Educadoras explicam como o diálogo, brincadeiras, atividades escolares e referências de pessoas negras podem inspirar práticas antirracistas a todas as crianças
Desconstruir a hierarquia racial ainda é um desafio, mas que precisa ser enfrentado desde cedo. Educadores propõem que orientar todas as crianças sobre práticas antirracistas com referências e diálogo é a base para reduzir a desigualdade social já na infância.
A primeira experiência da jornalista Adriana Couto com sua negritude foi a partir do racismo, ainda na infância. Ao citar o livro “Amoras” como referência, no “Roda Viva”, Emicida, que participava do programa, explicou que o livro tem um papel de chegar às crianças antes da opressão. “Precisamos conectar as crianças com a negritude enquanto potência, não enquanto tragédia”.
“A gente precisa orientar as crianças brancas para que essa hierarquia desapareça, principalmente no momento de tanta doçura e ternura que é a infância” – Emicida
Para quebrar essa hierarquia racial entre as crianças, Vitalina Silva, Bárbara Carine e Luciana Bento, educadoras e cuidadoras engajadas contra o racismo, responderam ao Lunetas “o que fazer para que essa estrutura desapareça entre as crianças negras e não negras”. Entre as principais recomendações está apresentar a elas iniciativas antirracistas, por meio de leituras, brincadeiras e referências de pessoas negras.
A professora Vitalina Silva, do Centro Educacional Maria Quitéria, em Camaçari (BA), explica que os alunos precisam acessar o legado cultural e histórico do povo negro e indígena desde cedo, com estímulos diversos. “Se a criança tem acesso a uma única produção cultural ou a uma única referência de brinquedos que possuem as mesmas formas e os mesmos traços, ela compreende que aquela é a única representação de beleza. E, então, todo o resto é feio.”
Vencedora do prêmio “Movimento Luz na Educação” com o projeto “Educação antirracista”, Vitalina buscou incluir referências da cultura afro conforme as atividades desde cartazes com personalidades negras para decorar as salas a trechos de poesias, aulas temáticas, desfiles de moda, produção de história em quadrinhos, palestras e filmes sobre o assunto.
Para ela, a desconstrução da desigualdade racial passa por “criar outras possibilidades do imaginário”. Isso envolve “disponibilizar literatura com histórias sobre príncipes e princesas para além dos castelos encantados. Histórias que tragam outras paisagens, que explorem florestas, plantas, animais de vários lugares do mundo”, diz. Além disso, é importante “apresentar diversidade de brinquedos e brincadeiras que abordem costumes e tradições de países africanos ou comunidades indígenas”.
“É preciso ter uma intencionalidade nas escolhas e não dar brecha para o racismo”
O resultado do projeto, segundo ela, foi a melhora na autoestima dos alunos e o conhecimento sobre a potência dessa cultura. “É importante deixar muito bem direcionado que tipo de educação queremos fortalecer. Se oferecemos a mesma estratégia, a mesma metodologia e o mesmo pensamento colonizado, não tem avanço.”
Preocupada com a educação tradicionalista e colonial que a filha poderia ter fora de casa, a professora doutora e influenciadora digital Bárbara Carine idealizou um projeto de escola com práticas antirracistas, em Salvador (BA). Assim, na escola de educação infantil Maria Felipa, o processo de aprendizagem das crianças envolve “descentralizar a branquitude como padrão de existência”.
Como as crianças brancas, negras e indígenas têm, na maioria das vezes, referências de potências brancas, a hierarquia racial se perpetua. Carine explica que isso coloca as crianças brancas num lugar de centralidade. “Todas elas acessam apenas brinquedos brancos, bonecas brancas, influenciadores brancos, roupinhas infantis com a representação de heróis brancos. Então, a gente precisa mudar a lógica e procurar brinquedos afirmativos, bonecos negros, desenhos animados que também tenham representações negras, literatura infantil afrorreferenciada e indígena, que potencialize histórias e memórias”, diz.
Autora do livro “Como ser um educador antirracista” (Planeta), Carine defende romper nas escolas o “mito de uma história única apresentada pelo opressor”. Com isso, segundo ela, será possível “construir uma efetiva igualdade racial”.
“A humanidade surgiu na África há 350 mil anos. Então, por que a escola só fala de 400 anos de escravidão e diz para as crianças negras que elas vieram dos escravos? Não! É preciso dizer que ela veio de Candaces, de Meroé, de rainhas guerreiras de Daomé, e que ela tem uma ancestralidade potente africana.”
“Se somos formados ancestralmente por povos africanos, indígenas e europeus, por que apenas a narrativa europeia é a que vai prevalecer na educação das crianças? É inconcebível”
Para a socióloga e escritora Luciana Bento, falar sobre relações raciais com as crianças brancas é fundamental. “A gente escuta que o racismo é um tema pesado e que não deveria fazer parte da infância”, diz. “ Mas as crianças negras sentem os efeitos dele muito novas. E, se precisamos falar disso com elas desde cedo, o mesmo deve ser aplicado às crianças brancas.”
Segundo ela, o racismo e a hierarquia permeia todas as relações sociais. Por isso, parte do processo de socialização é mostrar para as crianças que a forma como a sociedade está organizada não é natural, “pois algumas pessoas são mais respeitadas que outras”. Assim, é preciso buscar relações nas quais as pessoas recebam o mesmo respeito. “Pode parecer difícil, mas apontar as diferenças de tratamento entre brancos e negros, e questionar isso criticamente, é algo que pode e deve ser feito com crianças desde pequenas, para que elas não cresçam naturalizando a hierarquia social que vemos ainda hoje”, ressalta.
Bento enfatiza que olhar a infância como uma fase em que se pode desconstruir desigualdades raciais e sociais é o primeiro passo para uma educação que quebra padrões. Para ela, é preciso potencializar na prática uma educação antirracista e se omitir diante da ausência de referências que valorizem a negritude também é uma manifestaçao de racismo estrutural.
“Antirracismo é atitude, é mão na massa”
Então, segundo ela, é preciso “buscar referências negras nos textos lidos, nos conteúdos audiovisuais, nos brinquedos… É preciso romper essa barreira falando sobre o assunto e buscando as referências negras que existem em todas as áreas, mas que muitas vezes são invisibilizadas”.