Desde bem cedo, Débora Lemos buscou incentivar a autonomia dos filhos Sophia, 8, e Matheus, 5. “Quando começaram a andar, os estimulava a guardar os brinquedos e eles se serviam sozinhos na hora de comer”, lembra.
“Eu acredito que as crianças devem ser ensinadas a colaborar, para que ganhem autonomia e responsabilidade. Assim, podem crescer independentes e sabendo trabalhar em equipe”, comenta Thaisa Myazaki, mãe de Isabella, 14, Luísa, 10, e Elisa, 5. Ela conta que, um dia, cansada do trabalho, cochilou. “Quando acordei, Isabella [que tinha 5 anos] tinha feito o leite da irmã e trocado a fralda dela [Luísa era bebê] para eu descansar. Tudo sozinha, nem pensou em me acordar.”
Mas, a ideia de uma geração “superprotegida” ocorre especialmente porque hoje é muito mais difícil deixar uma criança brincar sozinha na rua ou ir andando para a escola. Além do fator violência, muitos pais têm receio do risco de acidentes de trânsito e tendem a confinar as crianças por ainda mais tempo.
“Claro que há oportunidades e riscos diferentes de outras épocas, mas creio que seja uma questão de cultura familiar“, avalia a psicóloga. “Desejamos que nossos pequenos se adaptem aos novos tempos e às grandes cidades, que viajem pelo mundo e se conectem com pessoas diversas. Então, precisamos deixar que experimentem esse universo.”
“Para que as crianças tenham a liberdade de explorar, é crucial falar de questões ligadas à desigualdade socioeconômica que permeiam a cidade.” A análise é da arquiteta e urbanista Natália Maria Ribeiro de Souza.
Segundo ela, essa disparidade frequentemente está associada à maior incidência de crimes e violência, em bairros onde faltam áreas de lazer de qualidade ou transporte público para acessar esses espaços em lugares mais distantes. Essas ausências restringem as oportunidades das crianças se engajarem em atividades saudáveis, fora do ambiente doméstico.
Além disso, bairros com menos renda sofrem com poluição do ar, ruídos excessivos e escassez de espaços verdes, o que pode afetar a saúde e o bem-estar das crianças. Tudo isso repercute ainda na qualidade da educação e em suas perspectivas futuras.
“Nesse sentido, é preciso reconhecer que esses desafios demandam esforços coordenados em múltiplas áreas, como políticas públicas, programas de inclusão social, educação e acesso a serviços básicos”, avalia Souza. “A promoção da igualdade socioeconômica é fundamental para estabelecer um ambiente seguro e receptivo para todas as crianças.”
Entre as estratégias que podem tornar os espaços urbanos mais convidativos e mais centrados nas pessoas está a participação ativa da comunidade, diz a especialista.
O “Carona a pé”, fundado em 2015, “foi uma das primeiras iniciativas brasileiras a colocar as crianças na rua, de maneira organizada”, conta Padilha. O objetivo era transformar as relações nos centros urbanos e tornar as crianças mais visíveis. “Eu via como era incrível o aprendizado que elas tinham percorrendo a cidade e tudo que a gente discutia em sala vinha para essas caminhadas.”
No projeto, as crianças têm um adulto – vinculado a elas – que se responsabiliza por seguir com o grupo. São eles que conduzem os passos e olhares das crianças para a cidade. Além do guia para auxiliar os adultos a caminharem com as crianças, o livro “Vou a pé” (Pistache), de Bianca Antunes e Luísa Amoroso, mostra a cidade pelo ponto de vista de uma criança.
Segundo Padilha, ao contrário do que muitas pessoas pensam, essa aproximação com a cidade pode aumentar a segurança das crianças. “Às vezes, a ideia de não expor a criança à cidade cria uma falsa sensação de segurança. Mas, à medida que damos à criança a oportunidade de perceber o que é risco e o que tem que prestar atenção, isso lhe permite criar estratégias e desenvolver mecanismos de defesa. Além disso, pode entender que em um grupo ela está menos vulnerável do que se estiver sozinha”, diz.
A psicóloga Mariuza Pregnolato lista algumas ações bem simples para o dia a dia, convidando os adultos a também participarem com suas “crianças internas“:
Com esses cuidados, é possível soltar a mão da criança. Afinal, estimular a autonomia é dar ferramentas para que os filhos possam explorar o mundo, sem esquecer que sempre podem voltar para o conforto de suas casas, a hora que precisarem.
Uma pesquisa da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, mostrou que filhos de pais superprotetores e controladores, que ficam “pairando” em volta deles, são menos capazes de lidar com os desafios que virão. Além disso, têm mais dificuldade de regular emoções e comportamentos e pior rendimento escolar.